Evolução do estado nutricional e da composição corporal após cirurgia electiva
major
ARTIGO ORIGINAL
Evolução do estado nutricionale da composição corporal após cirurgia electiva
major
Evolution of nutritional status and body composition after major elective
surgery
Beatriz Pinto Costa, MD1, Andreia Miranda, CCN2, Marco Serôdio, MD2, Miguel
Fernandes, MD2, F. Castro Sousa, MD, PhD1
1Clínica Universitária de Cirurgia III da Faculdade de Medicina da Universidade
de Coimbra e Unidade de Cuidados Cirúrgicos Intermédios do Serviço de Cirurgia
III dos Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E.
2 Serviço de Cirurgia III dos Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E.
Correspondência
ABSTRACT
Introduction:Despite recognition of its high prevalence and adverse clinical
impact, malnutrition remains undervalued and often aggravates during the
hospital stay. Objective: To characterize the progression of nutritional status
and body composition in the early postoperative period of major elective
surgery and to correlate results with the clinical evolution. Material and
methods: Prospective study including 71 operated patients with evaluation of
nutritional status based on anthropometric, laboratorial and functional (hand
grip strength) parameters and determination of body composition by
bioelectrical impedance analysis, in the day before surgery, in the first and
fifth days of the postoperative period and at the moment of hospital discharge.
Results: Patient´s mean age was 60,4±12,8 (30-91) years, Charlson´s comorbidity
index 3,1±2,8 (0-9) and Surgical Risk Index 8,3±1,14 (6-11). Operative
mortality and morbidity rates were 7 and 31%, respectively and the mean
postoperative hospital stay was 12,4±10,5 (1-61) days. Weight loss referred in
the day before surgery was 3,6±7,4% (-12,8-31,1); 5,6% of patients presented a
body mass index lower than 20 kg/m2 and 72% an index over 25 kg/m2. Artificial
nutritional support was used in 20% of cases. In the postoperative period, a
significant deterioration of nutritional and body composition parameters
occurred, with a reduction of 5,9% in body weight, 3,4% in tricipital skinfold,
2,6% in mid-arm circumference, 32,2% in pre-albuminemia, 16,8% in
transferrinemia, 18,3% in albuminemia, 13,1% in lymphocyte percentage, 12,4% in
hand grip strength, 4,3% in body fat mass index and 4,2% in fat-free mass
index. Such degradation was proportional to the length of postoperative
hospital stay, with the exceptions of laboratorial parameters and body fat
mass. Mortality was significantly related with greater relative reductions of
fat-free mass (20,5 versus 3,7%;p=0,033) and total body water (22,2 versus
2,9%;p=0,013) and morbidity was associated with greater relative reductions of
body weight (7,7 versus 5%;p=0,035) and muscular strength (16,8 versus
10%;p=0,014). Conclusions:Those results seem to corroborate the importance of a
systematic surveillance of nutrition status during the perioperative hospital
stay and of a timely therapeutic intervention.
Key words: Nutritional status, body composition, elective surgery, malnutrition
Abbreviations: B.M.I.: body mass index; n.s.: statistically not significant;
RR: relative risk; vs: versus; f: Spearman´s correlation coefficient
INTRODUÇÃO
Apesar do reconhecimento da sua elevada prevalência (20 a 50%) e do seu adverso
impacto clínico e económico, a malnutrição permanece subvalorizada no contexto
hospitalar e agrava-se frequentemente no decurso do internamento [1-3]. Num
estudo publicado em 2010, incluindo 21007 doentes de 325 hospitais da Europa e
de Israel, Schindler K et al [4] verificaram que apenas 52% (21 a 73%) das 1217
unidades estudadas realizavam um rastreio do risco nutricional no momento da
admissão.
A resposta endócrino-metabólica à agressão cirúrgica torna o doente operado
particularmente susceptível ao desenvolvimento da desnutrição e das suas
consequências adversas, actuando de forma sinérgica com outros factores
predisponentes (como a doença de base, a redução do aporte alimentar e a
eventual perturbação da digestão e absorção dos nutrientes) [4,6]. Esta
reacção, de intensidade e duração variável, é mediada por hormonas de stress
(como o glucagon, as catecolaminas e os corticosteróides), citocinas, radicais
livres de oxigénio e outros mediadores; está associada a resistência à insulina
e caracteriza-se pelo aumento do gasto energético e por um balanço azotado
negativo [5,6].
O suporte nutricional peri-operatório tem como objectivo minimizar as
repercussões da intervenção cirúrgica sobre o balanço energético e proteico
[7]. No entanto, o rastreio do risco e a avaliação do estado de nutrição, assim
como o planeamento e a monitorização da terapêutica nutricional não se
tornaram, ainda, sistemáticas no meio hospitalar [1-4].
OBJECTIVOS
O presente estudo tem como objectivo caracterizar a progressão do estado
nutricional e da composição corporal no período pós-operatório imediato de
cirurgia electiva majore correlacionar os resultados com a evolução clínica a
curto prazo.
MATERIAL E MÉTODOS
Realizou-se um estudo prospectivo observacional envolvendo doentes adultos
admitidos no serviço de Cirurgia III dos Hospitais da Universidade de Coimbra,
E.P.E., num período de seis meses (decorrido entre Maio e Outubro de 2010),
para realização de cirurgia electiva major, com avaliação pré e pós-operatória.
Foram registados o género, a idade, a patologia de base e as doenças
concomitantes e determinados o Índice de comorbilidade de Charlson [8,9] e a
classificação A.S.A. ("American Society of Anaesthesiology") [10].
O Índice de Charlson foi proposto para descrever, em estudos clínicos, o risco
de morte atribuível às co-morbilidades, no contexto peri-operatório e resulta
do somatório da pontuação obtida pelas doenças associadas [enfarte do miocárdio
(1); insuficiência cardíaca congestiva (1); doença vascular periférica (1);
doença cerebro-vascular (1); demência (1), doença pulmonar crónica (1),
"doença do tecido conjuntivo" (1), úlcera péptica (1), diabetes
mellitus não complicada (1), doença renal moderada/grave (2), diabetes mellitus
com insuficiência orgânica (2), hemiplegia (2), neoplasia (2), leucemia (2),
linfoma (2), doença hepática moderada/grave (3), neoplasia sólida metastática
(6) e síndroma de imunodeficiência adquirida (6)]8,9.
Foram registadas as intervenções cirúrgicas efectuadas e calculado o Índice de
Risco Cirúrgico [11]. Este foi descrito por R Sutton et al [11], em 2002, como
um parâmetro de estratificação do risco cirúrgico, numa escala de três a 14
pontos e baseia-se no somatório dos valores de três variáveis: a classificação
da intervenção segundo o "Inquérito Confidencial de Mortes Peri-
operatórias" (electiva, programada, urgente ou emergente), a
classificação da B.U.P.A. ("British United Provident Association")
da sua magnitude (minor, intermédia, major, "major plus" e
"major complexa") e a classificação A.S.A..
Os "end-points" primários da evolução clínica foram as taxas de
mortalidade e de morbilidade operatórias e a duração do internamento pós-
operatório. Definiu-se como mortalidade operatória a que ocorreu nos primeiros
30 dias após a intervenção ou no mesmo internamento. As complicações incluíram
todos os desvios da evolução pós-operatória normal, excepto a morte e foram
classificadas de acordo com a proposta de Clavien [12]: grau I (sem necessidade
de tratamento específico excepto analgésicos, diuréticos, etc.), grau II
(requerendo terapêutica farmacológica), grau III (com necessidade de
intervenção cirúrgica, endoscópica ou radiológica); grau IV (com ameaça vital
exigindo internamento em Unidade de Cuidados Intermédios ou Intensivos) [12].
As complicações de grau I e II foram consideradas minor.
O suporte nutricional artificial foi instituído sem interferência directa da
realização do estudo. A fluidoterapia peri-operatória não obedeceu a qualquer
regime específico e os dados sobre o balanço hídrico não foram registados neste
estudo.
O estado nutricional foi avaliado por parâmetros antropométricos (pesos actual
e habitual, índice de massa corporal - I.M.C., prega cutânea tricipital e
perímetro braquial), analíticos (pré-albuminémia, transferrinémia, albuminémia
e contagem de linfócitos) e funcionais (dinamometria manual) e a composição
corporal foi determinada por impedância bioeléctrica em monofrequência, na
véspera da intervenção, no primeiro e quinto dias pós-operatórios e no momento
da alta hospitalar. Os critérios antropométricos, a dinamometria e a análise
por impedância bioeléctrica foram avaliados por um único investigador (A.M.)
com o objectivo de minimizar a eventual variabilidade inter-observador.
Os parâmetros antropométricos foram determinados por métodos previamente
descritos e interpretados através de tabelas de referência (estandardizadas de
acordo com a idade e o género, baseadas nos dados recolhidos na "United
States National Health and Nutrition Examination Survey" entre 1971 e
1974) e dos critérios de Garrow, McWhirter e Blackburn [13-16]. A altura e o
peso foram medidos com estadiómetro, em ortostatismo e com balança electrónica
(Seca 644; Seca, Ltd; Germany) e arredondados para os 0,5 cm e 0,1 Kg mais
próximos, respectivamente. A prega cutânea tricipital foi determinada com um
adipómetro (Holtain Ltd, Crymych; United Kingdom), com uma precisão de 0,2 mm,
na face posterior do braço não dominante, a meia distância entre o acrómio e o
olecrâneo, três segundos após a sua aplicação, tendo sido registada a média de
três determinações sucessivas. O perímetro braquial foi medido
perpendicularmente ao maior eixo do braço, no mesmo local da prega cutânea
tricipital, com fita métrica, sendo considerados o 0,1 cm mais próximo e a
média de três avaliações sucessivas.
A albuminémia, pré-albuminémia, transferrinémia e a contagem de linfócitos
foram determinadas pelos métodos convencionais do laboratório.
A força voluntária máxima de preensão da mão foi avaliada por dinamometria
manual, tendo sido considerado o valor mais elevado de três medições
consecutivas efectuadas na mão não dominante, com intervalos de aproximadamente
30 segundos, arredondado para o kilograma mais próximo e valorizado de acordo
com tabelas estandardizadas segundo a idade e o género [17]. O exame foi
efectuado com um dinamómetro mecânico (dinamómetro Collin adulto 44.33.20;
Medicon), com o doente instruído para realizar uma contracção isométrica
máxima, em posição sentada, com os ombros em abdução, os cotovelos flectidos a
90º e não apoiados e os antebraços em posição neutral.
A composição corporal foi avaliada pela análise da impedância bioeléctrica em
monofrequência com medição da resistência mão/pé direitos a 50 KHz (Bodystat
1500 Electric Bioimpedance Analyser; Bodystat Ltd; British Isles) [18,19]. A
análise foi realizada pela manhã, após jejum nocturno e período de abstenção de
esforços, com o paciente em decúbito dorsal, com os membros em abdução e usando
eléctrodos adequados (Skintact Electrodes RT 30; Innsbruck, Austria). Os
índices de massa gorda e "não gorda" foram calculados e
classificados segundo Kyle UG et al em 2003 [20].
Na avaliação pré-operatória, o rastreio do risco nutricional foi efectuado com
recurso ao "Malnutrition Universal Screening Tool" (M.U.S.T.),
"score" baseado no índice de massa corporal, na percentagem de
perda ponderal involuntária nos últimos três a seis meses e na duração
previsível de uma eventual redução ou suspensão da ingestão alimentar [21].
As variações relativas dos parâmetros nutricionais e de composição corporal
entre o período pré-operatório e o momento da alta hospitalar foram designadas
por Delta (∆), expressas em percentagem e calculadas de acordo com a fórmula:
∆=(Valor no momento da alta/Valor na véspera da intervenção) x 100 - 100.
A análise estatística dos dados foi efectuada com o programa SPSS Software 15.0
for Windows (SPSS Inc., Chicago, IL), incluindo o teste t-Student e as
correlações de Spearman, sendo considerado nível de significância estatística
um p<0,05. O estudo foi realizado em conformidade com a Declaração de
Helsínquia22, após a obtenção do consentimento informado dos indivíduos
envolvidos.
RESULTADOS
Foram estudados 71 doentes, com uma idade média de 60,4±12,8 (30-91) anos e
63,4% dos quais do género masculino. A doença oncológica constituiu a principal
indicação operatória (58 casos; 81,7%). Na patologia maligna predominaram as
neoplasias colorectais, enquanto na benigna, a obesidade mórbida foi mais
frequente (Quadro_I). O índice de comorbilidade de Charlson médio foi de
3,1±2,8 (0-9). Vinte e quatro doentes (34%) pertenciam à classe II da
classificação A.S.A., 23 (32%) à classe I, 22 (31%) à III e dois (3%) à IV.
As ressecções cólicas e rectais, assim como as hepáticas e gástricas foram as
intervenções mais frequentemente realizadas (Quadro_I). O Índice de Risco
Cirúrgico foi de 8,3±1,1 (6-11). Todas as intervenções foram efectuadas sob
anestesia geral. Em quatorze casos (20%) foi efectuado suporte nutricional
artificial no decurso do internamento, incluindo suplementos orais em 12 (17%),
nutrição parentérica em oito (11%) e nutrição entérica em sete (10%). As taxas
de mortalidade e de morbilidade operatórias foram de 7% (n=5) e 31% (n=22),
respectivamente. Os casos de mortalidade decorreram de insuficiência
multissistémica por sépsis (n=3), insuficiência hepática (n=1) e diátese
hemorrágica (n=1). A morbilidade incluiu infecções peri-incisionais
superficiais (n=8), suboclusões intestinais (n=4), fístulas pancreáticas (n=3),
hemorragias digestivas (n=2), infecções de orgão/espaço (n=2), fistula
anastomose colo-rectal (n=1), infecção urinária (n=1) e arritmia per-operatória
(n=1). As complicações operatórias enquadraram-se no Grau I da classificação de
Clavien em 10 casos (37%), no grau II em 10 (37%), no grau III em dois (7%) e
no grau V (morte) em cinco (19%). A duração média do internamento pós-
operatório foi de 12,4±10,5 (1-61) dias.
Na avaliação pré-operatória, a pontuação M.U.S.T. foi de 2,5±1 (0-6) e 90% dos
doentes foram considerados em risco nutricional elevado. A perda ponderal
referida no momento da primeira avaliação foi de 3,6±7,4 (-12,8-31,1)% e foi
superior ou igual a 10% em 18% dos pacientes. Quatro doentes (5,6%)
apresentavam um índice de massa corporal inferior a 20 Kg/m2 e 72%
ultrapassavam os 25 Kg/m2(24% dos quais com valores superiores a 30 Kg/m2) . O
índice de massa "não gorda" revelou-se elevado ou muito elevado em
85% dos casos, tendo sido normal em apenas 11%. Catorze indivíduos (19,7%)
apresentavam uma prega cutânea tricipital inferior ao percentil 15, 76,1% uma
força muscular inferior ao percentil 50, 26,8% uma pré-albuminémia inferior a
0,2 g/L, 18,3% uma transferrinémia inferior a 2 g/L, 9,9% uma albuminémia
inferior a 3,5 mg/dL e 14,1% uma contagem de linfócitos inferior a 1,2 103 μ/L.
Os doentes que demonstraram uma força de preensão manual inferior ao
percentil50 na avaliação pré-operatória (76,1%) apresentaram taxas de
mortalidade e morbilidade mais elevadas, embora de forma não significativa (9,3
versus 0%, n.s. e 34,7 versus29,4%, n.s., respectivamente).
No primeiro dia pós-operatório, constatou-se uma redução estatisticamente muito
relevante do peso, da albuminémia, da contagem de linfócitos e da massa gorda e
um aumento muito significativo da água corporal total e da massa "não
gorda". Nesse momento, as variações relativas dos parâmetros analisados,
relativamente à véspera da intervenção, não se relacionaram significativamente
com a mortalidade e a morbilidade. No entanto, o aumento percentual de água
corporal total [5,6±8,1 (-14-28,5) %] foi mais acentuado nos doentes que vieram
a desenvolver complicações, com uma diferença se aproximou do limiar de
significância estatística (8,5±9,9 versus 4,2±6,9%, p=0,073) e correlacionou-se
com a duração do internamento pós-operatório (f=24,7%, p=0,041). A redução
relativa da massa gorda no primeiro dia após a operação [13±16,3 (-60,5-41,5)
%] também se correlacionou significativamente com a duração do internamento
(f=-33,3%, p=0,005) tendo sido mais acentuada nos casos de morbilidade
operatória, embora de forma não estatisticamente relevante (17,4±12,7 versus
10,3±17,8%, p=0,098).
No momento da alta hospitalar, verificou-se uma deterioração estatisticamente
significativa dos parâmetros antropométricos, analíticos e funcionais
estudados, relativamente à avaliação pré-operatória, com uma redução de 5,9% no
peso médio, 2,6% no perímetro braquial; 3,4% na prega cutânea tricipital, 32,2%
na pré-albuminémia; 16,8% na transferrinémia, 18,3% na albuminémia; 13,1% nos
linfócitos e 12,4% na força muscular (Quadro_II; Fig._1-2). Observou-se, ainda,
uma redução significativa da massa gorda (4,3%), da massa "não
gorda" (4,2%) e da água corporal total (3,5%), em valor absoluto, assim
como dos índices de massa gorda (4,3%) e "não gorda" (4,2%).
(Quadro_II). A redução do componente não aquoso da massa "não
gorda", que inclui as proteínas viscerais e o tecido ósseo, aproximou-se
do limiar de relevância estatística (5,5%, p=0,052).
Assim, no momento da alta, constatou-se, relativamente à avaliação pré-
operatória, um aumento da proporção de doentes com um índice de massa corporal
inferior a 20 Kg/m2 (de 6 para 10%), com um baixo índice de massa gorda (de 1
para 4%) e, principalmente, com um baixo índice de massa "não
gorda" (de 4 para 19%) (Fig._3).
As variações relativas dos parâmetros nutricionais e de composição corporal,
entre a véspera da intervenção e a alta hospitalar, correlacionaram-se
significativamente com a duração do internamento pós-operatório, excepto nos
parâmetros analíticos e na massa gorda (Quadro_III). Os coeficientes de
Spearman relativos à redução do peso e da força muscular foram de 51% e de 49%,
respectivamente.
Na análise inferencial, a taxa de mortalidade foi significativamente mais
elevada nos doentes que referiam uma perda ponderal superior ou igual a 10% na
véspera da intervenção [23,1 versus 3,4%, p=0,04; odds ratio=6,7 (IC95% 1,2-
35); acuidade=83,1% e valor preditivo negativo=96,6%] e a taxa de morbilidade
foi superior nos casos com índice de massa corporal inferior a 20 Kg/m2 ou
superior a 25 Kg/m2(40,4 versus 7,1%, p=0,024).
A mortalidade associou-se de forma estatisticamente relevante com maiores
reduções de massa "não gorda" (20,5 versus 3,7%;p=0,033) e de água
corporal total (22,2 versus 2,9%;p=0,013) (Quadro_IV). A morbilidade
relacionou-se significativamente com maiores reduções de peso corporal (7,7
versus 5%;p=0,035) e de força muscular (16,8 versus 10%;p=0,014) (Quadro_IV;
Fig._4).
O suporte nutricional artificial, o Índice de Charlson e a classificação A.S.A.
não influenciaram significativamente as taxas de mortalidade e morbilidade.
Nos doentes submetidos a cirurgia bariátrica (9,9%), as taxas de mortalidade e
de morbilidade foram inferiores às dos restantes doentes (0 versus 7,8%, n.s.;0
versus -42,2%, p=0,039) e o internamento menos prolongado (7±1,2 versus 13±11
dias, p=0,0001). Após a exclusão destes doentes do estudo, a significância
estatística das relações previamente observadas entre as variações dos
parâmetros estudados no primeiro dia pós-operatório e a evolução clínica
manteve-se; na análise relativa ao momento da alta, somente a relação entre a
redução ponderal e a morbilidade se modificou, passando a aproximar-se apenas
do limiar de significância (7,7±5,1% nos doentes com complicações versus
5,5±3,1% nos restantes, p=0,079).
DISCUSSÃO
Nos doentes candidatos a cirurgia electiva major verificou-se uma alta
prevalência de excesso ponderal (47,9%) e obesidade (24%); estes valores estão
em consonância com outras séries recentes, como a publicada por Mullen JT et al
[23] em 2009, num estudo prospectivo multi-institucional de 118707 doentes
submetidos a cirurgia geral não bariátrica, no qual se observou excesso de peso
em 32% dos casos e obesidade em 34,9%. No entanto, 18% dos pacientes incluídos
na presente série referiam uma perda ponderal superior ou igual a 10% e 90% fo-
ram considerados em risco nutricional elevado segundo o protocolo M.U.S.T.
validado internacionalmente [21].
No decurso do internamento pós-operatório, observou-se uma significativa
deterioração de todos os parâmetros de avaliação nutricional e de composição
corporal; esta foi directamente proporcional à duração do internamento, excepto
nos parâmetros analíticos e na massa gorda. A perda ponderal média verificada
após a intervenção (5,9%) foi superior à referida na véspera (3,6%) e mais
acentuada nos doentes que desenvolveram complicações operatórias; ultrapassou
os 10% em 13,6% dos casos, sendo este limiar considerado sinal de grave risco
nutricional de acordo com a terminologia internacional [24]. A acentuada
deterioração do estado nutricional observada nesta série não parece ter estado
associada apenas aos inevitáveis e inexoráveis efeitos catabólicos da resposta
endocrinometabólica à agressão cirúrgica mas também, provavelmente, ao
insuficiente recurso ao suporte nutricional artificial.
A redução relativa foi mais evidente na força muscular manual e nos parâmetros
analíticos, particularmente na pré-albuminémia (atingindo os 32,2%).
Relativamente aos critérios laboratoriais, estes resultados afiguram-se-nos
plausíveis, pela reduzida semivida plasmática da pré-albumina e pela maior
lentidão da resposta dos parâmetros antropométricos às alterações do estado de
nutrição; mas devem ser interpretados cautelosamente devido à susceptibilidade
dos critérios analíticos à influência da resposta de fase aguda, do estado de
hidratação e da permeabilidade vascular [25].
A mortalidade relacionou-se significativamente com maiores reduções percentuais
de água e de massa "não gorda" e a morbilidade com maiores reduções
relativas de peso e de força muscular. Embora não tenha sido possível
estabelecer relações de causalidade entre estes parâmetros, esta deterioração
do estado nutricional não deixa de poder ser considerada como preocupante.
A dinamometria manual constitui um método simples, não invasivo e fiável de
avaliação morfo-funcional muscular compatível com a prática clínica quotidiana
[26-28]. Embora a patogenia da disfunção muscular na malnutrição não esteja
completamente esclarecida, a dinamometria tem sido considerada um parâmetro de
rastreio do risco nutricional sensível e com uma resposta mais rápida às
alterações induzidas pela desnutrição, por um lado e pela intervenção
terapêutica, por outro, do que os critérios morfológicos clássicos [26-28]. O
potencial preditivo da força de preensão manual relativamente à mortalidade e à
morbilidade, a curto e a longo prazo, tem sido amplamente demonstrado em
estudos clínicos e epidemiológicos, nomeadamente em relação ao desenvolvimento
de complicações pós-operatórias (em particular quando inferior a 85% do valor
de referência), ao prolongamento do internamento e ao aumento da taxa de re-
admissões hospitalares [26-29].
No presente estudo, uma elevada proporção dos doentes candidatos a cirurgia
electiva majorapresentou uma força muscular inferior ao percentil 50, avaliada
por dinamometria manual; estes desenvolveram, posteriormente, taxas de
mortalidade e de morbilidade mais elevadas, embora de forma não significativa.
Após a intervenção cirúrgica, verificou-se uma redução muito relevante da força
de preensão manual média, com correlação positiva com a duração do internamento
e significativamente mais acentuada nos doentes com complicações pós-
operatórias. Assim, apesar das limitações relacionadas com a reprodutibilidade
da metodologia, com a determinação dos valores de referência, com a definição
de limiares consensuais para identificação dos doentes em risco e com
susceptibilidade à influência de outros factores (imobilização, infecções,
desequilíbrios hidro-electrolíticos, entre outros) [26-28], a dinamometria
manual constituiu, neste estudo, um parâmetro funcional com valor preditivo da
evolução clínica.
Os métodos de referência na determinação da composição corporal, como a
densitometria, a "dual-energy X-ray absorptiometry", a diluição
isotópica e a determinação do potássio corporal [18-19], são complexos,
onerosos e caracterizam-se por limitada aplicabilidade clínica. Neste estudo, a
composição corporal foi analisada por impedância bioeléctrica, que constitui um
método simples, seguro, não invasivo e rápido, adequado para indivíduos sem
desequilíbrios hidro-electrolíticos significativos [18,19,30]. Permite o
cálculo dos compartimentos de massa "não gorda" e de água corporal
total, através da medição da resistência e da reactância do corpo humano a uma
corrente eléctrica de baixa amplitude; exige, contudo, uma metodologia
estandardizada e validação das equações de regressão para a população em causa
(raça, idade e género) e patologia de base [18-19]. O cálculo dos índices de
massa gorda e "não gorda" pode permitir, ainda, identificar e
comparar indivíduos que, apesar de um índice de massa corporal normal,
evidenciam um aumento potencial do risco associado à redução da massa
"não gorda" ou ao aumento da massa gorda [20]. Segundo alguns
autores, o ângulo de fase, que deriva directamente da resistência e da
reactância determinadas pela análise da impedância bioeléctrica mas não se
baseia em equações de regressão, pode constituir um indicador fiável da massa
celular corporal e da sua integridade, sendo considerado critério de
malnutrição quando inferior a 6º [18,19,31,32]; diversos estudos têm
demonstrado a correlação entre o ângulo de fase e a mortalidade e a morbilidade
após cirurgia gastrointestinal e as suas vantagens relativamente aos parâmetros
convencionais, como a perda ponderal involuntária e a avaliação global
subjectiva [18-19,32]; contudo, nem todos os analisadores permitem o cálculo
deste parâmetro.
Nesta série, entre os resultados da análise por impedância bioeléctrica,
salienta-se que os doentes operados perderam, em média, 3,9 Kg do peso, cuja
composição incluiu 48% de massa gorda, 35% de água total e 17% de componente
não aquoso da massa "não gorda", diferindo da composição corporal
total pré-operatória média (com 19,9% de massa gorda e 52,5% de água) e
revelando uma depleção predominante das reservas adiposas. Releve-se, ainda, o
aumento estatisticamente muito significativo da água corporal total no primeiro
dia pós-operatório, que se correlacionou positivamente com a duração do
internamento hospitalar e foi mais acentuado nos doentes que desenvolveram
complicações, com uma diferença próxima do limiar de significância estatística;
estes resultados são concordantes com os publicados na literatura.
No período pós-operatório, a tendência para expansão e redistribuição do volume
líquido é frequente [33], embora nem sempre clinicamente aparente; e decorre,
entre outros factores, da resposta endocrino-metabólica à agressão cirúrgica
(incluindo do aumento da secreção de aldosterona e de hormona antidiurética) e
da eventual agressividade da fluidoterapia [5]. Uma expansão excessiva,
particularmente no espaço extra-celular, pode induzir edema intersticial
pulmonar, sobrecarga funcional cardíaca e perturbações na cicatrização
tecidular, entre outros efeitos, agravando o prognóstico clínico [33]. Na
realidade, Itobi E et al [33], verificaram, num estudo publicado em 2006, que o
desenvolvimento de edema após cirurgia abdominal major é frequente e está
associado ao aumento da morbilidade e ao prolongamento do internamento; segundo
estes autores, a medição da impedância bioeléctrica em multifrequência pode
permitir a identificação e a monitorização dos doentes susceptíveis ao
desenvolvimento de retenção patológica de líquidos. Outros estudos recentes têm
sublinhado a influência da fluidoterapia peri-operatória na evolução clínica e
as vantagens da respectiva optimização, com manutenção rigorosa do volume
circulatório e evicção da sobrecarga hídrica; particularmente nos doentes de
elevado risco e nos submetidos a cirurgia major [34-6]. Em 2009, Aguilar-
Nascimento JE et al [34] constataram que a restrição da administração peri-
operatória de fluidos cristalóides endovenosos se associava a redução da
morbilidade e encurtamento do internamento pós-operatório após cirurgia
abdominal major quando comparada com o tratamento convencional. Segundo Abbas
SM et al [36], numa revisão de cinco estudos envolvendo 420 doentes submetidos
a cirurgia abdominal electiva major, a fluidoterapia adaptada ou "goal-
directed" (recorrendo à monitorização per-operatória com Doppler
transesofágico em detrimento do uso isolado das variáveis hemodinâmicas
convencionais) associa-se a diminuição da morbilidade e da duração do
internamento e ao restabelecimento mais rápido da função gastro-intestinal. Os
resultados de uma meta-análise publicada em 2009 por Rahbari NN et al [35],
incluindo nove estudos randomizados controlados, sugerem que a fluidoterapia
restritiva e a fluidoterapia adaptada se associam a uma redução significativa
da morbilidade global após cirurgia cólica.
No entanto, o recurso à impedância bioeléctrica para monitorização longitudinal
das alterações dos compartimentos corporais após cirurgia major tem diversas
limitações [18-19] que podem ter influenciado os resultados do presente estudo;
particularmente os relativos ao primeiro dia após a intervenção. A análise por
impedância bioeléctrica tem menor fiabilidade nos indivíduos com perturbações
do estado de hidratação (como nos casos de fluidoterapia agressiva, doença
crítica, edemas, entre outros) e com índices de massa corporal extremos
(inferiores a 16 ou superiores a 34 Kg/m2), devido as diferenças
interindividuais no grau de hidratação da massa "magra" demasiado
elevadas para o desenvolvimento de adequadas equações de regressão [18-19]. Por
outro lado, a avaliação sequencial no mesmo indivíduo pode, também, ser
dificultada pelas limitações de reprodutibilidade e precisão do método,
nomeadamente para variações inferiores a 1,5 ou 2 Kg [18-19]. Para além disso,
os diferentes segmentos corporais exercem efeitos variáveis na condutividade
tecidular, decorrentes de diferenças no grau de hidratação, na proporção de
tecido adiposo e na respectiva geometria. As variações de impedância traduzem
principalmente alterações da massa "não gorda" dos membros; as
modificações de massa "não gorda" ou de volume líquido do abdómen,
mesmo quando acentuadas, podem não influenciar significativamente a impedância
bioeléctrica, pois o tronco, apesar de representar cerca de 50% da massa
condutiva, contribui apenas 10% para a impedância corporal total [18-19]. Neste
contexto, o recurso à impedância bioeléctrica em multifrequência, à impedância
bioeléctrica segmentar e à espectroscopia por impedância bioeléctrica, poderia
ter sido útil para ultrapassar algumas das referidas limitações [18-19]; estes
métodos exigem, contudo, analisadores mais sofisticados e dispendiosos do que o
utilizado nesta série e carecem, ainda, de uma adequada validação.
No presente estudo, independentemente do nexo de causalidade entre a degradação
nutricional e a morbimortalidade, os resultados são inquietantes devido à
reconhecida e adversa repercussão clínica e económica da desnutrição.
Muitos autores têm demonstrado que a malnutrição exerce um efeito pejorativo na
evolução clínica e se associa a aumento da morbilidade e da mortalidade (por
alterações da função imunitária, perturbações da cicatrização tecidular e
degradação funcional, entre outros), a prolongamento do internamento, a
deterioração da qualidade de vida do paciente e a aumento dos custos económicos
[1]. Num estudo retrospectivo de 709 doentes internados em 25 hospitais,
publicado em 2003, Correia M et al [37], demonstraram, através de um modelo de
regressão logística multivariável, que a desnutrição (definida pela avaliação
global subjectiva) constitui um factor de risco independente de morbilidade e
mortalidade, de prolongamento do internamento e de exacerbação dos custos
económicos; os doentes desnutridos evidenciaram uma incidência de complicações
de 27% [risco relativo (RR)=1,60], aumento da mortalidade (12,4% versus 4,7%;
RR=2,63), prolongamento do internamento (16,7±24,5 versus10,1±11,7 dias) e
aumento dos custos hospitalares (até 308,9%). Na maioria das séries que abordam
esta temática, a duração do internamento hospitalar aumenta 40 a 70%, em média,
nos doentes desnutridos, atingindo os 500% nos casos de desnutrição grave [1].
Além disso, em muitos casos, a deterioração dos parâmetros nutricionais pode
não ser reversível, mesmo a longo prazo. Numa série publicada recentemente,
Carey S et al [38] verificaram, em doentes submetidos a cirurgia
gastrointestinal major, uma elevada prevalência (47%) de desnutrição (definida
pela avaliação global subjectiva), uma perda ponderal global de 9,8±10,5% e uma
forte correlação entre a qualidade de vida e o estado de nutrição (nos domínios
global, funcional e sintomático), 32,2±26 meses, em média, após a intervenção.
Por outro lado, existem evidências científicas de que a prevalência da
malnutrição hospitalar pode ser reduzida e o prognóstico clínico dos doentes em
risco optimizado, através de uma intervenção nutricional adequada [1,39,40].
Os objectivos da terapêutica nutricional peri-operatória incluem, segundo as
recomendações da Sociedade Europeia de Nutrição Entérica e Parentérica, a
minimizaçã da redução do balanço proteico (com preservação da função muscular,
imunitária e cognitiva) e a melhoria da convalescença pós-cirúrgica [41]. O
suporte nutricional artificial considera-se indicado, no período pré-
operatório, nos doentes com risco de desnutrição grave candidatos a cirurgia
electiva major e nos casos com aporte nutricional oral impossível ou
insuficiente (não satisfazendo pelo menos 60% das necessidades diárias) por um
período superior a sete dias e a 10 dias, respectivamente; e, após a
intervenção, nos pacientes cujo aporte oral seja previsivelmente impossível ou
inadequado por um período superior a sete dias e 10 dias, respectivamente e nos
casos de insuficiência gastrointestinal prolongada [41].
A inclusão de indivíduos submetidos a cirurgia bariátrica neste estudo não
parece ter influenciado as conclusões e foi justificada pela maior dificuldade
na detecção precoce do risco nutricional que caracteriza este subgrupo de
doentes, mesmo no contexto hospitalar. Apesar de o protocolo do estudo não ter
sido compatível com a análise de eventuais relações de causalidade entre a
degradação do estado nutricional e o agravamento prognóstico, não ter permitido
a determinação dos potenciais efeitos de uma intervenção terapêutica
nutricional nos pacientes em risco e não ter analisado a evolução a longo prazo
(particularmente relevante), os resultados são concordantes com a literatura
[1] e alertam para a gravidade do problema.
CONCLUSÕES
Neste estudo, salientam-se uma elevada percentagem de doentes cirúrgicos em
risco nutricional e uma alta prevalência de excesso ponderal e obesidade.
Verificou-se, ainda, uma significativa degradação dos parâmetros nutricionais e
de composição corporal no período pós-operatório de cirurgia electiva major,
directamente proporcional à duração do internamento, excepto nos parâmetros
analíticos e na massa gorda.
Os resultados corroboram a importância da avaliação sistemática, da
monitorização e de uma atempada e individualizada intervenção terapêutica
nutricional no período peri-operatório de cirurgia major.