Necessidade e Criatividade
PÁGINA DA SPC
Necessidade e Criatividade
J. C. Mendes de Almeida
A necessidade é a mãe da invenção. Face às correntes dificuldades em que
Portugal se encontra, há que recorrer a toda a capacidade criadora. É obrigação
dos cirurgiões tentar oferecer, a quem os procura, o melhor que sabem e podem
fazer. Em tempo de restrição, deve recorrer-se a todo o engenho para atingir
aquele objectivo.
Nesta época adversa, o principal desafio que se coloca aos Cirurgiões é talvez
dos mais difíceis de alcançar. É aquele de fazer o mesmo com menos, com muito
menos. Esta circunstância não vai ser uma opção, vai ser um constrangimento.
Parte importante dos gastos inerentes à Cirurgia são controláveis pelos
Cirurgiões. Assim haja vontade. É possível realizar, com eficiência e
segurança, um grande número de actos utilizando menos recursos. Os materiais
descartáveis, os dissectores e coaguladores, as colas e as suturas mecânicas
são em muitas, verdadeiramente muitas, situações dispensáveis. Representam uma
parte importante dos custos inerentes à nossa actividade. A limitação do seu
uso não irá ser facultativa, vai ser imposta. Há que fazer as mesmas cirurgias
sem dispôr, em muitos casos, destes recursos. Só pela restrição à sua
utilização será possível dispôr deste equipamentos para as situações em que
estes se tornam verdadeiramente imprescindíveis.
Outra das fontes de consumo, em que os Cirurgiões podem melhorar os orçamentos
cirúrgicos, é a gestão do internamento. Para além da desejável ambulatorização
de um conjunto importante de procedimentos, há que optimizar o tempo de
internamento. Se, na realidade, uma parte substancial deste não é controlável
pelos clínicos, existe todo um conjunto de medidas que o podem melhorar de
forma extremamente significativa. A primeira é a excelência dos cuidados. Boa
cirurgia implica menos complicações e, consequentemente, menor tempo de
internamento. Segundo, a utilização generalizada de protocolos ERAS (Enhanced
Recovery After Surgery), vulgarmente conhecidos como "fast-track",
pode ter um impacto enorme na duração da estadia hospitalar. Esta abordagem já
é actualmente empregue por vários centros nalgumas áreas cirúrgicas,
nomeadamente na cirurgia colo-rectal. Pode também ser aplicada, com grande
vantagem, a quase todo o universo cirúrgico, incluindo a cirurgia da mama,
gastro-esofágica e hepato-bilio-pancreática. Terceiro, a preocupação genuína na
redução dos tempos de internamento leva a um conjunto de medidas junto do
doente e da sua família que podem ter um resultado muito significativo.
Incluem-se neste grupo actuações como a alta hospitalar durante o fim-de-
semana, a comunicação da data previsível de alta aquando do internamento, a
alta com drenos, a identificação e referenciação ao Serviço Social dos casos
problema logo na admissão, e ainda muitas outras medidas de natureza
semelhante.
Seguramente que uma das grandes dificuldades, que os serviços cirúrgicos vão
enfrentar num futuro próximo, reside na limitação e regulamentação dos períodos
de trabalho extraordinário. Os serviços com maior actividade em regime de
urgência serão os mais afectados. Com grande probabilidade irão ocorrer
situações aparentemente irresolúveis ou que, no mínimo, colocacarão problemas
de muito difícil solução. A resposta possível para estas dificuldades, poderá
nem sempre ser a ideal, mas deve ser procurada com o maior engenho.
Provavelmente reside numa modificação de paradigma, numa forma organizativa
diferente. Uma das soluções possíveis reside na autonomização, mais ou menos
acentuada, das equipas cirúrgicas de urgência. Pode esta organização assumir
várias formas, da criação efectiva de uma unidade dedicada, à, mais simples,
constituição de equipas fixas que asseguram uma parte substancial do serviço de
urgência. A modificação organizativa permitirá, entre outras consequências,
derivar um conjunto importante de intervenções, normalmente realizadas durante
os períodos da tarde ou da noite, para o período da manhã e, assim, enquadra-la
num regime sem trabalho extraordinário. Estes esquemas permitirão reduzir o
número de cirurgiões de serviço durante os períodos em que aquele regime de
trabalho se torna mandatório.
Outra área em que é possível melhorar, e que tem um importante consumo de horas
cirúrgicas, é a dita "Pequena Cirurgia". Uma vasta proporção destes
actos não necessitam de um cirurgião para serem realizados. Médicos
adequadamente ensinados, preparados por um curso ou outro tipo de formação,
podem assegurar cerca de 90% dos actos deste tipo. O impacto desta organização
na disponibilidade dos cirurgiões para outras tarefas é seguramente importante.
Ainda se pode identificar uma outra componente importante de consumo da
disponibilidade de tempo cirúrgico, a dita triagem cirúrgica. Se, de forma
protocolada, os cirurgiões forem chamados a observar apenas doentes urgentes já
observados pelo médico de primeira linha, o dispêndio de tempo cirúrgico será
muito menor. Há claramente um importante conjunto de medidas que podem melhorar
de forma muito significativa os gastos de tempo e, consequentemente, reduzir a
dimensão das equipas de urgência. Seguramente que estas formas organizativas,
se não forem implementadas pelos serviços cirúrgicos, serão impostas,
seguramente de forma menos eficaz e aceitável, pelas administrações
hospitalares. Há por isso que tomar a iniciativa e ser activos na procura de
soluções para este difícil problema.
As dificuldades presentes são incomparavelmente menores do que aquelas que
teremos de enfrentar num futuro próximo. O horizonte que se aproxima é mesmo
muito negro. É através da concentração de recursos nas actividades e centros
operacionais essenciais que será possível manter a prática assistencial. O
tempo que se avizinha é o do possível, não o do desejável. É através da
eliminação do supérfluo que se pode conservar o fundamental.
Face ao descalabro de um país e, também, do seu sistema de saúde há que fazer
uma mudança de paradigma.