Avaliação do risco cirúrgico nos doentes com cancro colo-rectal: POSSUM ou
ACPGBI?
INTRODUÇÃO
Diversos modelos de avaliação peri-operatória do risco cirúrgico têm sido
desenvolvidos para calcular o risco de mortalidade dos doentes submetidos a
cirurgia por cancro colo-rectal (CCR). Um modelo ideal permitiria identificar
pré-operatoriamente os doentes com risco de mortalidade elevado, antecipar a
necessidade de cuidados pós-operatórios especiais em Unidades de Cuidados
Intensivos, ponderar a extensão da cirurgia em doentes de alto risco e
identificar doentes com risco cirúrgico elevado que beneficiariam de melhorar a
sua capacidade fisiológica previamente à cirurgia. Desta forma esse modelo
forneceria uma base sólida e objectiva do risco cirúrgico a transmitir ao
doente aquando do consentimento informado. Por outro lado, ao permitir comparar
a taxa de mortalidade entre instituições ou doentes, esse modelo forneceria uma
medição objectiva da condição pré-operatória do doente e do risco cirúrgico, o
que permitiria comparar a qualidade do serviço de saúde e dos procedimentos
cirúrgicos prestados entre instituições1. Apesar do desenvolvimento de vários
modelos para calcular esse risco cirúrgico, actualmente ainda não existe nenhum
que responda satisfatoriamente a todas estas necessidades.
Um dos primeiros modelos desenvolvidos especificamente para os doentes
cirúrgicos foi o Physiological and Operative Severity Score for the enumeration
of Mortality and Morbidity(POSSUM) em 1991 por Copeland e colaboradores2. Para
determinar o risco de morbimortalidade, este modelo necessita de doze
parâmetros fisiológicos e seis parâmetros operatórios (tabela_I). Os estudos
que se seguiram mostraram que este modelo sobreavalia o risco de mortalidade em
doentes de baixo risco e subestima o risco em idosos e em procedimentos
urgentes3-4.
Com o intuito de resolver esse problema, Whiteley e colaloradores3 em 1996
desenvolveram o Portsmouth POSSUM(P-POSSUM). Este modelo manteve os parâmetros
de avaliação presentes no modelo POSSUM mas alterou o método de análise
utilizado para prever a mortalidade do doente (tabela_I). Os estudos que se
seguiram mostraram que este modelo revelou melhor acuidade de previsão que o
POSSUM, embora mantendo limitações quando o risco cirúrgico era muito alto ou
muito baixo5-6.
Em relação aos doentes submetidos a cirurgia por CCR, os modelos POSSUM e P-
POSSUM sobreavaliam o risco de mortalidade desses doentes7. Assim, Tekkis e
colaboradores6 em 2004, desenvolveram um sistema de análise do risco cirúrgico
específico para os doentes operados por CCR: ColoRectal POSSUM(CR-POSSUM). Este
modelo foi desenvolvido com base no mesmo método de análise do P-POSSUM, mas
reduziu o número de parâmetros necessários para seis parâmetros fisiológicos e
quatro operatórios, tornando a sua aplicabilidade mais simples (tabela_I)6.
Os estudos que se seguiram mostraram que os modelos baseados no esquema POSSUM
subestimam o risco de mortalidade nos grupos de baixo risco e sobrestimam-no
nos grupos de alto risco. Contudo, o CR-POSSUM é um modelo de previsão da
mortalidade em cirurgia colorectal mais preciso que o POSSUM e P-POSSUM1, 8-10.
Em 2006 Vather e colaboradores11 vieram contrariar a maior acuidade do modelo
CR-POSSUM defendida por outros estudos. Segundo esse estudo, os modelos POSSUM
e P-POSSUM parecem ser melhores indicadores do risco de mortalidade que o CR-
POSSUM nos doentes operados a CCR, embora sem significado estatístico11.
Apesar da evolução observada, estes modelos continuam a apresentar várias
limitações que dificultam a sua aplicação na prática clínica. O CR-POSSUM,
mesmo sendo o mais simples dos três modelos POSSUM, necessita de muita
informação para calcular o risco cirúrgico12. Estes modelos baseados no esquema
POSSUM podem ser usados para prever a taxa de mortalidade em populações, mas
são menos precisos em prever o risco de morte dos doentes individualmente1.
Outros estudos referem ainda que estes modelos parecem ser demasiado
inespecíficos para a previsão da mortalidade em doentes com CCR, pois são
usados inespecificamente para patologia benigna e maligna13.
Para ultrapassar esta limitação, em 2003 a Association of Coloproctology of
Great Britain and Ireland(ACPGBI) desenvolveu um modelo específico para doentes
com CCR, mais simples que os modelos baseados no esquema POSSUM. Este modelo
baseia-se em cinco variáveis operatórias e mostrou ser uma boa ferramenta para
avaliar o risco de mortalidade imediata após cirurgia por CCR (tabela_II)14.
Os estudos subsequentes, desenvolvidos no Reino Unido, mostraram que o modelo
ACPGBI foi superior ao CR-POSSUM em prever a mortalidade após cirurgia electiva
por CCR, contudo em procedimentos emergentes o modelo ACPGBI subestimou o risco
de mortalidade, sendo os modelos CR-POSSUM e P-POSSUM superiores 13, 15. Uma
das explicações encontradas para justificar o facto do modelo ACPGBI ser
inferior aos modelos POSSUM deve-se ao facto de o primeiro incluir apenas a
pontuação da American Association of Anaesthetists(ASA) como factor
discriminativo em situações de emergência, enquanto os modelos POSSUM incluem
vários factores15. Fora da realidade dos cuidados de saúde do Reino Unido, os
estudos mostraram resultados diferentes16-18.
Apesar da crescente utilização da cirurgia laparoscópica para tratamento do
CCR, ainda está pouco estudada em termos de modelos de risco cirúrgico, No
entanto os estudos existentes mostram que os modelos baseados no esquema POSSUM
sobrevalorizam o risco de mortalidade nos doentes abordados cirurgicamente por
via laparoscópica19-20.
Actualmente a Association of Coloproctology of Great Britain and Irelandestá a
modificar o seu modelo de risco cirúrgico e tem disponível on-lineessa
adaptação21. O único estudo publicado que avaliou a acuidade da nova escala
ACPGBI, foi desenvolvido no Reino Unido e mostrou que este modelo é um método
simples e preciso de prever a mortalidade dos doentes operados por CCR tanto de
forma electiva como urgente22.
Com este trabalho os autores pretendem avaliar as diversas escalas de previsão
do risco cirúrgico e definir a que apresenta melhor acuidade no nosso centro
cirúrgico. Apesar da nova escala da Association of Coloproctology of Great
Britain and Irelandnão ter ainda sido validada, os autores usaram-na também
neste trabalho e definiram-na como ACPGBI modificado.
MÉTODOS
Foram analisados, retrospectivamente, os processos de 367 doentes submetidos a
tratamento cirúrgico por CCR no Serviço de Cirurgia Geral do Hospital de Braga
entre 1 de Janeiro de 2007 e 31 de Dezembro de 2009.
A selecção dos doentes baseou-se na listagem de doentes operados no Serviço de
Cirurgia Geral com diagnóstico histológico de CCR.
Definiram-se como critérios de exclusão: exérese do cancro sem ressecção de
intestino (exemplo: por polipectomia endoscópica); regressão do cancro pós
quimioterapia e radioterapia e ausência de dados no processo do doente que
permitisse calcular o risco cirúrgico. Após a aplicação destes critérios foram
excluídos 22 doentes, restando uma amostra de 345 doentes para a realização do
estudo.
Os dados foram colhidos por um único autor, com base no processo clínico em
papel e do sistema informático de apoio ao médico (SAM), e foi calculado o
risco cirúrgico de mortalidade para cada doente usando as escaladas de
avaliação POSSUM, P-POSSUM, CR-POSSUM, ACPGBI e ACPGBI modificado. A
estratificação do nosso estudo baseou-se na mortalidade dos doentes até 30 dias
após a cirurgia.
Para todas as escalas de risco foi comparada a mortalidade prevista com a
observada e realizada a análise de curva Receiver Operating Characteristic(ROC)
pelo programa IBM SPSS® Statistics 19.
RESULTADOS
O estudo incluiu 345 doentes operados por CCR, 219 homens e 126 mulheres com
uma média de idade de 68 anos. A maioria dos doentes apresentava cancro
localizado no cólon (69,0%) e foram submetidos a cirurgia de forma electiva
(86,4%) por abordagem laparotómica (95,1%) (tabela_III). A mortalidade pós
operatória global observada aos 30 dias foi de 3,768% (13 doentes).
Os dados foram analisados globalmente e por subgrupos: cirurgia electiva
vsurgente, cólon vsrecto, Dukes A-B vsC-D e ASA I-II vsIII-IV.
A tabela_IVapresenta os resultados de calibração dos vários modelos de
avaliação do risco cirúrgico (relação entre a mortalidade observada e a
esperada - ratioO:E). O modelo ACPGBI modificadofoi o que apresentou melhor
precisão na análises de todos os doentes (O:E 1,06) e na maioria de subgrupos
excepto nos doentes submetidos a cirurgia de recto e Dukes A-B nos quais o
modelo CR-POSSUM foi mais preciso (O:E 1,08 e 0,90, respectivamente) e nos
doentes ASA III-IV nos quais o modelo P-POSSUM foi mais preciso (O:E 1,10).
A capacidade de descriminação dos modelos foi calculada pelas curvas ROC
(figuras_1_a_9) e pelo valor da área debaixo da curva (area under curve- AUC)
(tabela_V). Apesar de todos os modelos apresentarem boa capacidade de prever a
mortalidade para o doente individual, o modelo ACPGBI apresentou melhor poder
de descriminação (AUC 0.867). Na análise de subgrupos o modelo ACPGBI continuou
a apresentar a melhor capacidade de descriminação excepto nos subgrupos de
doentes Dukes C-D e ASA III-IV nos quais os modelos POSSUM (AUC 0.813) e CR-
POSSUM (AUC 0.650) foram superiores, respectivamente. Nenhum modelo apresentou
diferenças estatisticamente significativas.
DISCUSSÃO
As escalas de determinação do risco cirúrgico foram analisadas tendo em conta a
sua calibração e discriminação.
A calibraçãoé a capacidade do modelo de prever a correcta probabilidade do
outcomepara uma população, ou seja a correspondência entre a mortalidade
observada e a esperada. No nosso estudo, o melhor modelo para prever a
mortalidade para a amostra doentes em geral foi o modelo ACPGBI modificado,
subestimando em apenas 6% a mortalidade observada (O:E 1.06).
A discriminaçãoé a capacidade do modelo atribuir melhor probabilidade do
outcomepara um indivíduo confrontando a sensibilidade e a especificidade desse
modelo, ou seja, é a capacidade de um modelo distinguir os doentes que irão
viver dos que irão morrer. Para avaliar a discriminação de cada modelo
utilizamos a curva ROC. O ideal seria que a curva se aproximasse do canto
superior esquerdo, ou seja, que atingisse o máximo de sensibilidade sem perder
a especificidade, dando uma área debaixo da curva (AUC) próxima de 1. Em termos
gerais, uma AUC=0.5 indica que a discriminação não é maior que uma
probabilidade ao acaso, 0.7â¥AUC<0.8 discriminação razoável, 0.8â¥AUC<0.9
discriminação excelente, AUCâ¥0.9 discriminação excepcional23. Apesar do
modelo ACPGBI não ter sido o modelo com maior capacidade de calibração, foi o
modelo que apresentou melhor capacidade de discriminação para os doentes em
geral (AUC 0,867) e para a maioria dos subgrupos (tabela_V).
Os estudos publicados que compraram as escalas baseadas no modelo POSSUM com o
modelo ACPGBI não tiveram resultados unânimes na selecção da melhor escala de
risco cirúrgico13,15-18.
Enquanto que os estudos ingleses reconhecem que o modelo ACPGBI desenvolvido
nesse país apresenta boa precisão em calcular o risco cirúrgico dos doentes
submetidos a cirurgia por CCR de modo electivo e menor precisão nos doentes
urgentes13, 15, os estudos de outros países mostram resultados diferentes16-18.
Um estudo italiano desenvolvido por Ugolini e colaboradores16 mostrou que o
modelo ACPGBI sobrestima em mais de três vezes o risco de mortalidade nos
doentes submetidos a cirurgia por CCR no seu centro (mortalidade observada
6,25% vsmortalidade estimada pelo modelo ACPGBI 19,42%)16.
Na Holanda, Teeuwen e colaboradores17 analisaram o risco de mortalidade dos
doentes submetidos a cirurgia colo-rectal por patologia maligna e benigna e
mostraram que na patologia maligna o modelo ACPGBI foi superior aos modelos
POSSUM tanto nos doentes submetidos a cirurgia electiva como a cirurgia
urgente17.
Na China, Yan e colaboradores18 desenvolveram um estudo que incluiu os três
modelos POSSUM, o modelo APACHE II e o modelo original ACPGBI e concluíram que
os modelos CR-POSSUM e ACPGBI eram os modelos mais precisos para prever a
mortalidade nos doentes operados por CCR (AUC 0,89 e 0,87, respectivamente)18.
Os nossos resultados vieram confirmar o que os resultados de outros autores de
centros cirúrgicos de diferentes países transmitem: as escalas de risco
cirúrgico desenvolvidas dentro da realidade de um país podem não ser
reprodutíveis noutro país.
CONCLUSÕES
Nenhum modelo mostrou ser estatisticamente superior a outro, contudo existe um
princípio lógico definido com Navalha de Occamque afirma que "se em tudo o
mais forem idênticas as várias explicações de um fenómeno, a mais simples é a
melhor". Se aceitarmos este princípio como base do conhecimento
científico, então o modelo ACPGBI deve ser o modelo eleito, não apenas por
apresentar melhor capacidade discriminativa, mas também por ser o mais simples
de aplicar.
No entanto, o nosso estudo apresenta algumas limitações que devem ser tidas em
conta na análise dos resultados. A principal limitação é ser um trabalho
retrospectivo que torna difícil garantir a correcta colheita de dados que estão
dependentes da qualidade do registo (por exemplo a perda hemática e a
existência de contaminação peritoneal). Outra limitação está relacionada com o
tamanho da amostra e pela maioria das cirurgias (95%) terem sido realizadas por
laparotomia.
Uma limitação inerente à aplicação destes modelos de classificação do risco
cirúrgico é a baixa mortalidade que restringe as conclusões da análise
estatística, especialmente nas divisões por subgrupos de doentes.
As escalas utilizadas foram desenvolvidas noutros países e nenhuma dessas
escalas foi adaptada à realidade portuguesa. Os autores reconhecem a
pertinência em desenvolver um estudo prospectivo, multicêntrico e que tenha em
linha de conta a realidade dos hospitais portugueses, a fim de criar uma escala
de risco cirúrgico adaptada à realidade do nosso país.