Editorial
INVESTIGAÇÃO EM CIRURGIA / RESEARCH IN SURGERY
Editorial
João Lobo Antunes
Professor Catedrático de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa
Presidente do Instituto de Medicina Molecular
Correspondência
Pouco depois do início do meu internato em Neurocirurgia no Instituto
Neurológico de Nova Iorque em 1972, o meu "Chairman" chamou-me para
me dizer que a preparação que eu trazia do Hospital de Santa Maria e do
Hospital Júlio de Matos fizera com que estivesse muito avançado em relação aos
colegas do meu ano, e que portanto iria passar seis meses num laboratório de
investigação. Quando acabei a especialização voltei em "full-time" ao
laboratório durante mais dois anos. Desse trabalho nasceu uma tese de
doutoramento que pouco tinha que ver com a Neurocirurgia. Intitulava-se "A
regulação nervosa da função reprodutora no macaco Rhesus". Quando revejo o
que ganhei durante esse tempo no International Institute for the Study of
Reproduction, só posso concluir que foi decisivo para a minha prática como
clínico e contribuiu também para o meu treino cirúrgico, pois eu operava o
"rhesus" com o mesmo cuidado como que tratava o "sapiens".
É verdade que o meu conhecimento da clínica iluminava com outra claridade
alguns dos aspectos da nossa investigação, mas o que recebi excedeu largamente
o que tinha para oferecer. E vale a pena enunciá-lo:
- A prática da cirurgia experimental. Operei ratos, cães, ovelhas e macacos e
não deixava de me surpreender com a esplêndida homologia anatómica e funcional.
- A aprendizagem do método científico, a procura de uma resposta precisa a uma
pergunta claramente formulada. Percebi a necessidade de replicar os resultados,
de verificar o rigor da prova e respeitar a integridade na sua comunicação. A
investigação tornou-me, naturalmente, mais exigente e também mais céptico. E
assim fiquei marcado para toda a vida. É talvez por isso que leio ainda hoje a
abundante literatura neurocirúrgica com o olhar severo que me permite
distinguir com mais acerto o que é realmente novo, sério e útil.
- O culto da interdisciplinaridade e o diálogo com as outras ciências, o que me
foi particularmente útil quando, muitos anos depois, me lancei com a Prof.ª
Carmo Fonseca na fundação do Instituto de Medicina Molecular de que tanto me
orgulho.
- O treino na publicação científica, na clareza da exposição, na selecção da
informação, na pesquisa exaustiva da bibliografia. Muitas horas passei (e que
saudades tenho desse tempo) na biblioteca da minha Universidade de Columbia.
Então percebi bem a verdade do aforismo de Drummond Rennie - "science does
not exist until it is published". Diga-se, de passagem, que o mundo da
comunicação em Cirurgia é vasto e cada vez mais sofisticado e vai desde a
comunicação oral (que murcha se não é transformada em artigo científico), à
demonstração cirúrgica editada ou transmitida em tempo real - com os riscos que
comporta e as questões éticas que suscita -, à videoconferência e à
telemedicina. Assim vamos polindo o nosso ego, sempre mais lestos a anunciar
triunfos que a confessar desastres.
O panteão dos cirurgiões descobridores ou inventores (e a distinção é mais do
que semântica) é notável. Entre os pioneiros, recorde-se John Hunter [1] que
além de ter inventado um tratamento cirúrgico para aneurismas da artéria
popliteia, decidiu, temerariamente, decifrar o mistério da unicidade das
doenças venéreas (eram a sífilis e a gonorreia entidades distintas?) auto-
inoculando-se. Hunter inspirou o "Hunterian Laboratory of Experimental
Medicine" criado em 1905 no John Hopkins Hospital por Harvey Cushing, pai
da minha especialidade, ele mesmo filho dilecto da Cirurgia Geral [2]. Com
Kocher Cushing investigara a fisiopatologia da hipertensão intracraniana. Mais
tarde descobriu a etiologia da doença que tem o seu nome.
Cirurgiões de curiosidade infrene foram Reynaldo dos Santos e seu filho João
Cid dos Santos [3], como fora antes deles Egas Moniz, que só não foi cirurgião
porque as suas mãos gotosas o não permitiram. Entregou essa missão a Almeida
Lima, que foi mais que o executor passivo das ideias do mestre e com ele
começou a trabalhar ainda como estudante de medicina. Também João Cid
investigou desde o 4.º ano do curso, e aplicou a técnica angiográfica ao
estudo das veias e inventou o endarterectomia - que William P. Longmire
considerou um dos marcos da ciência cirúrgica contemporânea - destruindo o que
chamou "mito da íntimo". Cid era, no entanto, um crítico severo de
amores de ocasião e dizia: "Não faz sentido um clínico, lá porque se ia
doutorar, fechar-se uns meses no laboratório, matar meia dúzia de ratinhos para
dizer que tinha feito uma investigação".
Provavelmente a viragem intelectual de uma cirurgia puramente técnica, para uma
ciência que buscava a compreensão da natureza da resposta biológica que a
agressão combinada da doença e do tratamento operatório necessariamente
provocam na homeostase que nos equilibra, foi obra de homens como Francis D.
Moore [4] que em 1959 publica o seu "The Metabolic Care of the Surgical
Patient". A transição continuou com Joseph Murray e mais tarde Thomas E.
Starzl [5] que, lançados na cirurgia dos transplantes de órgãos, foram pedir
socorro a outras ciências para domar a rejeição imunológica.
A verdade porém é que o cirurgião-investigador está hoje tão ameaçado quanto o
médico-investigador. As causas são múltiplas mas nenhuma delas inultrapassável.
Em primeiro lugar, o avanço científico em rapidíssima espiral, obriga à
constante actualização nas técnicas e a um treino especifico em investigação.
Paralelamente, as tarefas clínicas são cada vez mais absorventes, e a motivação
para investigar durante o treino clínico é mais débil, como é igualmente
desencorajante o reconhecimento académico desse esforço. Ao contrário do que eu
próprio vivi como interno, em que estava bem presente a intenção de me
educarem, entre nós valoriza-se quase só a prestação clínica e o cumprimento de
uma rotina de obrigações, e muito pouco se atende ao carácter essencialmente
plástico e individual de qualquer processo formativo.
Resta, no entanto, muito a investigar e a comunicar em Cirurgia. A título de
exemplo podemos enumerar:
- O relato do caso singular - porque é raro ou porque foi resolvido de forma
original.
- A revisão de séries cirúrgicas em análise retrospectiva ou prospectiva. Esta
permite ensaios comparativos entre duas técnicas ou entre tratamentos médicos e
cirúrgicos. Note-se, no entanto, a escassez de estudos controlados e
randomizados que sustentam menos de 10% da nossa actuação terapêutica. As
dificuldades são óbvias pela necessidade de ocultação da aleatorização, pela
reticência ética quanto à "cirurgia placebo", pelo chamado
"efeito do virtuoso", e pela escassez do financiamento. Sublinhe-se
ainda que a distinção entre inovação terapêutica e tecnológica e
experimentação, nem sempre é nítida, como não o é igualmente, entre a variação
técnicaque admite um consentimento informado "normal", um resultado
previsível e um risco aceitável, e a inovação cirúrgicaque obriga à aprovação
de um protocolo, um consentimento informado adaptado, pois o resultado é mais
difícil de prever e o risco por vezes difícil de estimar.
É vasto o cemitério onde se sepultaram intervenções que morreram porque tinham
pouco préstimo ou muito risco (ou ambas as características) desde a sangria, a
glomectomia para tratar asma, ou como li não sei onde, o shunt ponto-cava
profilático. Todas elas, mais as que venceram a prova do tempo, nasceram no
cérebro de cirurgiões como nós, por razões tão diversas como a insatisfação, a
curiosidade ou a imaginação ou mesmo motivos menos nobres como a ambição ou a
procura da fama. Mas provavelmente todos os seus autores tinham em grau maior
ou menor aquela faculdade que René Leriche enunciou em fórmula de lapidar
simplicidade: "Il faut s'étoner". É que a ciência nasce sempre de uma
pergunta, e a nossa prática quotidiana é fonte, inesgotável de interrogações.