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EuPTCVHe1646-69182013000100014

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variedadeEu
ano2013
fonteScielo

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Formação Cirúrgica e Investigação INVESTIGAÇÃO EM CIRURGIA Formação Cirúrgica e Investigação J. C. Mendes de Almeida Director de Cirurgia Geral do IPO de Lisboa Correspondência

"An education in Medicine involves both learning and learning how; the student cannot effectively know unless he knows how"

Abraham Flexner, 1910

A cirurgia moderna tornou-se uma disciplina científica. No presente, o diagnóstico, a tomada de decisões e a execução técnica, se não desprovidos de variabilidade individual, assentam, no essencial, num conjunto de conhecimentos e métodos que resultam da aplicação da metodologia científica à patologia humana. Esta característica é diferenciadora da Medicina Moderna, de matriz ocidental, das ditas "Medicinas Alternativas" que, pela ausência do escrutínio do método científico, não podem reivindicar para si a pertença a esta escola de pensamento. Se a prática médica moderna assenta nos pilares da ciência, torna-se claro que, para dominar os conhecimentos que a ciência gera, é necessário compreender a forma e o método que os criou. A percepção desta realidade, que Flexner entendeu no início do século XX, foi um dos passos fundamentais para o posterior desenvolvimento da Medicina.

A necessidade do domínio da forma e do método científico aplica-se ao treino dos cirurgiões? Esta questão tem uma resposta tão evidente que se pode considerar axiomática. Se muita da informação em que se baseia a prática cirúrgica tem um suporte científico não muito sólido, existem no entanto formas científicas de lidar com esta imperfeição que permitem resultados clínicos de excelente nível e impensáveis algumas décadas. Para aquelas áreas em que dispomos de provas de elevado rigor científico, aplica-se, de igual forma, metodologia que permite estabelecer formas de actuação altamente seguras e eficazes. Os procedimentos em causa são os da "Medicina Baseada na Evidência" que, quando aplicados criteriosamente, permitem valorizar a informação, estabelecer redes de conhecimento e definir actuações recomendadas.

A qualificação da informação, que estes métodos possibilitam, gera a possibilidade de estabelecer linhas de orientação para o diagnóstico e terapêutica que são um dos actuais instrumentos para a generalização de uma boa prática clínica. No entanto, avulta a questão de ser possível compreender, com razoável profundidade, normas, recomendações e artigos científicos sem conhecer os passos percorridos para originar aquelas peças de informação. Colocando o problema de outra forma, como compreender a ciência sem lhe conhecer o método? Como estabelecer uma prática clínica de natureza científica sem poder compreender a forma como a informação em causa foi estabelecida e qual a sua robustez. Sem esta capacidade de entendimento não é possível discutir a validade de um artigo científico ou de qualquer outro conjunto de dados. Em suma, sem o entendimento do método científico não é possível estabelecer uma cirurgia científica e, assim, a formação em ciência torna-se fundamental ao treino dos cirurgiões.

Uma das caraterísticas fundamentais da personalidade, e prática, do cirurgião é a sua capacidade de tomar decisões. A actividade cirúrgica no século XXI exige que todas as decisões sejam fundamentadas e que a sua legitimação assente no melhor conhecimento disponível. Não é aceitável, para a grande maioria das situações, a argumentação baseada em "eu acho que" ou "na minha experiência". em situações de total ausência de melhor prova se pode recorrer a esta linha de argumentação. Este é o mais fraco grau de prova de uma cirurgia baseada na evidência.

Assim, a discussão clínica deve basear-se em resultados de estudos. Estes podem ser de diversos tipos mas, consideram-se como de maior validade, os estudos de fase III ou randomizados. Este tipo de estudos têm um conjunto de características que lhes conferem a posição de serem o melhor instrumento de que dispomos para estudar a realidade clínica. No entanto, estas particularidades, quando não cumpridas, podem inviabilizar totalmente a interpretação dos resultados, tornando o estudo inconclusivo e com recomendações inválidas do ponto de vista científico. Outro dos problemas destes estudos prende-se com a sua interpretação. Geralmente são realizados em populações muito bem definidas e não é de todo claro que, os resultados neles obtidos, sejam generalizáveis para o conjunto de todos os doentes com a patologia em estudo. Esta generalização não é mais do que um raciocínio por inferência e, como tal, de validade muito questionável. Estas são algumas das questões que um cirurgião deve, no momento actual, saber discutir sob pena de estar a interpretar os resultados de forma incorrecta.

Contrariamente a visões correntes de que o cirurgião deve ser enciclopédico, chamo a atenção para o facto de a informação estar actualmente disponível como nunca antes, à distância de um "click", e que é absolutamente fundamental saber interpretar e valorizar a informação que nos chega. O cirurgião tem que saber mas tem que, de igual forma, saber qualificar aquilo que aprendeu. Fica a dúvida sobre a actual capacidade da comunidade cirúrgica em abordar estes problemas. A necessária revisão da formação dos internos nestas matérias melhorará de forma indiscutível a prática clínica quotidiana.

A questão seguinte coloca-se na forma de como fornecer formação científica aos cirurgiões em treino. Para abordar esta questão torna-se fundamental definir ab initioa extensão da formação em ciência. Deve o cirurgião adquirir competências de investigador ou, ao invés, limitar-se aprender a metodologia e a conhecer os meandros da interpretação de dados? Não é fácil a resposta. Penso que o objectivo de um programa de formação em cirurgia é de formar cirurgiões e não de criar investigadores. No presente existe uma profunda distorção do que deve ser a formação em ciência durante o internato. Não é através da exigência curricular, de apresentação de umas quantas comunicações ou posters em congressos, que se faz a formação em ciência dos internos. É uma visão particularmente negativa pois a verificação da qualidade é sempre omitida, resulta num deplorável espetáculo presente em muitos congressos e contribui para uma ideia completamente errada do que é fazer ciência.

Esta prática não é formação, é deformação.

A situação actual não faz mais do que contribuir para a curriculite do internato, antecâmara da distorção em que vivem as carreiras médicas. Assim, sendo a actividade assistencial o principal objectivo da formação do cirurgião esta deve ser enfatizada, mas, como ficou exposto, o seu treino em ciência é fundamental para lhe permitir desenvolver uma boa prática clínica. A ciência como suporte da clínica.

Assim, entendo que lugar à criação de dois programas distintos de formação em ciência para os cirurgiões. O primeiro, mais básico e obrigatório, deve consistir num período temporal limitado, por exemplo de seis meses, integrado no internato de cirurgia e que coloque o interno num centro, hospitalar ou outro, onde se faz investigação. Considerando que é inevitável, a prazo, a criação no nosso país de centros de referência, o estágio num destes centros poderia acumular a função de formação clínica avançada numa determinada área com o treino em investigação. Este estágio de ciência deve ter como objectivos o domínio da metodologia científica aplicada aos estudos clínicos, uma exposição opcional à investigação experimental e a realização de um ou mais trabalhos correctos de investigação clínica. O segundo programa, mais ambicioso e muito selectivo, deve ser orientado para os internos de cirurgia que têm interesse, capacidade e vontade de associar, à sua formação cirúrgica, uma prática de investigação continuada. Muito dirigido a uma orientação académica, este tipo de programa exigente deve ter uma duração de dois ou três anos, incluir paragens da formação clínica para permitir a actividade científica e conduzir à obtenção de títulos, nomeadamente o doutoramento. existe em Portugal uma iniciativa neste sentido, promovido pela Fundação Gulbenkian, e que tem um sucesso evidente. Este tipo de programas de formação avançada em ciência não deveria ser esporádico, mas ficar institucionalizado junto da estrutura do internato clínico. Uma abordagem dual permitiria uma franca melhoria da formação científica de todos os internos e, em simultâneo, criaria a possibilidade de recrutar candidatos a cirurgiões académicos. A consequente melhoria do panorama científico global da Cirurgia limitaria os estragos que a pseudo-ciência, tão comum nas reuniões profissionais, faz no conjunto dos clínicos. É pior a investigação de faz de conta do que ausência de ciência.

A questão da formação do espírito não é um assunto encerrado na formação médica. Um conjunto de razões convergentes tem posto em causa aquela que parece ser uma necessidade evidente. A capacidade de formação nesta área não abunda.

As instituições, os escassos recursos humanos e a disponibilidade temporal dos potenciais formadores são factores limitativos da oferta. Não é qualquer instituição ou profissional que pode oferecer aprendizagem nesta matéria e, assim, a formação prestada é muito reduzida. Por outro lado é muito mais fácil fornecer formação na acção, entenda-se nos gestos e práticas clínicas. Esta é absolutamente essencial e deve ser tão eficaz quanto possível, no entanto, a formação de cirurgiões não se esgota neste aspecto. É claro que as pressões para sobrevalorizar a formação na acção são múltiplas. É mais fácil de fornecer, coincide com as necessidades hospitalares de utilizar internos em formação como força de trabalho, contribui também para a "curriculite" e para a deformação de objectivos em que vegetam as actuais carreiras médicas. Mas, a subvalorização da formação intelectual conduz inevitavelmente a uma prática clínica acéfala com os seus consequentes maus resultados clínicos.

É necessário relembrar o Prof. José Pinto Correia que, num artigo póstumo, publicado na Acta Médica Portuguesa, referia que o âmago da formação universitária está muito para além da formação na acção, reside essencialmente na formação do espírito. Esta posição, dirigida à formação pré-graduada, aplica-se na íntegra ao treino cirúrgico. Sem prejuízo da formação técnica, que aprofundar a formação científica dos cirurgiões. Desta forma que propor, às entidades competentes, uma nova formulação do internato cirúrgico que, entre outras reformas, inclua aspectos específicos, de natureza obrigatória, para a formação em ciência.

Antecipam-se grandes mudanças na área da Saúde. Os constrangimentos financeiros a isso vão conduzir. A todos serão exigidos níveis acrescidos de competência.

Vive-se o momento certo para mudar a qualidade do treino cirúrgico para que, tal como até agora, o futuro continue a exceder o presente.

Correspondência J. C. MENDES DE ALMEIDA e-mail: jcalmeida@ipolisboa.min-saude.pt


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