Carta ao Editor
Carta ao Editor
António Coutinho
Investigador. Presidente do Conselho Nacional de Ciências e Tecnologia
Ao longo das últimas décadas, o acumular vertiginoso de conhecimentos na
ciência biológica e na sua "extensão biomédica", trouxe a Medicina
moderna a um novo período histórico. Desvendámos o "segredo da
vida" e enterrámos o vitalismo, compreendemos como aqui chegámos ao longo
de uns 3,5 mil milhões de anos, pelo acaso da variação e pela selecção
evolutiva a partir de formas mais "simples" de vida. Conhecemos a
fisiologia das nossas células e o desenvolvimento dos órgãos e sistemas, e
ainda os mecanismos pelos quais o genoma determina tudo isto com, finalmente,
poucos genes. Começamos a descobrir as variações alélicas de tais genes na
população, que tornam cada indivíduo mais ou menos susceptível a influências
ambientais que podem provocar disfunção e doença. E estamos cada dia mais
próximos de inventar terapias racionais e curativas para uma grande variedade
de patologias. Desde logo, já usamos "racionalmente" anticorpos,
receptores e ligandos de sinalização celular, obtidos por engenharia genética,
no arsenal terapêutico corrente, e todos os meses aparecem mais possibilidades.
E também já usamos terapias génicas e celulares numa enorme variedade de
doenças hereditárias monogénicas. Muitos preparam já bancos de células
diferenciadas "à medida", a partir de "stem cells"
obtidas por "indução génica" de células somáticas do adulto,
destinadas à substituição de tecidos ou órgãos. Em resumo, como todas as outras
tecnologias, que são hoje de base exclusivamente científica, a Medicina actual
é "science-based". Está assim ultrapassado o breve período da
chamada "evidence-based medicine", simples codificação de
empiricismo colectivo, defensora de tal empiricismo antes da compreensão, pouco
interessada nas bases genéticas, moleculares, celulares e sistémicas dos
mecanismos de fisiologia e de doença. Se ao longo de quase um século receitámos
aspirina sem saber como funcionava, apesar de conhecer todas as indicações e
contraindicações, esta posição deixou de ser aceitável.
Aos avanços no conhecimento, juntou-se, de maneira inseparável, o progresso nas
tecnologias, que nos permitem hoje "vêr" órgãos, células, mesmo
moléculas, dentro de cada paciente, medir "biomarcadores"
diagnósticos e prognósticos no sangue, analisar genes e variações alélicas
associadas a doenças hereditárias ou a riscos aumentados de variadas
patologias, mas ainda avanços tecnológicos nas terapêuticas, nomeadamente em
cirurgia, em novos materiais, em radioterapia e na formulação dos medicamentos.
Assim, a cirurgia não pode ficar indiferente a esta "vaga de fundo"
da Medicina moderna. Como toda a investigação médica, que deve ser, parece-me,
"from the bed-side to the bench", as perguntas relevantes a serem
investigadas devem ser aquelas às quais o clínico se confronta na sua prática.
Ou seja, a investigação clínica ou mesmo a de "translacção" é uma
actividade normal e natural de qualquer médico, desde que pretenda melhorar a
sua prática e o que pode fazer pelos seus doentes. Algumas perguntas não têm
sequer de chegar à "bench" e podem ser resolvidas por comparação
entre métodos alternativos ou pelo melhoramento dos existentes, sem por isso
deixar de ser boa investigação clínica. Outras perguntas exigirão
experimentação em modelos animais e muito laboratório, mas felizmente que os
nossos hospitais estão hoje associados a centros de investigação biomédica de
qualidade, onde tal se pode fazer. Outras ainda necessitarão de análises
detalhadas de séries de casos comparáveis, à luz de novas propostas de
diagnóstico ou terapêutica ou, simplesmente, no teste de novas hipóteses
etiológicas. Este tipo de investigação clínica requer, naturalmente, o acesso a
bases de dados com toda a informação relevante, em números de casos que não se
compadecem com a experiência individual e exigem a contribuição de todos os
centros no país, se não na Europa. Pode dizer-se com segurança que, enquanto
tais bases de dados não estiveram disponíveis a todos os que pertinentemente as
queiram utilizar, não é possível fazer boa investigação clínica em Portugal.
Esta é uma obra colectiva de extrema urgência, cujos frutos ficarão também à
disposição de todos. Se muitos colegas hesitam antes de se lançarem em
experiências complicadas no laboratório; se todos tivemos de esperar décadas
até que centros de investigação biomédica fossem construidos e apetrechados, a
construção de bases de dados de cada patologia depende quase só de nós médicos.
Se não as temos disponíveis, se não podemos fazer investigação clínica quanto
queríamos, a culpa é, portanto, quase só nossa.
Lisboa, Maio de 2013.