O pé diabético com infecção aguda: tratamento no Serviço de Urgência em
Portugal
ABREVIATURAS
OMS Organização Mundial de Saúde; TAC Tomografia axial computorizada, RMN
Ressonância magnética nuclear; CMUP Consulta Multidisciplinar de Úlcera de
Perna.
INTRODUÇÃO
A diabetes é uma doença em expansão mundial que cresce a um ritmo de nove
milhões de novos casos/ano. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que em
2030 existam 552 milhões de diabéticos, com uma taxa de prevalência de 9.9% na
população adulta. Se tomarmos em consideração os efeitos devastadores da
doença, pela morbilidade e mortalidade associadas à sua evolução, podemos dizer
que estamos perante uma verdadeira pandemia.
Em Portugal o panorama é semelhante. De acordo com o Relatório Anual de 2012 do
Observatório Nacional da Diabetes1, o número de novos casos anuais
diagnosticados oscila entre os 600 e 700 por 100 000 habitantes, sendo que a
prevalência na população adulta entre os 20 e 79 anos é de 12,7%. Esta taxa
sobe para 27,1% se considerada apenas a população entre os 60 e os 79 anos de
idade1. Ainda de acordo com o mesmo relatório, a taxa de pré-diabetes na
população entre os 20 e os 79 anos cifra-se em 26,5%, o que significa que mais
de um terço dos portugueses são diabéticos ou pré-diabéticos .
O mau controlo da glicemia e o tempo de evolução da doença estão directamente
relacionados com diversas complicações sistémicas da Diabetes mellitus, sendo o
pé diabético uma das mais importantes, quer pelas repercussões que tem na vida
do doente, quer pelos custos socio-económicos que lhe estão associados.
De acordo com a OMS o pé diabético define-se como uma síndrome caracterizada
por uma úlcera no pé, localizada abaixo do maléolo, acompanhada de neuropatia e
diferentes graus de isquemia e infecção.
Em 2011, o International Working Group on the Diabetic Foot, apresentou os
seguintes factos sobre o Pé diabético no 6th International Symposium on the
Diabetic Foot2:
â A cada 20 segundos um membro é amputado em alguma parte do Mundo devido à
Diabetes mellitus.
â Mais de 70% de todas as amputações do membro inferior são efectuadas em
diabéticos.
â Mais de 70% dos amputados major do membro inferior morrem em 5 anos.
â Em cada ano, cerca de 4 milhões de pessoas de-senvolverão uma nova úlcera
de pé diabético.
â Nos países desenvolvidos, mais de 4% das pessoas com diabetes têm pé
diabético, gastando 12-15% do orçamento da saúde destinado ao tratamento
daquela entidade nosológica. Nos países em desenvolvimento o pé diabético
consome 40% do orçamento destinado para tratamento da diabetes.
â Mais de 85% das amputações são precedidas de uma úlcera que pode ser
prevenida.
â O pé diabético é a principal causa de internamento das pessoas com diabetes
e é a principal causa de internamento prolongado.
O pé diabético constitui assim um problema com um elevado peso social e
económico que põe em risco a sustentabilidade dos sistemas de Saúde e Segurança
Social de qualquer país, mas sobretudo dos países em desenvolvimento, onde a
pandemia da diabetes assume maior relevo3.
FISIOPATOLOGIA DO PÉ DIABÉTICO
A fisiopatologia das alterações que surgem nos pés dos diabéticos é complexa e
envolve múltiplos processos4,5. A sua explanação pormenorizada não cabe no
âmbito desta exposição, realçando-se alguns pontos que se consideram da máxima
importância.
A hiperglicemia prolongada é o elo comum que une os três pilares responsáveis
pela formação da úlcera no pé dos diabéticos: neuropatia, isquemia e infecção6
(Figura_1).
A exposição permanente e prolongada à hiperglicemia provoca alterações
degenerativas nos axónios de todas as fibras nervosas. Primeiro são atingidas
as fibras autonómicas simpáticas, seguindo-se as fibras sensitivas e motoras.
A neuropatia simpática é responsável pelo bloqueio da sudorese e pela abertura
dos shuntspré-capilares, proporcionando o aquecimento e edema do pé e a
desidratação da pele, o que favorece a formação de fissuras, possíveis
"portas de entrada" para bactérias.
A neuropatia motora provoca atrofia dos músculos intrínsecos do pé dando origem
a alterações estruturais da arquitectura do pé, responsáveis pelo
desenvolvimento de áreas de hiperpressão intrínseca, locais potenciais para a
formação de úlceras.
Por último, a neuropatia sensitiva que impede o doente de se defender das
agressões intrínsecas ou extrínsecas, permitindo o desenvolvimento de lesões
graves (Figuras 2 e 3). Esta complexa polineuropatia periférica faz com que os
doentes se "esqueçam" de que têm pés, tornando-os permeáveis a
situações aberrantes, mas bastante frequentes, como andar um dia inteiro com
uma pedra (ou outros objectos) no sapato.
No que concerne à isquemia arterial, a Diabetes mellitus, por múltiplas vias,
constitui um factor de risco independente para a aterosclerose e potencia
outros factores de risco, como o tabagismo. A aterosclerose nos diabéticos
surge mais precocemente, atinge preferencialmente os vasos de médio/pequeno
calibre do sector femoro-popliteu e tende a ser bilateral.
Relativamente ao pilar da infecção, os diabéticos, sobretudo aqueles com mau
controlo metabólico, têm uma maior susceptibilidade a desenvolverem-na por
apresentarem a sua imunidade inata reduzida.
A úlcera do pé diabético tende a evoluir para a cronicidade, seja pela sua
localização, pela diminuição da acuidade visual secundária à retinopatia
diabética, ou pelo simples facto de ser indolor, pelo que frequentemente não é
valorizada ou reconhecida pelo doente (Figura_4). Apenas dois terços das
úlceras cicatrizam, mesmo sob cuidados médicos adequados, apresentando um tempo
médio de cicatrização de aproximadamente seis meses.
O PÉ DIABÉTICO INFECTADO
Factores como a cronicidade, a ausência de cuidados gerais pelo próprio doente
e, principalmente, a diminuição da eficácia dos mecanismos de defesa da
imunidade, determinam que 40 a 80% das úlcera do pé diabético progridam para a
infecção embora em grau de gravidade variável6.
De acordo com a Infectious Diseases Society of America, a infecção das úlceras
pode ser classificada em três graus de gravidade7:
â Infecção ligeira: exsudado purulento associado a dois ou mais sinais de
inflamação, eritema peri-úlcera < 2 cm, limitado à pele ou tecido celular
subcutâneo.
â Infecção moderada: infecção de grau ligeiro associada a eritema peri-úlcera
> 2 cm, linfangite, gangrena, abcesso profundo, extensão abaixo da fascia
superficial ou atingimento de músculo, tendão, osso ou articulação.
â Infecção grave: infecção de grau ligeiro ou moderado, associada a sinais de
toxicidade sistémica ou instabilidade metabólica.
Esta estratificação da gravidade da infecção é importante porque, se uma
infecção moderada pode colocar em risco o membro, uma infecção grave coloca a
vida do doente em risco. É com base nesta estratificação do grau de infecção
que se deve estabelecer o plano de tratamento destes doentes, desde o tipo e
via de administração do antibiótico até ao local de tratamento (em ambulatório
ou em internamento).
Em regra os doentes com infecção moderada ou grave recorrem ao médico e ao
serviço de urgência porque têm dor no pé quando fazem apoio, independentemente
de apresentarem ou não sinais inflamatórios visíveis. Na actual estrutura dos
serviços de urgência hospitalar são os cirurgiões gerais que assumem a
abordagem inicial e o tratamento destes doentes. Há com frequência uma
subavaliação da gravidade da situação clínica, mas refira-se que a mortalidade
aos cinco anos do diabético que sofre uma amputação majoré superior a muitas
formas de cancro8.
As infecções moderadas e graves requerem tratamento urgente. Estes doentes
devem ser internados para início de antibioterapia e tratamento cirúrgico
urgente, com colheita de material para microbiologia. O tratamento na urgência
tem como objectivos controlar o foco séptico e minimizar o efeito altamente
destrutivo da infecção em compartimento fechado. Adiar o tratamento cirúrgico
além de pôr em risco o membro é responsável pelo prolongamento dos
internamentos.
ANATOMIA DO PÉ E SUAS IMPLICAÇÕES NA EVOLUÇÃO DA DOENÇA
Quem trata os doentes com pé diabético deve ter bem presente a anatomia
cirúrgica do pé, não só para melhor compreender o quadro clínico e o processo
fisiopatológico subjacente, mas sobretudo para escolher e proceder a adequado
tratamento cirúrgico.
O pé é um órgão altamente especializado que suporta o peso de todo o corpo e
desempenha um papel fulcral na locomoção. Tem como centro a arcada óssea que é
revestida por músculos, tendões, aponevroses, tecido celular e pele, dispostos
em igual número de camadas na face plantar e dorsal, mas de forma assimétrica
(Figura_5).
Enquanto a pele, o tecido celular subcutâneo e a fascia superficial da face
plantar são espessas e fixas, na face dorsal essas mesmas estruturas são finas
e móveis. No plano muscular, a face plantar tem uma camada muscular espessa e
complexa, disposta em três grupos (interno, médio e externo), separados por
dois septos fibrosos com origem na fascia plantar superficial e que se inserem
na arcada óssea. Pelo contrário, na face dorsal a camada muscular é constituída
por um único músculo curto e estreito, o pedioso, apenas mais espesso na parte
posterior, e recoberto pelos tendões dos longos extensores dos dedos.
A fascia superficial plantar, também designada por aponevrose plantar, ao
contrário da sua similar dorsal, é uma estrutura fibrosa densa que desempenha
um papel muito importante na marcha. Tem origem no calcâneo e dirige-se para a
cabeça dos metatarsos em forma de leque, formando conjuntamente com a arcada
óssea um compartimento relativamente estanque que contém os feixes vásculo-
nervosos, os músculos e os tendões dos flexores dos dedos. A aponevrose plantar
emite dois septos em direcção à arcada plantar que se vão fixar,
respectivamente, no 1° e 5° metatarsos, dividindo o compartimento plantar em
três locas: interna, mediana e externa (Figura_5), facto que tem grande
importância no diagnóstico e evolução clínica da infecção na face plantar.
Convém salientar que os tendões dos músculos flexores dos dedos são revestidos
por bainha tendinosa até às falanges distais, (Figura_6B) e que esta é a via de
eleição para a disseminação da infecção às estruturas mais profundas. Pelo
contrário, os tendões dos extensores dos dedos são apenas revestidos por bainha
tendinosa na sua porção conjunta, (Figura_6A), na zona do tarso. Esta
assimetria de revestimento dos tendões flexores e extensores dos dedos tem
repercussão na forma de apresentação clínica da infecção nas faces plantar e
dorsal do pé.
O pé é irrigado pelas artérias tibial anterior e tibial posterior (Figura_7). A
artéria tibial posterior é a principal e atinge a face plantar após passar
atrás do maléolo interno, onde se divide em dois ramos: o marginal interno que
termina na cabeça do 1° metatarso e o marginal externo que, na base do 5°
metatarso, inflecte para dentro dando origem à arcada marginal que se
anastomosa com a artéria perfurante dorsal, ramo da pediosa. Desta arcada
partem quatro ramos que depois se dividem em dois terminais que vão irrigar os
dedos.
A disseminação dos microrganismos pelas bainhas tendinosas aos planos profundos
desencadeia um processo inflamatório com edema dos tecidos atingidos. Como
estas estruturas se encontram num compartimento relativamente estanque ficam
sujeitas a um aumento de tensão. Na fase inicial da infecção o doente refere
dor quando faz carga no pé, por aumento da tensão sobre os tecidos e numa fase
mais tardia, pode ocorrer interrupção da circulação arterial e necrose
transparietal dos tecidos (Figuras_8), que pode evoluir para uma fase de
disrupção, uma síndrome compartimental do pé. Convém contudo referir que a
interrupção da circulação também pode ser causada por oclusão do eixo arterial
secundária a arterite causada pela própria infecção.
APRESENTAÇÃO CLÍNICA
O quadro clínico da infecção aguda do pé diabético na face dorsal é dominado
por uma celulite/fleimão, geralmente exuberante, dependendo do tempo de
evolução (Figura_9). Na face dorsal a propagação da infecção é por
contiguidade, devido à ausência das bainhas tendinosas dos extensores na sua
porção inicial.
Na face plantar o primeiro sintoma é a dor desencadeada pela carga e
reproduzida pela compressão digital à observação, no entanto em repouso o
doente não tem dor. Mais tarde surge eritema da pele (Figura_10) sobre o
compartimento afectado e dias depois, a área de rubor dá lugar a uma flictena
que encobre uma placa de necrose cutânea de extensão superior. Nessa altura a
infecção poderá atingir mais do que um compartimento ou até as duas faces do
pé, situação que com frequência compromete a viabilidade deste (Figura 11 e
12). Nas fases tardias o doente pode apresentar sinais sistémicos de infecção
como hiperglicemia de difícil controlo, febre, náuseas, vómitos e confusão
mental, bem como instabilidade hemodinâmica e metabólica.
Nas úlceras do bordo interno, face plantar e grande halluxa infecção tende a
propagar-se para a loca interna, seguindo a bainha do flexor próprio do 1° dedo
ou do tendão do adutor (Figura_13A). Por este motivo, é neste compartimento que
devemos pesquisar a existência de dor e eventuais sinais inflamatórios locais.
Nas úlceras plantares dos 2°, 3°, 4° dedos e respectivas pregas interdigitais,
os sinais de infecção difundem-se para a loca média (Figura_13B,C), seguindo o
trajecto dos tendões longo flexores dos respectivos dedos. Nas úlceras do 5°
dedo e pequeno halluxos sinais de infecção propagam-se para a loca externa
(Figura_16A).
FIGURA_14
Assim, a localização da dor e dos sinais inflamatórios estão intimamente
relacionados com a localização da úlcera devido a esta propagação selectiva
através das bainhas tendinosas dos flexores.
Analiticamente, na fase precoce apenas está presente uma elevação da PCR, em
regra significativa. Nas fases mais avançadas poderemos encontrar: PCR muito
elevada, leucocitose com neutrofilia, hiperglicemia e, por vezes, retenção
azotada e insuficiência renal, dado que estes doentes têm habitualmente
associado algum grau de nefropatia diabética.
TRATAMENTO
Genericamente, os doentes com infecção aguda profunda moderada ou grave devem
ser internados, não só porque necessitam de antibioterapia sistémica, muitas
vezes de uso exclusivo hospitalar, mas também porque a maioria carece de
tratamento cirúrgico urgente. Por outro lado numa fase ulterior, em
internamento, vão requerer cuidados médicos e de enfermagem diferenciados, bem
como evitar a carga sobre o pé afectado. A abordagem sistemática destes
doentes, depois da urgência, deverá ser feita por uma equipa multidisciplinar.
O tratamento destes doentes assenta em três vertentes: intervenção cirúrgica,
antibioterapia e apósito local.
A vertente cirúrgica consiste em proceder à drenagem do fleimão com uma incisão
ampla e alinhada pela úlcera que lhe deu origem, passando pela área mais tensa
do eritema, e suficientemente profunda para atingir a aponevrose superficial de
forma a prevenir e/ou tratar a síndrome compartimental que compromete a
irrigação sanguínea dos tecidos e inviabiliza a chegada dos antibióticos ao
local da infecção. Não deve ser esquecida a colheita simultânea de produto para
exame bacteriológico e respectivo teste de sensibilidade aos antimicrobianos
(TSA). Esta vertente é a mais importante, porque dela dependem a capacidade de
acção das outras duas e, por este motivo, deve ser realizada o mais
precocemente possível.
A segunda vertente é a antibioterapia, que se pretende de amplo espectro, tendo
em consideração que a infecção no pé diabético é em regra polimicrobiana e que,
por isso, deve incluir cobertura para Grampositivos e Gramnegativos, tendo em
consideração anteriores ciclos de tratamento antibiótico e a duração prévia da
úlcera. Tendo em conta estes últimos factores, a existência de episódio
anterior de infecção por Staphylococcus aureusresistente à meticilina (MRSA) e
ainda se a proveniência do doente for de área com elevada incidência deste
agente, deve ser ponderada a cobertura para MRSA9. Deste modo, é importante
proceder-se de forma sistemática à colheita de amostras de material infectado
(exsudado e biópsia de tecidos mais profundos) para exame bacteriológico10, de
forma a dirigir-se a antibioterapia, o mais cedo possível.
A terceira vertente diz respeito ao apósito/penso local. A este propósito
refira-se que não existe nenhum penso ideal. No entanto há alguns princípios
básicos a ter em conta. O primeiro princípio é que o penso não deve ser
compressivo, nem nas compressas locais nem na ligadura de suporte, pois para
além da infecção todo o pé diabético é um potencial pé isquémico e, como tal, a
compressão, mesmo que mínima, pode comprometer a irrigação dos tecidos. Outro
princípio importante é que a cura em meio húmido é melhor que em meio seco.
Neste contexto os autores deixam colocada no local uma butterfly(Figura_14B)
para instilar regularmente o líquido de opção (6/6h ou 8/8h), por forma a
obter-se uma cura em verdadeiro meio húmido permanente. Uma alternativa à cura
em meio húmido, que na nossa experiência tem tido genericamente bons
resultados, é a aplicação de sistemas de pressão local negativa também
designada de vacuoterapia. Esta técnica permite um tratamento em ambiente
húmido e fechado e que pelo seu modo de funcionamento contribui para reduzir a
carga bacteriana local11,12,13 sobretudo nos casos em que existe exsudado
necropurulento. É uma técnica que em alguns casos, dada a localização da lesão,
não é de fácil execução, em particular no pós-operatório imediato.
Enquanto que o diagnóstico da infecção aguda na face dorsal é evidente e a
necessidade de tratamento cirúrgico urgente não coloca muitas dúvidas, o
diagnóstico da infecção aguda na face plantar não é óbvio e requer elevado grau
de suspeita. Particularmente, no doente com neuropatia periférica que refere
aparecimento de dor na face plantar do pé, quando faz apoio, esta suspeita é
forte. Se a dor é reprodutível ao comprimir com o dedo selectivamente uma área
específica do pé e se analiticamente se acompanha com elevação da PCR, o doente
deve ser internado, iniciar de imediato antibioterapia de largo espectro e
fazer todas as diligências para confirmar o diagnóstico por métodos de imagem,
RMN ou TAC do pé afectado.
O tratamento da infecção aguda profunda da face plantar constitui uma urgência
médico-cirúrgica, porque quanto mais precoce for o início do tratamento menor
será a destruição local dos tecidos e também menor será o risco de ter de se
proceder a uma amputação major. Nas úlceras localizadas no bordo interno do 1°
dedo ou no hallux, que drenam para o compartimento interno, a incisão de
drenagem deve ser feita ao longo do bordo interno do pé (Figura_14).
Se, pelo contrário, a infecção se propaga para o compartimento médio, como
acontece nas úlceras localizadas nos 2°, 3°, 4° dedos e respectivos espaços
interdigitais a incisão deverá ser feita na área central seguindo a direcção da
área de rubor (Figura_15).
Nas úlceras do 5° dedo e do pequeno halluxa incisão é feita na porção mais
exterior da face plantar/ bordo externo do pé (Figura_16).
Nas fases mais avançadas, que além da dor e PCR elevada, apresentam rubor, deve
proceder-se à drenagem cirúrgica urgente do compartimento, fazendo uma incisão
longitudinal ampla sobre pele, tecido celular subcutâneo e aponevrose plantar.
A incisão da aponevrose constitui a base do tratamento, porque a sua abertura
vai permitir descomprimir o compartimento, aliviando a tensão sobre os músculos
e as pequenas artérias, melhorando a irrigação dos tecidos e a sua penetração
pelos antibióticos. Na fase em que já existem flictenas e placas de necrose
extensas em progressão activa, a conservação do membro é com frequência
inviável (Figura_17).
Porém, nos casos de necrose limitada, deve-se tentar preservar o membro (Figura
18), procedendo-se não só a incisão ampla de drenagem e descompressão, como
também desbridamento dos tecidos desvitalizados, para redução da carga
bacteriana local15. Aconselha-se uma incisão de drenagem generosa, mas uma
atitude parcimoniosa no desbridamento cirúrgico, evitando a excisão de tecidos
viáveis.
Uma alternativa relativamente recente ao desbridamento cortante é o
desbridamento por hidrodissecção, que permite poupar os tecidos viáveis. Esta
técnica, quando disponível, é o método ideal nos casos de desbridamentos
extensos e quando estes se prevêem seriados.
Por último, uma referência à infecção profunda com osteomielite. Os locais mais
frequentes são a cabeça dos metatarsos e as falanges. O diagnóstico é em regra
imagiológico, por método de radiografia simples (Figura_19B) se crónica, ou por
ressonância magnética na sua fase mais precoce (Figura_20). Não obstante, uma
prova sonda-osso positiva (i.e. se na exploração de uma úlcera com um
instrumento metálico tivermos a sensação de "grito ósseo") tem um
elevado valor preditivo positivo16 (Figura_19A).
O seu tratamento passa pela excisão cirúrgica dos sequestros ósseos, alargando
a úlcera que lhe está sobrejacente, deixando a ferida cicatrizar por segunda
intenção (Figura_21). O envio sistemático do sequestro para estudo
bacteriológico é muito importante para o direccionamento da antibioterapia que
neste caso deve ser mantido por um período mais alargado (de 4 a 6 semanas).
Outra situação que frequentemente surge na urgência é o pé com gangrena
digital. Se o dedo se apresenta com a gangrena seca/mumificado, sem dor à
palpação e sem sinais inflamatórios plantares (Figura_22), deve-se iniciar
tratamento antibiótico com cobertura para Estafilococos e Estreptococos,
diferindo a desarticulação. Se pelo contrário a gangrena for húmida, com ou sem
sinais inflamatórios plantares (Figuras 23, 24 e 25), deve iniciar-se
antibioterapia de amplo espectro e efectuar amputação digital/drenagem do
respectivo compartimento. Não é aconselhável o encerramento primário, porque
existe sempre infecção, declarada ou subclínica, nos tecidos circundantes e
porque as suturas agravam a isquemia dos bordos da ferida operatória.
A nossa experiência na área das feridas é resultante do interesse desde longa
data pela patologia da úlcera de perna. A crescente procura de uma consulta
especializada no tratamento desta patologia levou à criação, em 2004, de uma
Consulta Multidisciplinar de Úlcera de Perna (CMUP). O estabelecimento de
protocolos de tratamento com os Centros de Saúde, permite optimizar os
resultados e os recursos a nível hospitalar e nos cuidados de saúde primários,
com consequente redução de custos inerentes.
A estreita colaboração com a Consulta de Diabetologia permite uma detecção mais
precoce de lesões de pé diabético e, também, uma melhor vigilância da
recorrência destas lesões após a alta da consulta13. Esta intervenção precoce e
multidisciplinar permitiu uma redução do número de doentes com necessidade de
internamento e também uma redução do número de amputações major por pé
diabético na área de influência do nosso hospital.
Nos últimos cinco anos tratámos 296 doentes (198 homens e 98 mulheres) em
regime de internamento, com o diagnóstico de pé diabético com infecção aguda
moderada ou grave, a maior parte proveniente do serviço de urgência. Neste
período, apenas 9% foram admitidos novamente em internamento. Noventa e cinco
por cento dos doentes mantiveram o membro afectado, sendo submetidos apenas a
desbridamentos ou amputações minor. A taxa de amputações majorfoi de 5% (15
doentes). A taxa de mortalidade global foi de 6% (18 doentes), mais de um terço
(38,8%) no pós-operatório de uma amputação major. A principal causa de morte
foi a descompensação de patologia cardíaca, seguida de falência renal aguda.
Como registo clínico, utilizamos não só o processo clínico, mas também o
registo iconográfico através de fotografia digital, para análise da evolução da
ferida. Em anexo documentamos cinco casos que ilustram os resultados da
abordagem na urgência (vide anexos).
NOTAS FINAIS
O tratamento do pé diabético é uma verdadeira urgência médico-cirúrgica. A
apresentação como fleimão, raramente como uma colecção, é sinal de que a
infecção está contida num compartimento relativamente rígido e que necessita de
drenagem urgente. Deste modo, defendemos que o cirurgião deve ser generoso na
drenagem e parcimonioso na ressecção, de forma a preservar e alterar o menos
possível a estrutura do pé.
O doente não amputado tem maior esperança média de vida com melhor qualidade e,
nitidamente, tal repercutir-se-à positivamente sobre os custos económicos e
sociais. A intervenção precoce no pé diabético com infecção aguda é fundamental
para preservação do membro, redução global do número de amputações e, em última
instância, diminuição da mortalidade a ele associada.