Gastrite Fleimonosa Necrotizante: caso clínico
INTRODUÇÃO
A gastrite aguda fleimonosa é uma infeção bacteriana supurativa da parede
gástrica que foi descrita por Curveilhier em 1820(1). Pode ser localizada,
muitas vezes envolvendo o antro gástrico, ou difusa envolvendo todo o estômago.
Alguns fatores de risco envolvidos foram identificados e parecem estar
relacionados com a lesão da mucosa gástrica e a septicémia(2).
A variante gastrite aguda necrotizante é caracterizada por uma extensa trombose
dos vasos submucosos(1) e está associada a elevada taxa de mortalidade, pelo
que transformam o seu diagnóstico e terapêutica num grande desafio.
CASO CLÍNICO
Mulher de 79 anos, antecedentes de hipertensão arterial, dislipidémia, com
colecistectomia há 20 anos por litíase vesicular, insuficiência venosa dos
membros inferiores, medicada com olmesartan, furosemida, bioflavonoides,
nimodipina, perindopril, amlodipina, atorvastatina, zolpidem, gabapentina, que
é trazida ao SU, sem acompanhante, por ter sido encontrada em casa prostrada no
solo com incontinência de esfíncteres e hipotonia dos membros inferiores,
desconhecendo-se a hora e as circunstâncias da ocorrência.
A doente apresentava-se hipotensa, subfebril, vigil e colaborante, desorientada
no tempo e desidratada. Não aparentava dismorfia da face, soluções de
continuidade do couro cabeludo ou sinais de mordedura da língua. Tinha tônus
muscular mantido em todos os membros, A auscultação cardíaca revelava S1 e S2
regular e rítmico, sem sopros aparentes e auscultação pulmonar com murmúrio
vesicular mantido e simétrico. O abdómen apresentava-se globoso, depressível e
indolor à palpação em todos os quadrantes.
Efetuou TAC crânio encefálico que não demonstrou alterações para o grupo
etário.
Analiticamente revelava hemoglobina normal, leucocitose com neutrofilia,
elevação da creatininémia com 2,7mg/dl (N:070-1.20 mg/dl), elevação da urémia,
elevação das transaminases hepáticas, Creatinina Quinase 8351 ng/ml (N:20-
180ng/ml), proteína C reativa de 154 mg/L (N:<6,10mg/L), Procalcitonina 13,16
ng/ml (valor compatível com sépsis; N<0.05 ng/ml).
Realizou TAC abdominopélvica que revelou gás dissecando a parede do fundo
gástrico e também da grande curvatura, associado a componente gasoso
endoluminal nos plexos venosos de drenagem gástrica e aeroportia hepática, mais
pronunciada no lobo esquerdo. - Estes achados foram considerados
altamente suspeitos para quadro de isquémia da parede gástrica com evolução
para necrose.
A seguir efetuou uma endoscopia digestiva alta (EDA) que referia na grande
curvatura do estômago, ao nível da transição corpo-antro, uma área com solução
de continuidade na mucosa, plana, de bordos irregulares, com o maior diâmetro
longitudinal.
Tendo em conta estes achados, instituiu-se uma fluidoterapia agressiva e a
doente iniciou antibioterapia empírica com Piperacilina/Tazobactam.
Apesar das medidas instituídas, houve um agravamento clínico pelo que foi
repetida EDA, 12 horas após o primeiro exame, que referia extensa necrose da
mucosa gástrica desde a transição corpo/antro até ao fundo gástrico.
Foi decidida conjuntamente com equipa de medicina intensiva, laparotomia de
urgência.
Durante o procedimento cirúrgico verificou-se boa vascularização gástrica sem
evidência de peritonite, tendo-se procedido a gastrectomia total com
reconstrução em Y de Roux.
Houve necessidade de permanência em Unidade de Cuidado Intensivos, onde
permaneceu com ventilação mecânica invasiva até ao 2º dia de PO com necessidade
de aminas vasoativas. Iniciou dieta entérica ao 4º dia de PO.
Foi transferida para o Serviço de Cirurgia ao 5º dia de pós-operatório.
Durante internamento não foram registadas quaisquer intercorrências, sendo que
a doente teve alta do serviço ao 17º dia de internamento após a admissão
hospitalar.
O estudo histopatológico da peça operatória revelou peça de gastrectomia total
com intensa necrose hemorrágica de todas as camadas ao nível do fundo e corpo
gástrico.
DISCUSSÃO
A gastrite fleimonosa ocorre devido infeção bacteriana local ou hematogénea da
parede gástrica. Tem várias formas de apresentação clínica como gastrite
fleimonosa aguda, gastrite necrotizante aguda, abcesso gástrico (forma
localizada), e gastrite enfisematosa (por bactérias produtoras de gás). As
características clínicas comuns devem-se a infeção bacteriana principalmente na
submucosa gástrica(2).
A variante necrotizante é a forma mais rara e grave de gastrite fleimonosa com
uma alta taxa de mortalidade e geralmente tem extensão para outros segmentos do
trato digestivo(3).
O mecanismo exato da gastrite fleimonosa é desconhecido(2). A sua etiologia
encontra-se relacionada com lesão da mucosa ou septicémia. A lesão da mucosa
pode estar associada a consumo marcado de álcool, gastrite crónica, trauma,
ingestão de químicos, drogas ou toxinas. O cancro gástrico e úlcera gástrica
também estão associados com gastrite fleimonosa em vários casos. A septicemia
relaciona-se com endocardite bacteriana, erisipelas, osteomielite e entre
outros(2). Em cerca de 40% dos casos não são identificados fatores
predisponentes para GF(1).
O alfa hemolitico streptococusé o agente causal mais frequentemente isolado
sendo que as infeções polimicrobianas contribuem para cerca de 30% dos casos
(1). Neste caso específico, não existiu factor predisponente identificável,
apesar de as circunstâncias da ocorrência não permitirem negar a ingestão de
produtos tóxicos. Não foram realizadas colheitas para estudo microbiológico,
pelo que não foi identificado agente causal.
Histologicamente, a gastrite necrotizante é caracterizada por infiltração da
submucosa gástrica por neutrófilos e hemorragia intramural, necrose com
trombose dos vasos submucosos(3).
Os doentes apresentam-se tipicamente com quadro clínico pouco específico com
dor abdominal intensa, náuseas, vómitos, febre, arrepios e hematemeses
(1,2,4,5). O exame objetivo pode revelar defesa abdominal embora seja raro
(apenas nos caso de doença avançada).
Não existem dados analíticos específicos para a gastrite fleimonosa, embora a
presença de leucocitose suporte o diagnóstico. A radiografia do abdómen pode
demonstrar ileus paralítico, pregas gástricas edematosas, elevação da
hemicúpula esquerda e gás livre subdiafragmático.
A TAC abdominal pode visualizar uma parede gástrica espessada com gás
intramural, e gás nos vasos gástricos.
Os achados endoscópicos demonstram uma mucosa gástrica arroxeada coberta com
material necrótico.
O exame histopatológico revela submucosa espessada devida a infiltração por
neutrófilos e plasmócitos e nos casos mais avançados, hemorragia intramural,
necrose e trombose dos vasos gástricos submucosos. Se a inflamação é
localizada, a formação de abcesso é possível.
O tratamento da gastrite fleimonosa depende da condição clínica do paciente e
dos achados imagiológicos(4). Dado o atraso no diagnóstico e rápida progressão
para peritonite, está associada a mortalidade 70%(3). Nos pacientes tratados
conservadoramente com tratamento médico, a mortalidade varia entre os 10 e os
17% com gastrite fleimonosa localizada; e perto dos 60% para aqueles com a
doença difusa e tipo enfisematoso(1). A antibioterapia de largo espetro está
recomendada, até porque 30% dos casos a infeção é polimicrobiana. A ressecção
cirúrgica poderá ser necessária. A combinação de tratamento médico e cirúrgico
está associada a menor mortalidade (50%) que o tratamento conservador.
Em conclusão, este paciente apresentava-se com gastrite aguda necrotizante,
variante rara e potencialmente fatal de gastrite fleimonosa, aparentemente sem
fatores de risco identificados, que foi tratada com sucesso com cirurgia e
antibioterapia com excelente resultado.