Tratamento dos Tumores Desmóides Intra-Abdominais associados à Polipose
Adenomatosa Familiar
INTRODUÇÃO
A Polipose Adenomatosa familiar (PAF) é um síndrome hereditário, com modo de
transmissão autossómico dominante, causada por uma mutação germinativa do gene
APC localizado no braço longo do cromossoma 5. (1,2,3,4)
A PAF é caracterizada pelo aparecimento de centenas a milhares de pólipos
adenomatosos no cólon e no recto, com progressão para carcinoma colorectal até
à 4ª 5ª década de vida se estes doentes não forem submetidos a colectomia/
proctocolectomia profilática. (1,3,5) Um largo espectro de manifestações extra-
cólicas pode estar presente nos doentes com PAF: adenomas gastroduodenais, que
podem progredir para carcinoma, pólipos glandulares fúndicos, tumores
desmóides, lipomas, fibromas, quistos epidermóides e sebáceos, osteomas,
malformações dentárias, hipertrofia congénita do epitélio pigmentar da retina e
outros tumores malignos, como o carcinoma da tiróide, tumores cerebrais,
carcinoma adrenal, hepatoblastoma e neoplasias pancreaticobiliares. (1,3)
As manifestações extra-cólicas da PAF não são negligenciáveis, e têm impacto
significativo na morbilidade associada à doença, assim como na sobrevida destes
pacientes, sendo o carcinoma duodenal e os tumores desmoides a principal causa
de morte a seguir ao carcinoma colorectal. (1,2,5).
Os tumores desmóides são proliferações benignas de fibroblastos do tecido
fibro-aponevrótico, que ocorrem de forma esporádica ou no contexto de PAF.(2)
Na sua forma esporádica são muito raros, sendo a incidência na população geral
de cerca de 2-4 por milhão por ano. Estes tumores localizam-se maioritariamente
na parede abdominal (50%) ou extremidades (40%), afectam preferencialmente o
sexo feminino (razão fem/masc 2:1 a 5:1), e apresentam um pico de incidência
entre os 28 e 31 anos. (1,6,7)
Os tumores desmoides nos doentes com PAF são cerca de 1000 vezes mais
frequentes do que na população geral, estando presentes em aproximadamente 10%
destes doentes. Estes tumores são, ao contrário do que acontece na forma
esporádica, na sua maioria intra-abdominais (80%); 10-15% originam-se na parede
abdominal e cerca de 5% noutras localizações. Não parece haver nas formas
associadas à PAF uma predilecção de género e a idade de maior incidência é
sobreponível à da forma esporádica. (1,2,3,7).
Tem sido referido que os tumores desmoides surgem com maior frequência quando
as mutações se localizam nos codões distais do gene APC. (8,9)
Os tumores desmoides intra-abdominais em doentes com PAF têm um comportamento
evolutivo imprevisível; alguns crescem rapidamente, muitos mantêm-se estáveis,
enquanto outros regridem após terapêutica médica ou mesmo espontaneamente. (2)
Estes tumores são desprovidos de capacidade de metastização, mas podem ser
localmente agressivos, apresentando um padrão de crecimento infiltrativo com
envolvimento de estruturas adjacentes e um elevado índice de recorrência local
após excisão cirúrgica (3).
A raridade destes tumores, a sua heterogeneidade clínica e a inexistência de
uma modalidade terapêutica genericamente eficaz, fazem com que o seu tratamento
seja controverso e que a adopção terapêutica mais indicada para cada doente se
revista de grande dificuldade. Em 2005, Church e col. (10) propuseram um
sistema de estadiamento para os tumores desmoides baseado, essencialmente, no
tamanho do tumor, na existência de sintomas e no seu comportamento evolutivo.
Confirmou, mais tarde, que este sistema de estadiamento poderá ser também útil
para estratificar a gravidade da doença, bem como para avaliar as alternativas
terapêuticas.
Este estudo de revisão retrospectiva tem como objectivo analisar os resultados
do tratamento dos doentes com tumores desmoides intra-abdominais associados a
PAF, estadiados de acordo com a escala de Church.
MATERIAL E MÉTODOS
Neste estudo foram revistos os processos clínicos de todos os doentes operados
de PAF nos últimos 25 anos, com tumores desmoides intra-abdominais tratados no
Serviço de Cirurgia III / Cirurgia A do Centro Hospitalar e Universitário de
Coimbra (CHUC) e registados na Consulta de Tumores Hereditários. Os doentes
foram reavaliados de acordo com o sistema de estadiamento proposto por Church e
col em 2005 (10) e que se apresenta resumido na Tabela_1.
Os doentes consideraram-se em regressão quando a clínica e os dados da TAC/RM
revelaram redução significativa das dimensões da lesão, regressão parcial
quando se verificou ter havido apenas ligeira redução da dimensão da lesão
(Figura_1) e crescimento rápido quando existiu pelo menos duplicação da
dimensão da massa em 3 a 6 meses. Quando existiam tumores múltiplos considerou-
se o estadiamento em relação à lesão de maiores dimensões.
RESULTADOS
Foram estudados 10 doentes (8 do sexo feminino) com idade média de 28 anos
(entre 17 e 67 anos).
A lesão desmoide surgiu em média 3 anos após a intervenção, e tiveram um
seguimento médio de 80 meses (entre 17 e 144 meses).
Em 3 doentes existia mutação APC entre 3' e o codão 1444 e em 4 entre 5´e o
codão 1444; não foi identificada mutação em 3 doentes (Tabela_2).
Quatro doentes foram classificados no estádio I, com regressão da doença após
terapêutica com sulindac + tamoxifeno. Neste grupo no estadio I, uma das
doentes veio a falecer noutro hospital aparentemente por lesão séptica não
relacionada com o tumor desmoide que tinha previamente regredido. Outros dois
doentes classificados no estádio III, foram operados, um por oclusão com
necessidade de ressecção da bolsa ileoanal e do tumor desmoide (Figura_2) e o
outro por fístula entérica da bolsa ileoanal, sendo ressecada com o desmoide
pélvico e refeita nova bolsa com anastomose íleoanal (Figura_3); ambos os casos
estão presentemente assintomáticos.
Quatro casos incluíram-se no estádio IV; um não regrediu com tamoxifeno e
sulindac e faleceu em sépsis noutro hospital, com reconhecimento imagiológico
da progressão fulminante da doença (Figura_4); nos outros três optou-se por
quimioterapia anti-sarcoma (doxorrubicina e dacarbazina) e regrediram
parcialmente, apesar de todos terem complicações relacionadas com obstrução
ureteral (necessitando de duplo J) e tendo um deles ficado com insuficiência
renal a necessitar de hemodiálise permanente.
DISCUSSÃO
O diagnóstico de tumor desmoide intra-abdominal num doente operado por PAF
constitui um motivo de grande ansiedade para o doente e para o próprio médico.
A incerteza prognóstica e o desconhecimento sobre os tratamentos mais eficazes
fazem parte do espectro nebuloso desta doença. O presente estudo vem confirmar
o interesse prognóstico do sistema de estadiamento de Church e col. (10) que,
aplicado a pequenas séries, permite separar grupos com evolução clínica,
resposta terapêutica e prognóstico diferentes.
A etiologia dos tumores desmoides intra-abdominais em doentes com PAF não está
totalmente esclarecida. Foi sugerido que estes tumores têm origem em
fibroblastos cujo funcionamento anómalo leva à formação de placas mesentéricas
que progridem para fibromatose mesentérica e, consequentemente, para tumores
desmóides; o que justifica que estes tumores possuam um espectro amplo de
apresentação, desde pequenas placas mesentéricas até tumores gigantes que
ocupam toda a cavidade abdominal. A sua velocidade de crescimento também é
variada: desde tumores estáveis ou de crescimento indolente até tumores de
crescimento rápido. (2,3)
Foram identificados alguns factores de risco que parecem contribuir para o
aparecimento e crescimento dos tumores desmoides, tais como o trauma cirúrgico,
a exposição aos estrogéneos, a história familiar ou se a mutação APC se
localiza entre o codão 1444 e a extremidade 3' do gene. (1,3,8,9)
O trauma cirúrgico parece desempenhar um papel importante no aparecimento do
tumor desmoide. Na nossa série o diagnóstico de tumor desmoide foi feito em
média 3 anos após a ressecção do colon, o que está de acordo com o descrito na
literatura, em que o intervalo médio que decorre entre a cirurgia do colon e o
aparecimento do tumor desmoide é de 2-3 anos. (1) Admitiu-se que poderia
existir uma maior incidência destes tumores em doentes submetidos a
proctocolectomia reconstrutiva (PCR) com bolsa ileoanal do que em doentes
submetidos a colectomia total (CT) com anastomose ileorectal, devido à maior
complexidade e dissecção mais extensa na primeira intervenção. (7,9) De acordo
com a análise de uma série de 86 doentes em que Burgess e col. (9) compararam o
impacto da PCR e da CT no aparecimento e morbilidade associada aos tumores
desmoides, não parece existir qualquer relação entre o tipo de procedimento
cirúrgico cólico e o aparecimento destes tumores. Também se tem especulado
sobre se a cirurgia com técnicas minimamente invasiva pode ser menos
desmogénica, mas não existem estudos que possam, por agora, responder a esta
questão (9).
Na nossa série 80% dos doentes eram do sexo feminino. De facto, a maior
incidência destes tumores no sexo feminino e a alteração do padrão de
crescimento dos tumores desmoides com a gravidez e o consumo de
anticontraceptivos orais, parecem confirmar o papel desempenhado pelos
estrogénios no aparecimento e crescimento destes tumores. (2,3,7).
A presença de história familiar positiva representa um aumento do risco de
aparecimento destes tumores em doentes com PAF (2,7,8); na nossa série em 40%
dos doentes existia história familiar de tumores desmoides.
A localização da mutação do gene APC poderá representar um factor preditivo
importante para o desenvolvimento deste tumor. Os doentes portadores de
mutações próximas da extremidade 3' do gene, principalmente a partir do codão
1444, parecem ter risco aumentado de vir a desenvolver um tumor desmoide
(2,3,7). De facto, de acordo com um estudo alemão de Schiessling e col. (8),
referente a 105 doentes com PAF associada a desmoides, 21% apresentaram
mutações do gene APC a partir do codão 1444; aspecto mais saliente nos homens
(39%) que nas mulheres (8%). Este genótipo parece assim desempenhar um
importante papel no aparecimento dos tumores desmoides nestes doentes. Contudo,
na nossa série, não se encontrou predomínio das mutações no sentido da
extremidade 3' do codão 1444, existindo apenas em três dos oito doentes em que
foi detectada mutação APC .
Os tumores desmoides intra-abdominais são muitas vezes assintomáticos e são
achados incidentais durante o exame físico, nos exames imagiológicos ou durante
a laparotomia. Podem atingir dimensões consideráveis até se tornarem
sintomáticos, e a sua manifestação ocorre normalmente por complicações
compressivas: obstrução intestinal, isquémia mesentérica , fistulização e
sépsis, hidronefrose, dor, trombose venosa profunda, insuficiência
respiratória, hemorragia gastrointestinal, ruptura aórtica, entre outros.
(7,11)
A Tomografia Computorizada (TC) tem sido o método imagiológico goldstandard
para diagnóstico e caracterização destas lesões, assim como para avaliar a
resposta ao tratamento, através da comparação das dimensões e características
destes tumores em exames seriados. (7) Contudo a RM pode substituir a TC como
método de imagem no follow-up destes doentes, podendo até ser superior na
avaliação dos tumores desmoides de reduzidas dimensões (<2cm) (8). Além disso,
devido ao bom contraste dos tecidos moles, poderá traduzir melhor a
agressividade tumoral através do grau de celuridade e de vascularização, para
além da falta de efeito rádico que é inerente aos estudos da TAC, aspecto
relevante no seguimento de doentes jovens (12).
O tratamento destes tumores é controverso e frequentemente multimodal. Por não
existir um tratamento ideal, a decisão terapêutica representa um verdadeiro
desafio clínico. De acordo com os conhecimentos actuais, podem dividir-se as
opções terapêuticas existentes em quatro grupos: tratamento farmacológico,
quimioterapia, radioterapia e cirurgia.
O tratamento farmacológico compreende os anti-inflamatórios não-esteróides
(AINEs) e os agentes hormonais. Existem evidências científicas que os AINEs
podem reduzir o crescimento tumoral em modelos experimentais; vários estudos
demonstram aliás uma taxa de resposta ao tratamento com AINEs de,
aproximadamente, 50%. Os fármacos mais utilizados são o sulindac (300mg) e o
celecoxib (200 mg/dia) (1,7,13). A resposta ao tratamento ocorre habitualmente
entre as 2 semanas e os 3 meses, mas existem relatos de respostas mais tardias,
até aos 2 anos. No que concerne à terapêutica anti-hormonal, os
antiestrogénicos tamoxifeno (40-160 mg/dia) ou o toremifeno (180-240 mg/dia)
são os agentes mais utilizados, após se ter verificado a influência que a
exposição aos estrogénios exerce no crescimento destes tumores. A resposta a
esta terapêutica é variada mas, quando presente, inicia-se normalmente entre as
2 semanas e os 6 meses de tratamento. (1,7,13)
A quimioterapia surgiu como outra opção válida do armamentário terapêutico
disponível para o tratamento destes tumores; esquemas à base de doxorrubicina e
dacarbazina demonstraram ter eficácia em doentes com tumores desmoides
progressivos ou sintomáticos que não respondem à terapêutica médica
convencional. (1,2,7,10)
A radioterapia provou ser um tratamento válido dos tumores desmoides extra-
abdominais ou da parede abdominal; de forma isolada ou associada ao tratamento
cirúrgico. Contudo, os tumores desmoides intra-abdominais parecem ser menos
radiossensiveis e o uso da radioterapia nestes tumores está limitado pela
radiossensibilidade das estruturas abdominais adjacentes (1,7). Desta forma, a
radioterapia parece não desempenhar um papel de relevo no tratamento dos
tumores desmoides intra-abdominais. (1)
Os tumores desmoides intra-abdominais localizam-se, preferencialmente, no
mesentério do intestino delgado, frequentemente junto à sua raiz pelo que a sua
excisão completa não é possível, na maioria dos casos, e, quando o é, pode
implicar ressecções intestinais alargadas com risco de síndrome de intestino
curto. A cirurgia para excisão dos tumores desmoides intra-abdominais, está
assim associada a elevada morbilidade, baixo índice de ressecções completas e
altas taxas de recorrência (1,7). Pode, contudo, estar indicada na presença de
complicações tais como a oclusão intestinal, a isquémia e fistulização
entérica, a hidronefrose; ou, ainda, perante a falência do tratamento médico
(1,7)
Church e colaboradores publicaram, em 2008, (2) um estudo em que procederam à
classificação de uma série de 101 doentes com tumores desmoides intra-
abdominais associados a PAF. Nenhum dos doentes no estádio I e II (21+36)
faleceu; entretanto foi registada 15% de mortalidade em 26 doentes no estádio
III e de 44% em 18 no estádio IV. Como era esperado, os estadios mais avançados
necessitaram de tratamentos progressivamente mais agressivos. No estadio I e
II, em 57% e 14% dos doentes, respectivamente, não foi instituido qualquer
tratamento. Necessitaram de tratamento cirúrgico 6 doentes no estadio I, 20 no
estadio II, 12 no estadio III e 13 no estadio IV. A quimioterapia foi
instituida a um doente no estadio II, 7 no estadio III e 5 no estadio IV.
Os doentes da nossa série foram também classificados segundo o sistema de
estadiamento de Church e divididos em quatro grupos clínicos diferentes.
Quando analisamos a nossa série, verificamos que quatro dos nossos doentes
foram classificados no grupo I de Church. Estes doentes, de acordo com o que
acontece noutras séries, parecem ser portadores de tumores menos agressivos,
respondem normalmente à administração de AINEs e/ou antiestrogénios,
verificando-se regressão total do tumor após a instituição desta terapêutica.
Nenhum doente foi classificado no grupo II.
Os doentes do grupo III e IV parecem ser portadores de tumores com um
comportamento mais agressivo. Os doentes do grupo III tiveram complicações
decorrentes do crescimento dos seus tumores, que necessitaram de intervenção
cirúrgica para resolução: uma oclusão intestinal e uma fístula da bolsa
ileoanal; em ambos os casos foi necessário associar à excisão do tumor desmoide
a exérese da bolsa ileoanal. Os doentes do grupo IV não responderam à
terapêutica médica convencional e apenas após instituição de esquemas de
quimioterapia os tumores apresentaram uma regressão parcial. Nenhum doente do
grupo IV apresentou uma regressão total do tumor.
Apesar da nossa série apresentar números reduzidos, os resultados confirmam que
o estadiamento de Church permite dividir os tumores desmoides em grupos com
diferente comportamento clínico e diferente resposta à terapêutica. Os doentes
do grupo I são portadores de tumores com comportamento menos agressivo e com
melhor resposta ao tratamento médico (AINEs e antiestrogéneos). Os doentes dos
grupos III e IV possuem tumores mais agressivos, com maior tendência para o
crescimento e maior índice de complicações (1,2). Apresentam pior resposta ao
tratamento médico, com necessidade de instituição de outras modalidades
terapêuticas (quimioterapia e cirurgia) para controle da doença e resolução das
complicações.
Desta forma, com base nos estudos retrospectivos existentes (1,2,14) tem
fundamento a opção terapêutica actual de step-upou seja, de progressão das
armas terapêuticas em função da agressividade da doença.
Assim, o tratamento deverá ser iniciado com um AINEs, preferencialmente o
sulindac, e caso este não esteja disponível o celecoxib. Caso este não seja
eficaz, deve associar-se um agente antihormonal (tamoxifeno ou toremifeno). Os
tumores que não respondam ao tratamento farmacológico e apresentem crescimento
progressivo devem ser tratados com quimioterapia (doxorrubicina, dacarbazina).
A cirurgia deverá ser reservada para o tratamento de complicações severas
destes tumores. (Fig._5) (1,15)
CONCLUSÃO
Os tumores desmódes intra-abdominais em doentes com PAF são uma entidade rara.
A inexistência de estudos prospectivos e randomizados e o facto de as séries
serem pequenas não permitem que se retirem conclusões válidas quanto à
terapêutica ideal.
A escala de Church permite a catalogação clínica dos doentes por grupos
diferenciais de acordo com o comportamento tumoral e os resultados
terapêuticos.
O tratamento dos tumores desmoides intra-abdomianais associados a PAF é
controverso, mas a abordagem médica de step-uprepresenta, actualmente, uma
opção válida na terapêutica destes doentes; salientam-se os resultados
animadores da quimioterapia baseada na doxorubicina nas situações mais graves.