Quando efectuar cirurgia síncrona carotídea e cardíaca?
Quando efectuar cirurgia síncrona carotídea e cardíaca?
When to perform synchronous carotid and cardiac surgery?
Luís Mendes Pedro
Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
Assistente Graduado de Cirurgia Vascular do Hospital de Santa Maria
O acidente vascular cerebral (AVC) constitui uma complicação grave da cirurgia
cardíaca e ocorre em cerca de 2% dos casos de procedimentos de revascularização
do miocárdio.
A sua etiologia é multifactorial, pode ter uma expressão isquémica ou
hemorrágica e as principais causas podem ser sistematizadas em embólicas
(cardioembólicas ou ateroembólicas) e hemodinâmicas no contexto dos regimes de
baixa pressão de perfusão no decurso da cirurgia cardíaca (mais relevantes
quando é utilizada circulação extra-corporal).
Desde há várias décadas que foi chamada a atenção para a co-existência de
doença arterial oclusiva nas artérias cerebrais extra e intracranianas e para o
possível aumento do risco de AVC nestas circunstâncias. Efectivamente, vários
estudos demonstraram que o risco de complicações neurológicas aumentava de
forma significativa com a gravidade da doença oclusiva concomitante, quer no
que se refere ao envolvimento das artérias intracranianas quer quanto à lesão
da bifurcação carotídea. A presença de estenose carotídea unilateral >50%
parece aumentar o risco neurológico para 3%, a ocorrência simultânea de
estenose bilateral incrementa-o para 5% e quando co-existe oclusão completa da
carótida interna a taxa de AVC peri-operatório é de 7-11%. Estes dados sugerem
que o tratamento da lesão carotídea possa contribuir para reduzir a taxa de AVC
o que levou à introdução de várias estratégias terapêuticas como a realização
de endarterectomia carotídea antes ou no mesmo tempo operatório (síncrona) da
cirurgia cardíaca ou ainda, mais recentemente, à realização prévia de stenting
carotídeo.
A prática de cirurgia síncrona vem sendo realizada sistematicamente em muitos
centros, com baixas taxas de morbilidade neurológica ipsilateral e o mesmo
acontece na nossa experiência.
Todavia, nos últimos anos, vários autores chamaram a atenção para algumas
observações relevantes: (1) nas diversas experiências, a taxa global de AVC
mantém-se em valores elevados (apesar de níveis reduzidos de AVC ipsilateral);
(2) muitos AVC peri-operatórios em doentes portadores de estenose carotídea não
ocorreriam no território apropriado à lesão carotídea; (3) mais de metade dos
doentes com AVC peri-operatórios não tem evidência de lesão carotídea.
É necessário ter ainda em conta que a maioria dos doentes tratados de cirurgia
síncrona não tem sintomas neurológicos prévios e é conhecido o baixo risco das
lesões carotídeas assintomáticas, mesmo quando determinam obstrução grave.
Pode, porém, argumentar-se que a história natural da estenose carotídea
assintomática no contexto de cirurgia cardíaca não é conhecida mas
efectivamente há estudos limitados que sugerem manter-se o risco reduzido.
Como explicar, então, que os portadores de doença carotídea mais grave tenham
taxas de AVC peri-operatório mais elevadas?
Uma das explicações mais consistentes relaciona-se com o facto de que a doença
carotídea pode constituir um marcador de aterosclerose avançada o que implica
por um lado maior mortalidade, e por outro níveis mais elevados de AVC por
etiologias diversas (doença obstrutiva carotídea, intracraniana ou da aorta;
patologia cardíaca embolígena; menor reserva vasomotora cerebral).
Os dados da nossa experiência pessoal encontram-se em concordância com o que
foi exposto. Com efeito, numa população de 123 procedimentos de cirurgia
simultânea cardíaca e carotídea verificou-se que a taxa de AVC ipsilateral foi
de 0.8%, a taxa de AVC global foi de 4.1% e a mortalidade aos 30 dias de 6.5%.
Estes resultados mostram que, apesar da reduzida morbilidade neurológica
ipsilateral, se manteve o risco de AVC isquémico global (controlateral e do
território posterior) bem como de AVC hemorrágico. A mortalidade foi também
mais elevada que em doentes sem doença carotídea o que confirma o maior risco
global dos doentes em causa, consubstanciado ainda pela análise da escala de
risco EUROSCORE.
Em conclusão, mantém-se a indicação formal para tratamento da lesão carotídea
no decurso de cirurgia cardíaca em doentes sintomáticos e quando existem lesões
bilaterais graves ou oclusão completa controlateral. Parece ser questionável a
realização sistemática de cirurgia simultânea em doentes assintomáticos e
portadores de estenose carotídea >70% unilateral uma vez que, apesar de se
associar a baixo risco neurológico ipsilateral, é possível que o benefício não
seja significativo. Neste grupo deverão ser investigadas metodologias de
selecção dos doentes e de identificação dos subgrupos de maior risco
(caracterização da placa, avaliação da reserva vasomotora cerebral, estudo da
capacidade de compensação do Polígino de Willis).
Finalmente, é importante reconhecer a necessidade de estudos prospectivos de
grande dimensão para o esclarecimento das várias questões controversas que
foram mencionadas.