Transposição da Veia Basílica: um contributo para a melhoria da técnica
cirúrgica
INTRODUÇÃO
O elevado número de doentes em hemodiálise (HD) abrange uma população de
idosos, com grande incidência de diabéticos e com progressiva deterioração das
veias utilizáveis para acessos vasculares. Assim, o esgotamento de acessos
primários e o uso crescente de cateteres venosos centrais[1] levam a um esforço
contínuo para melhorar a realização de acessos autólogos. Esta orientação
motivou o nosso interesse na Transposição da Veia Basílica (TVB) como um dos
últimos redutos de acesso autólogo.
O acesso autólogo apresenta maior patência, menor taxa de trombose, menor
necessidade de reintervenção, menor taxa de infecção, menor custo na manutenção
e menor taxa de hospitalização em comparação com a prótese. [2,3] Além disso,
em caso de falência não impede a realização de pontagem no mesmo braço. [4,5]
A veia basílica, dada a sua localização anatomicamente mais profunda, raramente
é lesada por punções e é geralmente de bom calibre. [6]
A primeira descrição de TVB é de Dagher et al, com patência de 70% aos 8 anos.7
Tem sido utilizada na última década com patências descritas de 47 a 93% |TABELA
1|.
| TABELA_1 | Estudos publicados sobre transposição da veia basílica
Com a TVB não parece haver aumento na morbilidade, embora as incisões
cirúrgicas sejam mais longas e o tempo cirúrgico alargado. [4]
Procurámos melhorar a técnica cirúrgica descrita na literatura usando 3
incisões de 2-3cm e uma média de 75 minutos de tempo cirúrgico.
Os estudos científicos que comparam TVB e acessos protésicos descrevem
patências semelhantes para as duas técnicas, mas taxa de complicações inferior
com a TVB, o que compensa o facto de as próteses poderem ser utilizadas mais
rapidamente, sem período de maturação. [4,13-15]
Este artigo tem como objectivo descrever a técnica cirúrgica por nós utilizada
(NM, CN) e a nossa posição actual, após a curva de aprendizagem. Pretende-se
também avaliar as especificidades desta técnica em termos de patência a longo
prazo, impacto dos factores de risco cardiovascular (FRCV) na patência e taxa
de complicações.
MATERIAL E MÉTODOS
A Consulta de Acessos Vasculares do CHP-HSA é efectuada por um Cirurgião
Vascular e um Nefrologista em presença, com colheita de história clínica, exame
físico e realização de ecodoppler dos membros superiores para um correcto
mapeamento vascular. A venografia é efectuada em casos seleccionados,
nomeadamente, em doentes com antecedentes de cateterismo da veia subclávia e
história de falência de múltiplas fístulas arteriovenosas (FAVs).
Opta-se pela TVB quando os acessos autólogos primários já se esgotaram em ambos
os membros superiores e o doente apresenta uma veia basílica com diâmetro
superior a 4mm na avaliação ao ecodoppler, com torniquete colocado.
Efectuámos um estudo prospectivo de todos os doentes submetidos a TVB no CHP -
HSA entre Setembro 2005 e Setembro de 2009.
A colheita de dados foi efectuada em 2 momentos. Na altura da TVB, com colheita
da informação clínica do Centro HD, dados demográficos e FRCV (hipertensão
arterial, diabetes, tabagismo, doença arterial obstrutiva periférica, doença
coronária, obesidade). Posteriormente, a partir do Processo Clínico Electrónico
registou-se o número prévio de acessos de HD e o intervalo de tempo entre a
construção da FAV úmero-basílica e a TVB. O seguimento das TVB, com
conhecimento da sua evolução, início de utilização, complicações e
reintervenções foi obtido a partir dos registos clínicos dos Centros HD e
Nefrologistas responsáveis.
Os conceitos de patência primária, primária assistida e secundária utilizados
são os recomendados pela SVS/American Association for Vascular Surgery para os
acessos vasculares de HD. [16]
A análise estatística foi efectuada com recurso ao PASW Statistics 18.
TÉCNICA CIRÚRGICA
Praticamos sempre a cirurgia em dois tempos: a arterialização da veia basílica
por um período de 8 a 10 semanas melhora o seu calibre e comprimento,
permitindo afastá-la das incisões e reduzir o tempo de maturação após a
transposição.
No primeiro tempo cria-se a FAV úmero-basílica na prega do cotovelo, sob
anestesia local. O segundo tempo é efectuado com um intervalo mínimo de 8
semanas, sob anestesia local e sedação. Após marcação pré-operatória do
trajecto da veia basílica arterializada | FIGURA 1 | efectuam-se 3 pequenas
incisões no braço, de 2-3cm, que permitem o isolamento e a colheita da veia
basílica em toda a sua extensão, com mobilização completa da mesma.
| FIGURA 1 | Marcação pré-operatória de veia basílica arterializada.
De seguida, secciona-se a veia basílica, cerca de 1 cm proximal à anastomose
úmero-basílica prévia e efectua-se botoeira invertida dos dois topos | FIGURA 2
|.
| FIGURA 2 | Veia basílica isolada e seccionada
O túnel subcutâneo é efectuado o mais afastado possível das incisões de
colheita de veia basílica | FIGURA 3 |. Utilizamos um tunelizador que consiste
num segmento de metal maleável recoberto por um tubo de plástico que protege a
veia basílica durante a manobra de tunelização. Por fim, testa-se a veia
basílica para prevenir torções e efectua-se a reanastomose veno-venosa,
restabelecendo a fístula | FIGURA 4 |.
| FIGURA 3 | a)Tunelização subcutânea, b) Tunelizador
| FIGURA 4 | a)Pós-operatório imediato, b) TVB pós-maturação
Não foi efectuada profilaxia antibiótica nem antiagregação no pós-operatório.
A primeira canulação é efectuada 6 a 8 semanas após o procedimento.
RESULTADOS
A amostra compreendeu 74 doentes, com uma idade média de 58,9±16,7 anos e com
predomínio do sexo masculino (65%).
Os doentes apresentavam, em média, 2,0 FAV prévias (P25=1,0; P75=3,0). A TVB
foi o primeiro acesso em 20,3% dos casos.
As co-morbilidades são apresentadas na TABELA 2.
| TABELA 2 | Dados demográficos
O intervalo de tempo mais frequente entre o primeiro e o segundo tempo do
procedimento foi 12 semanas | FIGURA 5 |. A distribuição pouco uniforme que se
observa no gráfico deve-se ao facto de a FAV úmero-basílica ser efectuada em
latero-lateral, o que arterializa simultaneamente as veias basílica e cefálica.
No entanto, a TVB só se efectua quando a veia cefálica já não se encontra
adequada para a realização de HD.
| FIGURA 5 | Distribuição do intervalo de tempo entre 1o e 2o tempos cirúrgicos
O intervalo de tempo entre a TVB e a 1a punção também foi muito variável |
FIGURA 6 |, no entanto, o mais frequente foi um intervalo de 6 semanas.
| FIGURA 6 | Distribuição do intervalo de tempo entre TVB e 1a punção
O tempo médio de seguimento das TVB foi de 14,5 meses. Ocorreram dois casos de
falência primária (aos 30 dias). A patência primária, primária assistida e
secundária foi de 83%, 95,7% e 95,7% aos 3 meses; 65,4%, 85,1% e 85,1% aos 12
meses e 39,4%, 62,2% e 62,2% aos 24 meses | FIGURA 7 |. No nosso estudo as
patências primárias assistidas e as secundárias são sobreponíveis, pois nenhuma
trombose de TVB foi recuperada.
| FIGURA 7A | Transposição de veia basílica: patência primária
| FIGURA 7B | Transposição de veia basílica: patência primária
| FIGURA 7C | Taxas de patência
Avaliando o impacto dos FRCV e dos dados demográficos dos doentes na patência
das TVB concluímos que somente a DM se associou a uma pior taxa de patência, de
um modo estatisticamente significativo | FIGURA 8 |.
| FIGURA 8 | Impacto dos factores de risco cardiovascular na patência da TVB
A taxa de complicações peri-operatórias (nos primeiros 30 dias) foi de 28,4%,
sendo a infecção a complicação mais frequente, seguida do hematoma, hipertensão
venosa e estenose venosa | TABELA 3 |.
| TABELA 3 | Complicações pós-operatórias
De entre as complicações tardias (> 30 dias) predominou a trombose, seguida da
hipertensão venosa. Tivemos 3 casos de hematoma pós-punção, 1 síndrome de
roubo, 1 rotura de FAV e 1 aneurisma arterial iatrogénico, pós-punção.
Em suma, 58,6% das TVB tiveram uma complicação, em algum momento, durante o
período de seguimento. A trombose foi, sem dúvida, a complicação mais frequente
(responsável por 33,3% de todas as complicações) e nenhuma foi recuperada. No
entanto, 43,2% das outras complicações foram resolvidas / controladas apenas
com tratamento conservador. As re-intervenções foram variadas e compreenderam
procedimentos endovasculares e cirurgia clássica | TABELA 4 |.
| TABELA 4 | Reintervenções
A taxa de mortalidade peri-operatória foi de 1,35%, que corresponde a um doente
que faleceu ao 17º dia pós-operatório com quadro de abdómen agudo, não
relacionado com o procedimento. Durante o período de seguimento ocorreram 6
mortes (8,1%).
DISCUSSÃO
A avaliação pré-operatória, com ecodoppler, da qualidade da veia basílica e do
seu calibre melhora os resultados, particularmente no que diz respeito ao
sucesso técnico.
A National Kidney Foundation recomenda que um acesso autólogo deve ter uma
patência de 70% ao ano e 60% ao fim de dois anos. Os nossos resultados cumprem
esse objectivo (patência secundária de 85.1% e 62,2% ao fim de 1 e 2 anos,
respectivamente). Comparando com outros estudos de TVB, as nossas patências são
bastante aceitáveis | TABELA_1 |.
A DM prejudica a maturação das FAVs e condiciona pior patência do acesso, como
se constata no nosso estudo.
Após a análise dos resultados vamos introduzir uma modificação na nossa
prática, isto é, fazer profilaxia antibiótica durante o 2º tempo do
procedimento cirúrgico.
É importante sensibilizar os profissionais de saúde para a sinalização precoce
da trombose de TVB, de forma a intervir atempadamente. É essencial associar à
trombectomia o estudo angiográfico da FAV, com o intuito de se identificar a
causa da trombose e efectuar a sua adequada correcção por cirurgia clássica ou
endovascular.
CONCLUSÃO
A TVB pode ser realizada com baixa morbilidade e com tempos de maturação
aceitáveis. Deve ser programada e tentada sempre que se esgotem os acessos
autólogos primários e antes de ponderar o uso de prótese arterio-venosa.
A técnica cirúrgica desenvolvida reduziu o tempo cirúrgico, diminuiu a
morbilidade operatória e apresentou resultados que cumprem as guidelines
internacionalmente aceites (K-DOQI 2006).