Falso Aneurisma da Artéria Tibial Anterior
INTRODUÇÃO
As lesões traumáticas são muito comuns, sendo responsáveis por 2.6 milhões de
hospitalizações por ano nos Estado Unidos. A maioria dos doentes corresponde a
homens com idade inferior a 45 anos [1]. As lesões vasculares periféricas
correspondem a 80% de todos os casos de lesão vascular. O trauma vascular
ocorre mais frequentemente nas extremidades inferiores, com predomínio dos
traumatismos penetrantes em relação aos traumatismos fechados. A incidência de
lesões arteriais na sequência de traumatismo penetrante dos membros é de 10%.
[1].
A apresentação clínica das lesões arteriais pode ocorrer sob a forma de
hemorragia externa, isquemia aguda, falso aneurisma ou hemorragia interna com
sinais de choque [1].
Os falsos aneurismas podem ocorrer após traumatismo penetrante ou fechado da
parede arterial [2].
A ocorrência de falso aneurisma das artérias crurais secundária a traumatismos
penetrantes é relativamente rara e configura uma complicação tardia de lesão
arterial [2].
A incapacidade funcional secundária a lesões vasculares crurais,
predominantemente associada a destruição musculo-esquelética e nervosa, pode
permanecer como um problema em 20-50% dos casos. A maior ameaça à viabilidade
do membro não é a perda de um eixo infra-poplíteo, mas a síndrome de
compartimento muitas vezes presente. A maioria destes doentes são jovens, com
leitos arteriais sem doença, massas musculares bem desenvolvidas e
compartimentos fasciais robustos.
O índice de suspeição deve manter-se elevado por forma ao diagnóstico e
tratamento precoces a fim de minimizar as consequências da síndrome de
compartimento [1,2].
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, com 16 anos de idade, sem antecedentes pessoais
relevantes. Admitido no Serviço de Urgência por ferida corto-contusa vertical,
com cerca de 10 cm de comprimento, na face anterior do terço médio da perna
direita, que resultou de uma queda com traumatismo num objecto metálico
contundente. Foi suturado e realizou radiografia da perna, que excluiu
fractura, luxação ou corpo estranho radio-opaco.
Uma semana depois recorreu novamente ao Serviço de Urgência por dor e edema da
perna e parestesias no pé direitos. Ao exame físico, apresentava tumefacção
pulsátil e expansível no local da sutura, associada a frémito e sopro | FIGURA
1 |. Os pulsos pedioso e tibial posterior estavam presentes e a auscultação de
fluxos doppler revelou fluxos trifásicos nos três eixos distais.
| FIGURA 1 | Tumefacção pulsatil e expansível no local da sutura
O exame neurológico mostrou limitação da dorsiflexão do pé e da extensão dos
dedos e diminuição da sensibilidade no primeiro espaço interdigital, sem outras
alterações motoras ou sensitivas. O compartimento muscular anterior encontrava-
se sob tensão.
A realização de Ecodoppler arterial dos membros inferiores confirmou a presença
de falso aneurisma da artéria tibial anterior direita, com 2.3x3.5 cm | FIGURA
2 |.
| FIGURA 2 | Ecodoppler: Falso aneurisma da artéria tibial anterior direita
Dada a presença de síndrome de compartimento, com compressão nervosa, foi
submetido a cirurgia, sob bloqueio do neuro-eixo. Procedeu-se a exploração
cirúrgica, constatando-se destruição muscular parcial dos músculos do
compartimento anterior da perna com integridade do nervo peroneal profundo.
Realizou-se ressecção do falso aneurisma e laqueação proximal e distal da
artéria tibial anterior | FIGURA 3 | e fasciotomia do compartimento anterior,
com cerca de 15 centímetros de extensão. O encerramento cutâneo foi protelado
por três dias e realizado em segundo tempo. O pós-operatório decorreu sem
complicações e com melhoria significativa das queixas álgicas e dos défices
neurológicos. Teve alta ao 4º dia de pós-operatório, orientado para Consultas
de Cirurgia Vascular e de Medicina Física e de Reabilitação.
| FIGURA 3 | Fotografias da Cirurgia. Seta branca ' Falso aneurisma
Após três anos de seguimento, apresenta boa perfusão distal do pé direito, com
pulso tibial posterior, fluxo peroneal trifásico e sem défices motores ou
sensitivos.
DISCUSSÃO
A presença de tumefacção pulsátil após um traumatismo penetrante deve levantar
a suspeita de falso aneurisma. Este resulta da laceração parcial da artéria,
sem secção completa, mas com lesão das três camadas da parede arterial [1,3,4].
O defeito na parede arterial permite o extravasamento de sangue, com formação
de uma cavidade com fluxo sanguíneo contida pelos tecidos circundantes e que
mantém comunicação com o sistema arterial, o que lhe permite adquirir
pulsatilidade [1,3,4,5]. Distinguem-se dos hematomas pela presença de fluxo
arterial no saco aneurismático, unido ao lúmen arterial pelo colo [1]. Os
falsos aneurismas diferem dos verdadeiros porque nenhum elemento da parede
arterial participa na formação do saco aneurismático [1]. A parede do falso
aneurisma é composta por trombo e pelos tecidos circundantes comprimidos [1]. A
fragilidade da parede do falso aneurisma confere-lhe risco aumentado de
expansão e rotura [3,6].
A etiologia dos falsos aneurismas pode ser traumática, iatrogénica ou
infecciosa [3].
Os mais frequentes são aqueles que resultam de punção percutânea para acesso
arterial, com uma taxa que varia entre os 0.8-8% [1,5,7]. Outras causas menos
frequentes são procedimentos endovasculares (<1% depois de angioplastia ou
stenting) e cirurgia arterial reconstrutiva (1-5% das anastomoses femorais com
conduto sintético) [7].
Os falsos aneurismas infra-poplíteos estão muitas vezes associados a fractura
de um osso longo ou luxação da articulação do tornozelo [4,6].
Na presença de falso aneurisma, o exame físico inicial pode ser normal ou pode
apresentar-se como uma tumefacção pulsátil e expansível, associada a frémito e
sopro sistólico, dias a meses após o traumatismo [1,3].
O diagnóstico pode ser confimado por ecodoppler, TAC, ressonância magnética ou
arteriografia [3]. O Ecodoppler tem 94% de sensibilidade e 97% de
especificidade na avaliação de traumatismos penetrantes e fechados do pescoço e
dos membros e é a modalidade diagnóstica de eleição [1, 7]. A aparência
ecográfica típica de um falso aneurisma é a de um saco ecolucente, pulsátil,
com fluxo arterial turbilhonar e com um colo que liga o saco aneurismático ao
lúmen arterial [1]. Na janela espectral, observa-se um padrão de fluxo “to-and-
fro” no colo, patognomónico, que corresponde ao movimento do sangue para o
interior do saco na sístole e ao esvaziamento durante a diástole [1].
Não estão publicados dados relativamente à importância do tamanho do falso
aneurisma das artérias crurais [2]. As complicações possíveis são a rotura, com
hemorragia e eventual instabilidade hemodinâmica, a embolização distal com
isquemia, a compressão de estruturas adjacentes e a isquemia cutânea, com
ulceração e progressão para necrose [1,3,8,9].
Os falsos aneurismas arteriais podem ser tratados por compressão, injecção de
trombina, por abordagem endovascular ou cirúrgica [2,3,7,9].
A primeira abordagem terapêutica na ausência de sintomas compressivos é a
compressão, que pode ser ecoguiada [5,7]. A compressão ecoguiada tem uma taxa
de sucesso de 78-95% [5]. Quando esta falha recomenda-se injecção de trombina,
guiada por ecodoppler [1,5,7]. Em tripplex scan, a agulha é inserida no saco e
a trombina é injectada lentamente. O processo é completado pela confirmação da
trombose do saco permanecendo o lúmen arterial com fluxo normal [1]. A taxa de
sucesso é de 90-94% [5].
A escolha de outras técnicas depende de diversas circunstâncias: o local
anatómico e o diâmetro do falso aneurisma, as características do doente, o
leito vascular periférico e presença de complicações (dor, sintomas
neurológicos, edema por compressão venosa, etc) [7].
O tratamento endovascular pode ser realizado através de oclusão transluminal
temporária com balão do colo do falso aneurisma [7].
Pode proceder-se a embolização com coils de aço, partículas de gelatina ou
dacron ou esferas de silicone e bário [1,2,3,7,9]. Em alternativa, o falso
aneurisma pode ser excluído através da libertação de um stent recoberto
[1,2,7,8]. As vantagens do tratamento endovascular são a capacidade para chegar
a locais que iriam requerer exploração cirúrgica extensa, com maior risco de
complicações. Além disso, permite a mobilização rápida e o rápido retorno à
actividade normal, porque é minimamente invasiva e associada a uma baixa taxa
de complicações [3].
Quando o falso aneurisma é sintomático preconiza-se o tratamento cirúrgico[6].
As opções cirúrgicas são sutura directa da lesão da parede arterial,
angioplastia com patch, exérese de falso aneurisma com anastomose topo-a-topo
ou laqueação proximal e distal do vaso. Nesta última circunstância, pode ou não
optar-se por reconstrução através de interposição de enxerto ou bypass [1,2,6].
A lesão de um único eixo infra-poplíteo pode ser tratada com laqueação da
artéria se a perfusão do pé estiver assegurada por dois eixos íntegros, como no
caso apresentado [2].
A maior ameaça à viabilidade do membro é a síndrome de compartimento e
subsequente lesão de tecidos moles e compressão nervosa, pelo que se recomenda
fasciotomia. O compartimento anterior da perna é o mais sujeito ao
desenvolvimento de síndrome de compartimento, pelo que as lesões aí localizadas
requerem maior vigilância [1].
A maioria das lesões arteriais é clinicamente silenciosa e em 25% dos casos
estão presentes pulsos arteriais distais à lesão, configurando um desafio
diagnóstico [1].