Malformação arteriovenosa da artéria hipogástrica: A propósito de um caso
clínico
Introdução
As malformações arteriovenosas (MAVs) pélvicas são raras, particularmente no
sexo masculino. Nesta localização, as lesões são frequentemente adquiridas,
como resultado de neoplasias, trauma pélvico ou pós-cirúrgicas, sendo de suma
importância a sua exclusão na altura do diagnóstico. As MAVs génito-urinárias
também podem surgir associadas ao Síndrome Kippel-Trenaunay, bem como ao
Síndrome Parks-Weber1.
Estas malformações representam a persistência de elementos vasculares
primitivos e são caraterizadas por múltiplas macro e microcomunicações entre os
sistemas arterial e venoso de baixa resistência2.
As modalidades terapêuticas incluem: 1) excisão cirúrgica; 2) embolização
percutânea ou, 3) combinação da embolização pré-operatória e excisão cirúrgica.
O tratamento cirúrgico está associado a uma elevada morbilidade intra e peri-
operatória (hemorragia massiva, lesão de órgão adjacente), baixa taxa de cura e
elevada recorrência3. Recentemente, o tratamento endovascular com a
cateterização superseletiva dos vasos de suprimento e a administração
transcatéter de agentes embólicos, veio revolucionar o tratamento das
malformações vasculares.
Neste artigo reporta-se o caso clínico de um doente com MAV pélvica congénita e
discute-se a abordagem terapêutica destas lesões com base numa revisão da
literatura.
Caso clínico
Doente do sexo masculino, de 72 anos, com antecedentes pessoais irrelevantes,
sem história prévia de cirurgia ou traumatismo, recorreu ao médico assistente
com sintomas de disúria e hematúria e desconforto pélvico vago. Ao exame
objetivo não apresentava sopros pélvicos e ao toque retal constatava-se a
presença de uma massa indolor, de consistência mole, na parede posterior
esquerda do reto.
Na investigação etiológica do quadro clínico, realizou tomografia computorizada
(TC) que mostrou uma MAV da artéria hipogástrica esquerda e foi referenciado à
consulta de Cirurgia Vascular.
Pela sintomatologia apresentada, foi proposto tratamento. Foi realizada
angiografia via femoral direita, que mostrou a malformação com origem na
artéria hipogástrica esquerda e drenagem para a veia hipogástrica esquerda
através de veias varicosas (fig._1). Após introdução do catéter nos ramos de
suprimento da artéria hipogástrica, foi feita a embolização com 2 HydroCoils
(AZUR Peripheral HydroCoil da Terumo®).
Durante follow-up, aos 12 meses, verificou-se reaparecimento da sintomatologia,
com dor pélvica e foi realizada TC de controlo que mostrou persistência da MAV.
Foi então submetido a novo tratamento percutâneo que consistiu em re-
embolização com coils de platina VortX-35 da Boston Scientific® (fig._2).
Após finalização do procedimento foi realizada angiografia digital que
confirmou a desvascularização e trombose do nidus da malformação (fig._3).
No follow-up aos 6 meses verificou-se que o doente permanecia assintomático e
TC de controlo mostrou persistência mas com redução das dimensões da MAV.
Malformação arteriovenosa da artéria hipogástrica A propósito de um caso
clínico
Comentários
As malformações congénitas pélvicas em doentes do sexo masculino, são raras e
estão apenas descritos 17 casos na literatura3,4. Nas mulheres estas
malformações tendem a ser mais complexas, com múltiplas artérias de suprimento
e sendo a recorrência muito comum. Os homens têm um padrão distinto
caraterizado pelo suprimento arterial da lesão pela artéria hipogástrica e
veias de drenagem massivamente dilatadas. É o componente venoso que causa os
sintomas por compressão das estruturas circundantes5.
A história natural das malformações vasculares é variável. Podem permanecer
assintomáticas durante vários anos. Quando os sintomas desenvolvem podem ser:
dor, efeito de compressão de órgãos adjacentes, hemorragia, insuficiência
cardíaca de alto débito, impotência e isquémia. Estes sintomas geralmente não
resolvem sem intervenção6.
A ausência de sinais e sintomas específicos tornam o diagnóstico difícil e
muitas vezes é de exclusão. No caso da suspeição clínica devem ser realizados
exames de imagem direccionadas, como a ecografia e, para avaliar a extensão e
envolvimento das estruturas adjacentes e demonstrar quais os vasos de
suprimento e veias de drenagem é necessário a realização de Angio-TC ou Angio-
RM7.
Habitualmente o diagnóstico das MAV congénitas pélvicas, no sexo masculino, é
realizado em doentes com uma idade média de 34-40 anos, sendo rara a
apresentação da doença numa idade avançada, como acontece com o doente no caso
clínico apresentado. Dos 17 casos descritos na literatura, apenas 5 se referem
a doentes com idades superiores a 65 anos4.
Considerando as características clínicas e hemodinâmicas das malformações
vasculares, a regra principal, no que concerne à sua abordagem terapêutica, é
que nem todas as lesões devem ser tratadas e não existe nenhum procedimento de
rotina que possa ser aplicado a todas as MAVs1.
As indicações para o tratamento das MAVs incluem a presença de sintomas,
expansão ou crescimento das lesões e problemas funcionais como a compressão das
estruturas adjacentes1. Outro fator importante a considerar na seleção do tipo
de tratamento é a sua localização, tendo de se considerar a sua acessibilidade
cirúrgica.
No caso de lesões assintomáticas, está recomendada a vigilância com base na
observação clínica e exames de imagem periódicos3 (6 meses).
Em 2002, Xavier Game fez o maior estudo de revisão da literatura com apenas 19
casos de MAVs pélvicas no sexo masculino descritos. Destes 19 doentes, 9 foram
tratados cirurgicamente, 3 através de embolização percutânea e cirurgia e os
restantes 7 doentes com embolização percutânea4.
O tratamento cirúrgico é o único procedimento com potencial de cura, contudo
está associado a elevada morbilidade e a resseção incompleta está associada a
elevada recorrência1. A localização pélvica da malformação impede muitas vezes
a intervenção cirúrgica e a cirurgia está associada a hemorragia e com risco de
lesão de órgãos adjacentes7.
O desenvolvimento de técnicas de cateterização superseletiva, o aparecimento de
novos cateteres e agentes embolizantes tornaram o tratamento endovascular por
via percutânea, muito apelativo neste tipo de malformações.
O princípio do tratamento endovascular, consiste no encerramento das
comunicações primárias através da embolização com substâncias que obstruem
mecanicamente as conexões que alimentam o nidus da lesão6.
A técnica consiste na realização de angiografia na altura do procedimento. Caso
haja dificuldade em alcançar o nidus da lesão, devido à presença de múltiplas
artérias de suprimento da lesão, pela presença de ramos arteriais importantes
para o suprimento normal de órgão distal, extrema tortuosidade arterial, ou
cirurgia prévia8; pode ser considerada a punção direta, se anatomicamente
acessível ou, em alternativa, ser utilizada uma abordagem transvenosa1.
A abordagem transvenosa está amplamente descrita sendo a abordagem preferível
para as lesões de baixo fluxo e com várias artérias tributárias a drenar para a
lesão9,10,11. Relativamente ao presente caso clínico, e tal como na maioria das
MAVs pélvicas no sexo masculino, o doente apresentava um único vaso de
suprimento (artéria ilíaca interna esquerda), tendo-se preferido então a
embolização seletiva arterial. Além disso, tratando-se de uma lesão de alto
fluxo, existe um risco maior de embolização pulmonar do material embólico na
abordagem transvenosa.
Vários materiais embólicos foram e são usados, como: espuma, microesferas de
polímero, partículas de polivinil álcool, balões destacáveis, coils de platina
e aço inoxidável, etanol, agentes adesivos rapidamente polimerizantes6. A
evolução dos materiais para embolização disponíveis, particularmente os agentes
rapidamente polimerizantes, permitiu uma melhoria significativa no controlo e
erradicação das conexões mais complexas.
Os princípios para uma embolização mais eficaz e com menos complicações, e que
devem ser tidos em conta quando se planeia o tratamento destas malformações,
sãos os seguintes:
O uso de agentes de oclusão temporários (espuma reabsorvível, preparações de
colagénio) devem ser 24 usados apenas como complemento pré-cirúrgico, para
redução das dimensões da lesão.
O uso de agentes tóxicos como o etanol absoluto que foi descrito em vários
estudos12,13, e que é usado mais frequentemente nas malformações de baixo-
fluxo, está associada a toxicidade tecidual podendo originar lesão nervosa
permanente ou necrose tecidual.
Oclusão macroscópica com balões destacáveis ou coils, equivale à laqueação
cirúrgica das artérias de suprimento, distantes ao nidus. A oclusão proximal
está associada a bons resultados iniciais com diminuição do fluxo na
malformação mas, se o nidus não for tratado, irá revascularizar. Contudo, os
coils de pequeno a grande calibre são úteis em malformações de maiores
dimensões1.
Os coils podem ser de aço inoxidável ou de platina, apresentam diferentes
comprimentos, diâmetros e formas e podem ter diferentes revestimentos que
aumentam a trombogenecidade (lã, seda, nylon, poliéster) ou proporcionam um
maior volume de oclusão através de biopolímero expansível13 (Hydrogel Coils).
Preferência pelo uso de pequenas partículas que possam ser depositadas no
nidus da lesão: partículas de espuma de polivinil álcool (50-1000 mm);
microesferas de polímero superabsorventes14 (acrilato de sódio e copolímero de
álcool vinil); Copolímero de etileno vinil álcool diluído pelo solvente
orgânico dimeril sulfóxido DMSO15 (Onyx®); agentes rapidamente polimerizantes
como N-butil cianoacrilato (NBCA) que é injetado na forma líquida e polimeriza
rapidamente em contato com o sangue16. Isto permite a oclusão de ramos que
alimentam o nidus apesar do não alcance do microcateter1.
No presente caso clínico, a MAV apresentava uma artéria de suprimento de
calibre elevado e com elevado fluxo, que elevava o risco de embolização
pulmonar com o uso de agentes esclerosantes, pelo que se optou por agentes de
oclusão mecânicos, nomeadamente Hydrocoils de modo a ocluir o suprimento
arterial e reduzir o fluxo no nidus da lesão para poder induzir a sua trombose.
Aquando do tratamento da lesão recorrente, após 12 meses do primeiro
procedimento, a angiografia revelada mostrou persistência da MAV, que mantinha
elevada taxa de fluxo, pelo que se voltou a optar por um agente de embolização
mecânico, com coils de platina.
Os procedimentos endovasculares surgem associados a elevada recorrência devido
a recanalização e neovascularização. Nestes casos, a embolização pode ser
repetida se os sintomas recorrerem. Jacobowitz, na sua série de 35 doentes, de
ambos os sexos, reportou uma média de 2,4 procedimentos por doente durante um
período médio de 23,3 meses6.
As complicações do tratamento percutâneo são: febre, dor pélvica, hematoma
pélvico, trombose venosa, embolia pulmonar e complicações associadas ao local
de punção como hematoma ou oclusão arterial12.
O sucesso do tratamento é definido com a erradicação da lesão ou melhoria dos
sintomas. O follow-up, através da história clínica e exame físico, é fulcral de
forma a poder detetar-se a recorrência de sinais e sintomas. Para confirmar a
presença da malformação, o eco-doppler pode ser útil, mas no caso das lesões
pélvicas, é preferível a realização de angio-TC ou angio-RM, para vigilância e
follow-up.
Conclusão
As MAVs pélvicas representam uma entidade clínica rara e complexa, de difícil
abordagem terapêutica. No sexo masculino, estas MAVs tendem a apresentar um
suprimento arterial mais simples e que respondem melhor à embolização arterial
e com menor taxa de recorrência.
O tratamentos destas MAVs infelizmente, é sempre múltiplo, pelo fenómeno
recidivante, devido ao desenvolvimento de neo vasos e/ou recrutamento/
desenvolvimento de vasos pré-existentes. Mesmo a excisão cirúrgica em bloco,
quando possível, não é curativa. O doente deve ser informado e estar consciente
da possibilidade de melhoria, com hipótese quase certa de algum retrocesso em
aparente cura.