Trombo intraprotésico após tratamento endovascular de aneurismas da aorta
Introdução
A reparação endovascular dos aneurismas da aorta abdominal infrarrenal (EVAR)
tem sido adotada cada vez mais frequentemente como modalidade terapêutica
primária, sobretudo em doentes de risco anestésico-cirúrgico intermédio ou
elevado1. Entre as complicações que têm limitado o sucesso clínico a longo
prazo após EVAR encontram-se os eventos tromboembólicos associados à
endoprótese, nomeadamente trombose de ramo ou de toda a endoprótese e com
frequência menor, a embolia dos membros inferiores2,3. A fisiopatologia destes
eventos não está ainda totalmente esclarecida, mas alguns autores sugerem que a
acumulação progressiva de trombo no interior das endopróteses poderá preceder o
evento oclusivo final4,5.
Formação de trombo intraprotésico - um processo dinâmico
A formação de depósitos murais de trombo intraprotésico ocorre em cerca de um
quinto a um terço dos doentes submetidos a EVAR6-8. Contudo, este evento não é
exclusivo às endopróteses abdominais, tendo já sido identificado também em
dispositivos aórticos torácicos9,10.
Esta formação de trombo parece iniciar-se precocemente após a implantação da
endoprótese. Nos doentes estudados por Wu et al.11, o trombo intraprotésico foi
detetado em média aos 10 meses após EVAR (intervalo 1-24 meses). Já no grupo
reportado por Wegener et al.(n = 82), os primeiros casos foram demonstrados
logo na primeira semana após a intervenção4. À semelhança deste último autor, o
nosso grupo identificou a presença de depósitos de trombo intraprotésico logo na
primeira angiografia por tomografia computorizada (angio-TC) pós-operatória em 22
doentes (correspondendo a 32,4% do grupo de estudo reportado)12.
A deposição de trombo dentro da endoprótese parece ser um processo dinâmico,
ocorrendo na maioria dos casos uma progressiva acumulação ao longo do tempo. No
entanto, casos de regressão foram já reportados6,12, tendo sido descritos até 3
casos de regressão completa (3,7% da amostra) por Wegener et al.4.
Fatores preditivos de formação de trombo intraprotésico
A deposição mural de trombo em endopróteses aórticas parece ser um processo
multifatorial, resultando da interação de diversos elementos, nomeadamente
fatores hemodinâmicos locais e sistémicos, fatores hemorreológicos e, por fim,
as características da própria endoprótese.
O tabagismo é responsável por um estado pró-inflamatório mantido, o que leva a
uma perturbação da função endotelial, com repercussão na adesividade celular e
aumento da viscosidade sanguínea13,14. O aumento da viscosidade sanguínea por
sua vez modifica a tensão de cisalhamento sobre a parede da endoprótese,
favorecendo a formação de trombo15. Na população estudada pelo nosso grupo, não
foi demonstrada uma relação entre o tabagismo ativo ou prévio no momento da
implantação da endoprótese e a formação subsequente de trombo intraprotésico (p
= 0,166)12. Todavia, não eram conhecidos os hábitos tabágicos dos doentes após
a realização do EVAR, pelo que a interpretação destes dados é limitada.
Até à data, a literatura disponível é omissa relativamente ao efeito da
antiagregação plaquetária sobre a acumulação intraprotésica de trombo. No
estudo de Maleux et al.todos os doentes se encontravam antiagregados à data da
implantação da endoprótese. Esta terapêutica foi continuada e não evitou a
ocorrência de trombo mural em 55 dos doentes estudados (28%)8. Noutro estudo, à
data da realização do EVAR, não havia diferenças significativas entre o grupo de
estudo (com trombo mural) e grupo de controlo relativamente à utilização de
antiagregação plaquetária (90,2 e 85,2%, p = 0,13). A adesão terapêutica dos
doentes à antiagregação plaquetária após a intervenção cirúrgica não foi
reportada12.
No seu estudo, Mestres et al. sugeriram que o trombo mural da aorta nativa
poderia também contribuir para a acumulação de trombo intraprotésico. Segundo
estes autores, uma maior carga trombótica dentro do aneurisma impedia que a
endoprótese se expandisse totalmente no saco aneurismático após implantação com
consequente alteração da forma geométrica da endoprótese e levando à ocorrência
de fluxos turbulentos no seu interior5. O nosso grupo havia já demonstrado que,
de facto, após o EVAR o trombo mural da aorta nativa desaparece particularmente
no colo proximal contrariando assim o mecanismo proposto por Mestres et al.16.
Contudo, este tende a desenvolver-se subsequentemente no interior da
endoprótese (odds ratio [OR] 1,98, intervalo de confiança de 95% [IC95%]
1,213,24)12. Embora com uma amostra menor, esta associação foi também
corroborada em doentes nacionais, apresentados por Machado et al.(p = 0,038)
(dados não publicados, apresentados no XII Congresso Anual da Sociedade
Portuguesa de Angiologia e Cirurgia Vascular em 2012). Provavelmente fatores
hemorreológicos poderão justificar esta associação por contraposição à hipótese
da expansão incompleta da endoprótese proposta por Mestres et al.5.
O fluxo sanguíneo na aorta abdominal apresenta padrões de fluxo complexos,
gerados ao longo da aorta torácica, que influenciam a tensão de cisalhamento na
parede aórtica17,18e que podem variar significativamente de acordo com o estado
fisiológico do indivíduo, nomeadamente com o exercício físico19--21.
Características anatómicas locais da aorta nativa como a angulação do colo
proximal22têm também impacto no fluxo sanguíneo, podendo gerar fluxos turbulentos
e hipoteticamente originar a formação local de trombo. Num modelo in vitro,
Chong et al.demonstraram que a angulação do colo proximal do aneurisma levava a
criação de padrões de fluxo de recirculação dentro de endopróteses aórticas
abdominais23, o que hipoteticamente favoreceria a formação de trombo no
interior da endoprótese. Contudo, este efeito não foi demonstrado até à data em
estudos clínicos12.
O facto do trombo intraprotésico ser detetado precocemente após EVAR sugere-nos
que a implantação da endoprótese é responsável por introduzir modificações
locais no fluxo sanguíneo que poderão promover a acumulação doentes
4,11,12,24,25de trombo em alguns . A configuração do componente principal da
endoprótese tem sido consistentemente associada a este acontecimento5,8,26,27.
As endopróteses aorto uni-ilíacas (AUI) têm sido associadas a um risco
aumentado de formação de trombo. Num estudo retrospetivo de um centro nacional
apresentado por Machado et al.(n = 92) a correlação entre este tipo de
configuração de endoprótese e o desenvolvimento de trombo intraprotésico esteve
perto de obter significado estatístico (p = 0,076). Já numa análise do nosso
grupo, fruto de uma maior dimensão da amostra, esta correlação foi já mais
clara (OR 2,66, IC95% 1,19-5,94)12.Wuetal.sugeriram que o rápido afunilamento
que se verifica nas endopróteses AUI gera uma desaceleração do fluxo sanguíneo a
montante, sendo este o mecanismo que parece favorecer a formação de trombo11.
A disposição geométrica do componente principal da endoprótese dentro do saco
aneurismático pode também levar à formação de trombo intraprotésico. Embora a
expansão da endoprótese no colo proximal seja limitada pelo diâmetro da aorta
nativa, no saco aneurismático não existe geralmente qualquer restrição à sua
completa expansão. Assim, as endopróteses assumem uma disposição «em barril»,
em que a área de secção ao nível do colo proximal e na transição para os ramos
ilíacos da endoprótese são inferiores à área de secção intermédia do componente
principal. Devido a esta configuração pensa-se que a geração de padrões de fluxo
turbulentos e de recirculação à periferia da endoprótese levarão à acumulação
de trombo12,26. Adicionalmente, esta configuração em barril será mais
pronunciada em doentes com colos proximais de maior diâmetro e que receberam
endopróteses de maior dimensão, justificando assim a relação entre o diâmetro do
colo proximal e o desenvolvimento de trombo intraprotésico reportada por
Machado et al. (p = 0,02). Similarmente, e em análise multivariada, os dados
apresentados pelo nosso grupo identificam o diâmetro do colo proximal ≥ 30 mm
como fator de risco independente para a formação de trombo intraprotésico (OR
2,39, IC95% 1,25-4,58).
De acordo com a literatura publicada, as próteses de poliéster são mais
trombogénicas que as de outros materiais28. Um paralelismo semelhante tem
também sido traçado no que respeita as endopróteses aórticas. No estudo de
Mestres et al.5 dos 35 doentes (14,3%) com endopróteses recobertas por
politetrafluoroetileno expandido (ePTFE) apresentaram depósitos de trombo
intraprotésico, enquanto 13 dos 40 doentes (32,5%) com endopróteses cobertas
por poliéster apresentaram este achado5. Embora evidente, esta diferença não
alcançou significado estatístico (p = 0,065), possivelmente por amostragem
insuficiente. À semelhança destes autores, Machado et al.também estiveram perto
de demonstrar uma relação estatisticamente significativa entre o poliéster e a
acumulação de trombo (p = 0,079) (dados não publicados). Contudo, já no grupo
de doentes que reportamos (n = 414), a mesma associação obteve significado
estatístico (OR 2,22, IC95% 1,25-3,92)12.
Impacto clínico da acumulação de trombo intraprotésico
O impacto clínico da formação de trombo intraprotésico após EVAR é ainda um
tema controverso. Katsargyris et al.publicaram um caso de trombose tardia de
uma artéria renal após EVAR no qual a responsabilidade deste evento foi
atribuída à acumulação de trombo dentro da endoprótese. Este trombo terá
progredido proximalmente ao longo do seguimento até envolver a origem da
artéria renal26. No entanto, os autores reportam que esta artéria renal
(direita) tinha já uma estenose prévia (estimada em 60%) e a iconografia do caso
parece até sugerir que pode ter ocorrido uma cobertura parcial do ostiumda
artéria renal pela endoprótese durante a implantação, lançando dúvida sobre a
conclusão dos autores. Mestres et al.reportaram a ocorrência de trombose de
ramo ou da própria endoprótese em 5 doentes de um grupo de 18 (28%) ao longo de
um período de seguimento de 24 meses e concluíram que a formação de trombo
intraprotésico poderia estar associada a eventos tromboembólicos subsequentes5.
Noutros estudos, uma relação de causalidade entre a formação de trombo
intraprotésico e a oclusão de ramo ou da endoprótese após EVAR não parece tão
clara. No estudo de Wegener et al., dos 82 doentes seguidos ao longo de um
período médio de 12 meses, 3 doentes (3,7%) apresentaram oclusão de ramo.
Contudo, em nenhum destes doentes foi identificada a presença de trombo
intraprotésico na angio-TC precedente ao evento4. De forma semelhante, Wu et
al. também identificaram 3 casos (5,9%) de trombose de ramo sem qualquer
evidência de trombo mural dentro da endoprótese na angio-TC precedente11.
Apenas um doente (2,0%) apresentou uma embolia femoral após a deteção de trombo
intraprotésico. Segundo Van Zeggeren et al., de maior importância na patogénese
da trombose de ramo encontram-se a sua compressão e/ou angulação, assim como a
presença de lesões obstrutivas significativas nos eixos ilíacos a jusante da
endoprótese que deverão ser corrigidas atempadamente para evitar o evento
oclusivo29. Por fim, numa população estudada pelo nosso grupo, ao final de um
período de seguimento mediano de 3,54 anos, a frequência de eventos
tromboembólicos não foi significativamente diferente entre os doentes com ou sem
depósitos de trombo intraprotésico (p = 0,70), tendo os únicos 2 casos de
oclusão de endoprótese ocorrido sem terem sido precedidos por formação de
trombo intraprotésico nos exames imagiológicos imediatamente precedentes12.
Abordagem terapêutica
O tratamento dos doentes que apresentam a formação de trombo intraprotésico
após EVAR é alvo de controvérsia dada a escassez de evidência. Diversas
atitudes têm sido propostas pelos diversos autores, que variam desde a
vigilância clínica e imagiológica8até à hipocoagulação oral30. Contudo, esta
última não parece reduzir a taxa de formação de trombo intraprotésico nem tão
pouco promover a sua regressão11.
A presença de trombo intraprotésico, por si só, não parece estar associada a
eventos tromboembólicos durante o seguimento. Por este motivo, para os doentes
assintomáticos, a atitude mais sensata parece-nos ser a vigilância clínica e
imagiológica.
Para os doentes com eventos tromboembólicos associados à formação de trombo
intraprotésico, as atitudes terapêuticas poderão incluir a hipocoagulação oral
ou ainda a exclusão da fonte tromboembólica da circulação com uma nova
endoprótese. Neste último caso deverá ser preferida uma endoprótese recoberta
de ePTFE.
Salienta-se que os estudos até à data publicados a este respeito são
retrospetivos, têm uma amostragem limitada e um seguimento reduzido, pelo que
não é ainda possível retirar conclusões firmes sobre o impacto clínico da
formação de trombo intraprotésico e a abordagem terapêutica a ter.
Conclusões
A formação de trombo mural intraprotésico após EVAR é multifatorial, mas parece
não estar associada a eventos tromboembólicos subsequentes. Contudo, as
evidências disponíveis provêm de estudos retrospetivos de pequena dimensão e
com seguimento reduzido, pelo que não é possível ainda definir com segurança o
impacto clínico deste acontecimento. São necessários mais estudos para melhor
elucidar a história natural e a relevância clínica do trombo intraprotésico
após EVAR. Até lá, dever-se-á manter uma vigilância clínica cuidada destes
doentes com um seguimento imagiológico baseado na angio-TC.
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais.Os autores declaram que para esta investigação
não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dados.Os autores declaram que não aparecem dados de
pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escrito.Os autores declaram que não
aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interesses
Os autores declaram não haver conflito de interesses.