Cuidados Continuados em Saúde Mental: Reflexão sobre Respostas para Pessoas
Cuidados Continuados em Saúde Mental: Reflexão sobre Respostas para Pessoas
A evolução dos modelos de cuidados continuados para a saúde mental, reflete a
multiplicidade de variáveis que influenciaram estes projetos e as
características das respostas surgidas em cada contexto. As condicionantes
resultam da história e cultura de cada região e das motivações que
desencadearam os processos, na maior parte das situações tendo como primeiro
objetivo o encerramento das instituições psiquiátricas em resposta a uma maior
consciencialização e defesa dos direitos humanos das pessoas em desvantagem
social. Mas igualmente outros aspetos essenciais da organização dos serviços de
saúde e sociais, como, o económico numa lógica de melhor custo'beneficio dos
serviços prestados, a disponibilidade e formação dos técnicos, a conceção sobre
o papel dos cuidados continuados na continuidade de cuidados, contribuíram para
a mudança de perspetiva em relação aos serviços a disponibilizar para as
pessoas com doença mental grave (DMG) e suas famílias. Deste modo não se pode
falar de uma história de cuidados continuados para a saúde mental, mas de
várias histórias que se revelam diferentes de país para país e em alguns
países, de região para região.
Por outro lado, podemos afirmar que a evolução de respostas em cuidados
continuados de saúde mental acompanhou a evolução do pensamento técnico-
científico em relação à conceção da pessoa com DMG. Da referência ancestral ao
louco, transitou-se para uma conceção de doente, e finalmente para a do cidadão
com doença psiquiátrica ou mental, a quem se reconhece o direito pleno de
exercício da cidadania. Para esta transição contribuíram muito os processos de
desinstitucionalização que ocorreram em vários países europeus, largamente
influenciados pelas perspetivas "revolucionárias" de Basaglia em Trieste
(Itália).
As primeiras respostas nesta área foram criadas essencialmente para promover a
desinstitucionalização, numa perspetiva de transição das estruturas asilares
para a comunidade, onde por via das características desta população, existia
uma componente terapêutica acentuada. As respostas residenciais com o seu
ambiente doméstico, ainda que nesta fase inicial se destinassem
predominantemente a pessoas com internamentos hospitalares muito prolongados e
suposto menor potencial de reabilitação, foram referidas como promotoras da
melhoria da qualidade de vida e aumento da satisfação dos residentes (Girolamo
et al., 2007; Thornicroft, Bebbington, & Leff, 2005).
Progressivamente foi-se assistindo a uma maior autonomização destas estruturas
de reabilitação em saúde mental, relativamente aos serviços de saúde,
procurando adaptar-se as respostas a diferentes necessidades. As primeiras
unidades residenciais comunitárias surgem com o objetivo de estimular a
autonomia e capacidade de decisão dos residentes, aumentar o potencial de
adaptação da pessoa com DMG a diferentes contextos e facilitar a sua integração
social. Mas foi ocupando maior destaque o apoio residencial, como alternativa
eficaz na promoção da autonomia, iniciativa e integração social das pessoas em
processo reabilitativo.
Convém salientar, que a desinstitucionalização obriga a cuidadosa ponderação
quanto ao seu impacto nas pessoas que têm de transitar para outro ambiente e
estrutura. Não obstante a sua intenção beneficente, estes processos têm custos
psicológicos para a pessoa envolvida, o que significa que devem ser
cuidadosamente preparados para minimizar as dificuldades e sofrimento que podem
resultar nesta transição (Farhall, Trauer, Newton, & Cheung, 2003;
Friedrich, Hellingsworth, Hradek, Friedrich, & Culp, 1999).
As primeiras residências de cuidados continuados respondiam a uma necessidade
de encerramento dos hospitais psiquiátricos, e respetiva desinstitucionalização
das pessoas aí internadas, dirigindo-se a pessoas com necessidades
relativamente homogéneas para quem a simples mudança de condições representava
um avanço considerável. Gradativamente, assistiu-se a uma mudança na população
atendida (mais jovem), com necessidades heterogéneas e maior capacidade
reivindicativa, que em vários países culminou na organização de grupos de
utentes e familiares com maior poder de exigência no acesso à habitação e
emprego apoiados.
A tendência atual na organização de cuidados continuados em saúde mental
traduz-se num modelo misto, que inclui as dimensões saúde e social, procurando
responder a diferentes exigências de cuidados, organizados em rede e promotores
de aquisição de competências para a vida na comunidade.
Neste âmbito, alguns aspetos comuns às diferentes experiências internacionais
têm sido frequentemente referidos:
· Consenso quanto à importância das intervenções na comunidade para uma
evolução mais favorável da pessoa com DMG (Sylvestre, Nelson, Sabloff, &
Peddle, 2007);
· Programas com ênfase na funcionalidade pessoal e social sustentada numa
rede de serviços de apoio (Maria e Sousa, 2000; Nelson, Hall, & Walsh-
Bowers, 1998; Nelson, & Peddle, 2005; Sylvestre et al., 2007);
· Cuidados baseados numa perspetiva de evolução gradual para a maior
autonomia possível;
· Respostas que pressupõem transição progressiva para residências com
maior autonomia (continuum residencial) ou outras mudanças semelhantes são
desestabilizadoras e não se traduzem em ganhos de competências ou satisfação
dos utilizadores (Marcelino et al., 2004; Maria e Sousa, 2000; Nelson, Aubry,
& Hutchinson, 2010);
· Residências de grande lotação assim como ambientes restritivos ou
demasiado protegidos diminuem a iniciativa, promovem a dependência e autonomia
e diminuem a satisfação dos residentes (Macpherson, Shepherd, & Edwards,
2011; Maria e Sousa, 2000; Mcinerney, Finnerty, Avalos, & Walsh, 2010;
Nelson, & Peddle, 2005; Nelson et al., 2010; Piat, Wallace, Wohl, Minc,
& Hatton, 2002; Sylvestre et al., 2007).
· Preferência dos utilizadores por alojamentos com maior autonomia e maior
privacidade (Macpherson et al., 2011; Nelson, & Peddle, 2005; Nelson et
al., 2010; Sylvestre et al., 2007).
As dificuldades surgem em relação a:
· Características e número de profissionais em cada dispositivo
residencial, muito diversificado e dependendo da origem das respostas (sectores
da saúde ou social, público ou privado, lucrativo ou não lucrativo...);
· Diferentes metodologias e seleção de variáveis utilizadas na avaliação
do impacto dos programas nos utentes, que não permite uma comparação dos
modelos de reabilitação e respostas utilizados ainda que todos os resultados
sejam animadores:
o Melhor adesão aos tratamentos;
o Estabilização da sintomatologia positiva e melhoria da negativa;
o Assunção do papel nas atividades de vida diária;
o Maior iniciativa social e autonomia;
o Melhoria nas relações interpessoais;
As avaliações salientam sempre o maior risco das respostas residenciais, o
risco de transinstitucionalização. Ou seja, o risco de repetição de práticas e
ambientes não promotores de um processo de reabilitação e integração da pessoa,
representando apenas uma mudança de uma "instituição" para outra "instituição".
Este risco pode ser combatido através de medidas organizacionais e de controlo
de qualidade, nomeadamente com o enquadramento claro em princípios que orientem
os envolvidos nestas respostas, na definição dos serviços prestados, na seleção
de profissionais, acompanhamento, formação e valorização dos mesmos, na
participação efetiva dos utentes na tomada de decisão e na criação de
oportunidades para a sua integração na comunidade, numa avaliação periódica dos
resultados obtidos.
Uma discussão habitual, interessante, que influencia as características das
respostas em cuidados continuados na saúde mental, tem sido a ausência de
consenso em torno da operacionalização do próprio conceito subjacente. As
residências para a reabilitação da pessoa com DMG devem ser locais de
tratamento, ou locais de habitação de onde se parte para programas de
reabilitação e para os cuidados de saúde em geral (Marcelino et al., 2004;
Santone et al., 2005). A experiência pessoal, profissional dos técnicos de
saúde condiciona o posicionamento em relação ao que pensam ser a melhor solução
para os seus utentes, mas o erro básico residirá exatamente nesta suposição
baseada na experiência se não lhe for acrescentado o desejo e aspiração das
pessoas a quem se destinam estas respostas.
Alguns Exemplos
A reforma psiquiátrica Italiana, modelo relevante neste âmbito e que decorre
desde 1978, tem ela própria sido heterogénea. Surgiram variadas estruturas
residenciais, com diferenças consideráveis na composição das equipas e mesmo na
conceptualização dos processos de intervenção. As avaliações realizadas em 2005
(Girolamo et al., 2005, Santone et al., 2005) tornaram evidente entre outros
aspetos, que residências com programas e funcionamento muito restritivo não
satisfaziam os residentes, e que algumas atividades como reuniões periódicas
onde participavam profissionais e utentes eram sentidas como muito positivas,
melhorando a sensação de participação na decisão e as relações interpessoais.
Como noutros contextos, a transição entre residências não é vista como
positiva, por não ser fácil a transição de capacidades/competências adquiridas,
para outro contexto.
Uma das dificuldades apontadas no projeto Italiano (Girolamo et al., 2005,
Santone et al., 2005) relaciona-se com a ausência de caracterização da
população atendida, em relação às suas necessidades e autonomia, e na seleção
da residência que melhor se adequaria ao perfil da pessoa. A heterogeneidade de
necessidades dos grupos presentes em cada residência tem dificultado a
implementação de atividades comuns e mesmo a seleção dos profissionais com o
perfil mais indicado para cada local. A maior parte das residências em Itália
têm capacidade até 10 residentes e 75% têm equipas em funções 24h, com
predominância de enfermeiros e monitores/auxiliares.
Em Inglaterra a exemplo de outros países com processos posteriores, os
residentes manifestaram satisfação pelo aumento da autonomia, e 40%, ao fim de
1 ano Thornicroft et al., 2005), sentiam mudanças positivas desde que tinham
deixado o hospital. Durante este período não existiram grandes alterações
psicopatológicas, exceto na tendência para um comportamento social menos
propenso a agir com base em ideias bizarras.
Na avaliação desenvolvida cinco anos após a desinstitucionalização (Mcinerney
et al., 2010), os resultados mostraram melhoria significativa no nível de
interesse, de atividade e competências na comunidade. No entanto, apesar da
expectativa de que melhores condições de vida na comunidade pudessem resultar
em melhoria evidente nas pessoas, tal não foi muito evidente neste estudo. Os
longos períodos de internamento com processos de reabilitação, conjugado com o
facto de algumas destas respostas residenciais se terem transformado em novas
"instituições" na comunidade sem programas adequados de reabilitação,
contribuíram para esses resultados. O nível de interesse que tinha subido
durante o primeiro ano, para descer nos cinco anos seguintes, parece poder
dever-se a um investimento inicial da equipa, que não teve continuidade.
Tornou-se evidente a necessidade de formação contínua e do reforço da motivação
do pessoal envolvido nos projetos, para que uma verdadeira mudança ocorra nas
pessoas em processo de reabilitação.
A experiência Andaluza tem igualmente sido relevante na compreensão dos ganhos
em saúde e em reabilitação psicossocial, decorrentes da desinstitucionalização
de pessoas com DMG (Marcelino et al., 2004; Lopez, Laviana, Lopez, &
Tirado, 2007; Marcelino, 2009).
Os esforços empreendidos pela Fundación Andaluza para la Integración Social del
Enfermo Mental (FAISEM) tomam como objetivo primordial, favorecer a permanência
e participação ativa na vida social das pessoas com DMG, tendo as estruturas
comunitárias criado resposta para um conjunto de necessidades básicas da vida
quotidiana dos seus utentes, como a habitação, manutenção de cuidados básicos
da vida diária (higiene, medicação, organização da vida diária, etc.) e
relações interpessoais significativas. Segundo a FAISEM, estes objetivos
cumprem-se através da garantia aos utentes de alojamentos estáveis, com
sistemas de apoio flexíveis, mas sem excluir a necessidade de intervenções
complementares da Saúde, responsável pelos projetos de reabilitação
psicossocial.
As estruturas residenciais são asseguradas predominantemente por monitores, sem
formação profissional específica e com o estatuto de "tarefeiros", que dão
suporte e desenvolvem com os residentes um plano de reabilitação individual,
Programa Individualizado de Atención Residencial (PIAR), elaborado em estreita
colaboração com os serviços de saúde mental. As respostas residenciais da
FAISEM dão continuidade a um Plan Individualizado de Tratamiento (PIT), para o
qual contribuem múltiplos parceiros (família, utente, serviços de saúde) e que
inclui além do programa residencial, um programa ocupacional e laboral e outros
de âmbito social relevantes para a reabilitação da pessoa. Os programas têm por
princípios orientadores basilares o respeito pelos direitos de cidadania, a
autonomia e participação, a ocupação e o emprego.
No Canadá, a experiência de desinstitucionalização ocorre desde os anos 60.
Atualmente, em Ontario, a tendência de criação de residências tem sido no
sentido de estruturas de apoio, que mantenham os princípios de cidadania e
autonomia dos residentes, percebendo esta resposta como um meio de inserção na
comunidade, onde estratégias como o case management ou o assertive community
tratement são apontados como metodologias eficazes para atingir aquele objetivo
(George et al., 2005; Nelson, & Peddle, 2005; Sylvestre et al., 2007).
Em Montreal foi desenvolvida uma experiência semelhante à da Andaluzia, de
cariz eminentemente residencial, para pessoas com DMG, que não tinham sido
capazes de viver noutras soluções residenciais. Mas neste caso os profissionais
tiveram formação específica ou tinham experiência profissional prévia para a
função que exerciam. Esta experiência apresentou resultados preliminares
animadores (Piat et al., 2002).
Quanto às instalações, vários estudos assinalam a limpeza, conforto e
mobiliário como os aspetos mais relevantes indicados pelos residentes, que
interferem com o seu bem-estar (Nelson, & Peddle, 2005). A privacidade é
das principais preocupações dos utentes, o que determina maior satisfação com
residências com menor número de residentes. No entanto, é referida a sensação
de solidão e isolamento pelos que habitam sozinhos, o que levou os utilizadores
a sugerirem a existência de apartamentos com espaços comuns (Nelson, &
Peddle, 2005). As residências com menos residentes estão associadas a menor
ansiedade, menor passividade, menor distanciamento dos outros, a uma maior
consideração positiva do envolvimento social e a maior autonomia (Nelson, &
Peddle, 2005).
CONCLUSÃO
A reforma da saúde mental em Portugal responde essencialmente a uma exigência
de saúde pública, mas representa igualmente um passo civilizacional na
valorização do respeito pelos direitos humanos. Numa época em que os problemas
económicos acentuam a visibilidade dos problemas de saúde mental e a
dificuldade de resposta dos serviços a este fenómeno, torna-se indispensável
caminhar para modelos integrados e adaptados a novas exigências clinicas,
transformadas por força das representações socioculturais contemporâneas.
Representações que impõem à pessoa com doença mental, como a outra qualquer
pessoa, a necessidade e o desejo de exercício da cidadania que provam a sua
participação e existência na comunidade. Os projetos de cuidados continuados
devem responder a estas necessidades, desviando o foco de atenção do doente
para a pessoa, valorizando a sua autonomia e integração na comunidade. O não
investimento neste tipo de alternativa representa um retrocesso na reforma da
saúde mental, condena-nos a um futuro de maior desigualdade e à manutenção do
estigma e descriminação, de ausência de oportunidade e de menor capacidade de
resposta dos serviços de saúde às pessoas com doença mental grave.