Competências para o trabalho na área de reabilitação psicossocial
Introdução
Há muitos anos, os utentes que apresentavamalgum défice ou "anormalidade" no
seu comportamento eram discriminados, marginalizados, excluídos da sociedade e
desvalorizados quanto à sua autonomia e independência. Sendo que a proposta de
reabilitação psicossocial surge na contra corrente dessa realidade.
Segundo Faro (2006, pág. 129) "A reabilitação é um processo de desenvolvimento
de conhecimentos, habilidades e atitudes com os quais os pacientes possam viver
com dependência mínima, para que se sintam capazes como seres humanos
produtivos", isto é através da reabilitação é possível que cada utente
desenvolva habilidades e competências teórico/práticas que lhes possibilitem
uma vida diária mais estável, tornando-os mais independentes e autônomos na
realização das suas tarefas.
A Coordenação Nacional para a Saúde Mental (2008), valoriza as intervenções
reabilitadoras e refere que todas as pessoas com problemas de saúde mental têm
o direito à qualidade nos cuidados de saúde, incluindo as que pertencem a
grupos especialmente vulneráveis, devendo o plano de reabilitação promover e
proteger os direitos humanos e reduzir o impacto das perturbações mentais, com
o objetivo de contribuir para a promoção da saúde mental nas populações.
As pessoas portadoras de alguma deficiência e com limitações na sua inserção
social, só poderão ver cumpridos os seus objetivos através do seu esforço, mas
também se tiverem uma equipa que os acompanhe, apoie e os ajude através das
suas competências, a alcançar uma etapa positiva, com adaptação e reinserção
social, de acordo com as suas necessidades.
Segundo Babinsk e Hirdes (2004) para o trabalho em reabilitação psicossocial
num novo paradigma é necessário que os profissionais estejam comprometidos com
uma nova abordagem ao doente mental.
Desta forma, surge a necessidade de compreender a dinâmica dos trabalhadores de
reabilitação, os seus objetivos e as suas competências, a fim de contribuir
para a formação destes trabalhadores e para uma melhoria na qualidade da
reabilitação dos utentes.
Neste sentido, propusemos como objetivo principal deste estudo, identificar as
competências necessárias para o trabalho em reabilitação psicossocial do ponto
de vista dos próprios trabalhadores.
Metodologia
Para alcançar o objetivo proposto utilizamos o método descritivo, exploratório,
inserido num paradigma qualitativo, uma vez que se pretendeu compreender as
competências dos trabalhadores de reabilitação psicossocial, através das suas
opiniões e experiências partilhadas.
O local escolhido para a realização deste estudo foi o Espaço T, uma
instituição de reabilitação situada na cidade do Porto, que presta apoio à
integração social e comunitária, com o fim de combater a pobreza, a exclusão
social e de apoiar as pessoas com dificuldades bio-psico-sociais.
Foi utilizado como instrumento de recolha de dados a entrevista
semiestruturada, aplicada a 10 elementos, indicados pelo Diretor do serviço.
Portanto, a amostra foi constituída de forma intencional e por saturação, sendo
utilizado como critério de inclusão o desenvolvimento de uma prática direta
junto do utente, com o objetivo de reabilitação.
Assim, neste estudo, os entrevistados foram denominamos de trabalhadores, com
formações diversas (90% deles com o curso superior) e não representam uma
categoria profissional específica.
As entrevistas foram realizadas no mês de fevereiro de 2013 após a obtenção do
consentimento livre e informado e gravadas em aparelho áudio para garantir uma
melhor precisão das informações.
Os dados recolhidos foram transcritos cuidadosamente e foram tratados através
da análise de conteúdo, cujas as categorias são apresentadas de seguida.
Resultados
Os trabalhadores de reabilitação psicossocial idealmente, devem respeitar e
corresponder com as necessidades de cada utente auxiliando-os durante o seu
tratamento e na sua integração na sociedade.Desta forma, é essencial
desenvolver atividades que lhes permitam sociabilizar e interagir com os outros
e também permitir que se tornem mais independentes nas atividades da vida
diária.
Partindo deste princípio, procuramos conhecer quais são as competências que
estes trabalhadores apresentaram como importantes para o desenvolvimento deste
trabalho.
Os resultados serão apresentados e discutidos a seguir, através das categorias
que emergiram da análise de conteúdo e que representam as principais
competências manifestadas pelos trabalhadores em reabilitação psicossocial, do
ponto de vista dos próprios trabalhadores:
§ Competência na resolução de novos problemas e situações complexas;
§ Competência comunicativa e relacional;
§ Competência para o trabalho em equipa;
§ Competências atitudinais;
§ Competências para a aprendizagem ativa;
§ Competências "reabilitadoras": "resgatar no outro" desempenho, autonomia,
identidade e dignidade.
Discussão
Competência na Resolução de Novos Problemas e Situações Complexas
Num trabalho complexo e dinâmico, os trabalhadores de reabilitação
psicossocial, devem desenvolver as suas competências para se adaptarem e
lidarem com novas situações, procurando uma resolução adequada para cada
situação.
Neste sentido, a flexibilidade foi destacada pelos entrevistados, como uma das
características essenciais na resolução de novos problemas.
Ser flexível, é possuir a capacidade de aceitar a realidade sem criar
barreiras, é ter uma mente aberta a novas soluções, é ser criativo e adaptar-se
a trabalhar de diferentes formas (Hasselmann, 2009).
As expressões seguintes ilustram a flexibilidade e a capacidade de adaptação
valorizada pelos trabalhadores:
"É sempre diferente, nunca é igual, nós chegamos cá contatamos com realidades
diferentes e essas realidades mudam de dia para dia." (E1)
"Há um trabalho bastante polivalente e acabamos por ir adaptando o trabalho às
necessidades."(E4)
Segundo Martins, Kobayashi, Ayoub, e Leite (2006), os movimentos e as
transformações que ocorrem no trabalho, trazem conflitos e desafios que devem
ser enfrentados, utilizando a flexibilidade nos diversos papéis profissionais
de equipa e nas ações diárias.
As frases abaixo fazem referência a competência identificada:
"Eu atendo aqui todo o tipo de pessoas, portanto os dias vão variando." (E5)
"Ao longo das aulas não tenho sempre o mesmo sistema, tento sempre adaptar a
cada pessoa." (E9)
Foi possível identificar esta categoria na maioria das expressões dos
trabalhadores, porque valorizam esta competência para a resolução de novos
problemas, destacando o interesse e a flexibilidade como necessários para o
trabalho desenvolvido no processo de reabilitação, especialmente para encontrar
estratégias adaptativas.
Competência Comunicativa e Relacional
Segundo Silva (2011), o trabalho dos profissionais está baseado nas relações
humanas que se estabelece. A comunicação é base de tudo para criar uma boa
relação terapêutica, sendo um dos métodos mais utilizados para emitir,
transmitir e capturar as informações.
Das entrevistas realizadas, pode-se constatar que os trabalhadores de
reabilitação destacam a relação e a comunicação, como o grande elo para
desenvolver uma boa interação com os utentes:
"Gosto de ensinar, transmitir conhecimentos, comunicar com eles, conhecer novas
realidades, porque nestas formações contactamos com todo o tipo de gente."
(E10)
"Gosto da convivência com eles e de estar com eles a conversar." (E1)
"Gosto da relação que se estabelece com os alunos e quando sinto que as pessoas
estão a gostar." (E8)
De acordo com o que foi mencionado, a comunicação é fundamental na reabilitação
psicossocial, porque para além de permitir que a pessoa exponha os seus
problemas, é uma das formas que os reabilitadores utilizam para compreende-los
e adaptar estratégias que vão ao encontro das suas necessidades.
De acordo com Deslandes e Mitre (2009), a comunicação procura um consenso que
se baseia numa troca ativa e pacífica de informações entre os utentes e os
profissionais. O exercício da compreensão envolve um processo ativo e de
construção que procura significados e interpretações.
Os trabalhadores do Espaço T, referem uma boa capacidade de comunicação, mas
também interesse em manter uma boa relação com os utentes, porque acreditam que
para além de facilitar o processo de reabilitação, também lhes permitem
adquirir outros conhecimentos e valores com a relação que estabelecem.
Competência para o Trabalho em Equipa
Segundo Crevelim e Peduzzi (2005), o trabalho em equipa é um trabalho coletivo,
que estabelece uma relação recíproca entre as intervenções técnicas e a
interação dos profissionais. Assim sendo, é possível coordenar os planos de
ação utilizando a comunicação e a empatia, de forma a corresponder com todas as
necessidades da equipa.
Trabalhar em equipa torna-se uma das competências mais importantes na
reabilitação psicossocial, porque para alcançarem um objetivo comum, necessitam
de trabalhar em conjunto. Esta ligação proporciona vantagens não só para cada
elemento, como também para os utentes, porque trabalham todos para a mesma
finalidade e na presença de algum problema, existe uma resolução mais eficaz.
Nos resultados obtidos neste estudo, denota-se que a ligação entre os elementos
da equipa significa um fator importante em todo o processo da reabilitação
psicossocial:
"Em equipa trabalho sempre, é assim o trabalho social, implica trabalhadores
em equipa, e eu não faço um trabalho isolado, nunca poderei fazer (...) estamos
os dois a trabalhar nesses planos...está também a trabalhar o colega do outro
lado." (E2)
"Nós trabalhamos em equipa (...) temos sempre inter-relações, só assim é que
funciona." (E3)
SegundoAraújo e Rocha (2007, p 456) "o trabalho em equipe tem como objetivo a
obtenção de impactos sobre os diferentes fatores que interferem no processo
"saúde-doença", sendo que esta prática possibilita ao profissional reconstruir-
se na prática do outro e realizar uma intervenção na realidade em que estão
inseridos".
As citações seguintes manifestam a valorização das relações estabelecidas entre
os elementos da equipa:
"Aqui o trabalho é sempre feito em equipa, porque as pessoas chegam e precisam
de vários apoios (...) eu aqui sinto-me um bocado como irmãos, são pessoas que
eu conheço muito bem." (E5)
"Sinto que aprendo diariamente com todos e para mim isso é muito gratificante."
(E10)
Os trabalhadores entrevistados reconhecem ganhos com o trabalho em equipa, como
as novas aprendizagens, além de ser possível verificar que existe conforto por
se integrarem na equipa em questão.
Competências Atitudinais
Associadas às competências profissionais, estes trabalhadores valorizam certas
características pessoais que acabam por influenciar o seu trabalho na
reabilitação.
De certa forma, apresentam um perfil profissional que consideram importante
para que se obtenha mais rendimento e aproximação dos objetivos a que se
propõem.
Segundo Martins, Kobayashi, Ayoub, e Leite (2006), o profissional é um agente
de transformação de conhecimentos, habilidades e atitudes, em competências
entregues à organização, ressaltando o entendimento de agregação de forma a
melhorar o processo e atingir as metas pertendidas.
Algumas transcrições a seguir ilustram as características pessoais que se
destacaram nos trabalhadores:
"Tu tens desafios novos que queres encarar, que queres abraçar e tu próprio os
crias. É engraçado e motivador tu teres que resolver os problemas diariamente."
(E2)
Os profissionais revelam empenho, dedicação, responsabilidade, colaboração e
aceitação de novos desafios como importantes características no desenvolvimento
dos projetos. Demonstram interesse na visualização social positiva do trabalho
que é elaborado pela equipa e pelos utentes.
As citações que se seguem ilustram estas afirmações:
"O que eu gostava mesmo era que a cidade perceba que aqui se tenta fazer um
trabalho honesto, sincero e diferente." (E5)
"É lutar por um objetivo comum, porque muitas pessoas são desprezadas e parece
que o mundo está contra tudo isso." (E9)
"Estou disposta a novos desafios." (E10)
Os trabalhadores entrevistados parecem acreditar que o desempenho profissional
também recebe interferências das características pessoais e atitudinais que
cada um apresenta. Demonstram que para reabilitar é necessário desenvolver
competências e perfis especiais. Além disso, os entrevistados manifestaram
satisfação com as competências e características atitudinais que apresentam no
desenvolvimento do trabalho em reabilitação.
Competências para a Aprendizagem Ativa
Segundo Leite e Costa (2007), a gestão do conhecimento desenvolve o ambiente
das organizações mas também acaba por desevolver o conhecimento científico.
O conhecimento deve ser construído pelo esforço, pela investigação e também
quando surgem dúvidas que necessitam de ser esclarecidas.
Ao longo da vida é necessário aprofundar as habilidades, para que desta forma
se consiga superar os conflitos, as ideias inaqueadas e reorganizar o
pensamento de acordo com as nossas acções.
Ser ativo implica estar presente em formações, adquirir conhecimentos
diariamente com experiências ou outras situações, ou seja, é reaproveitar e
utilizar todas as vivências para se adaptar e preparar para as transformações
que vão ocorrendo ao longo da vida.
Segundo Hesbeen (2003), os profissionais de reabilitação psicossocial devem ter
uma formação de base, que passe por três etapas (1º etapa: ser generalista; 2º
etapa: aquisição de conhecimentos e aptidões especializadas; 3º etapa: prática
de cuidados).
Em reabilitação é importante dar continuidade a formação básica e a formação
especializada, porque o ser humano está em constante mudança, assim sendo, cada
profissional, deve constantemente adquirir novos saberes e aptidões.
Os resultados obtidos nas entrevistas deste estudo vêm ao encontro destas
afirmações, sendo que os trabalhadores demonstram ter a necessidade de se
atualizarem, conforme se verifica nas seguintes expressões:
"A experiência é que me vai fazendo, vai-nos dando os conhecimentos e depois é
um pouco, a pessoa ter de ser autodidata, tem que se pegar nos livros e dar uma
vista de olhos tirando informações." (E1)
"Estou sempre a receber formações, ou tu estagnas ou então realmente te
empenhas e investes em ti, mas isso é constante, não podes parar se não depois
ficas para trás." (E2)
"Eu pessoalmente sempre procurei formação paralela (...) eu acho que não há um
único ano em que eu não tenha um pequeno curso." (E4)
É evidente o interesse dos entrevistados na aquisição e atualização de
conhecimentos como uma forma de aprimorar as suas competências e
consequentemente, o atendimento prestado.
Competências "Reabilitadoras": "Resgatar no Outro", Desempenho, Autonomia,
Identidade e Dignidade
Segundo Hesbeen (2003), a competência diz respeito à capacidade que o
profissional tem em se organizar e prestar cuidados numa dada situação, desta
forma, os profissionais devem de organizar o seu trabalho e estabelecer
prioridades e estratégias, intervindo de forma individualizada com cada utente,
para que seja possível que ele desenvolva os seus objetivos e que se torne
reinserido na sociedade.
Neste estudo, foi possível identificar um conjunto de ações específicas da
reabilitação, que exigem competências igualmente específicas para a realização
dos objetivos e da missão do serviço de reabilitação (Espaço T), assim sendo,
ilustram-se algumas citações dos trabalhadores que refletem estas competências:
"Nós cá, temos uma missão de, primeiro, proporcionar a eles alguns momentos de
compreensão, de que se sintam bem, de que aprendam a viver em sociedade (...)
que entrem na vida ativa, não é que seja fácil, mas esse é sempre o objetivo."
(E1)
"É dotar as pessoas de competências pessoais, sociais, que elas também adquirem
nas actividades." (E2)
Ao apresentarem as competências "reabilitadoras", eles justificam o próprio
objetivo do seu trabalho e a missão do serviço de reabilitação, ou seja, estão
a reabilitar os utentes numa vertente psicossocial para a vida. Os excertos
abaixo ilustram estas afirmações:
"Objetivo principal é a promoção e a integração de um conjunto muito
diferenciado de pessoas, é promover uma mudança social, a aceitação da
diferença... no fundo é ajudar por um lado a integração das pessoas, por outro
lado à sensibilização da comunidade para a aceitação dos mesmos." (E3)
"Reabilitar-se e, por outro lado, fazer com que a sociedade também as aceite na
sua diferença." (E5)
"Permitir que as pessoas aumentem os seus conhecimentos e que isso também lhes
seja útil para utilizarem no dia-a-dia e sem dúvida a integração de todos."
(E8)
"Permitir a integração de todos na sociedade (...) e reaprender outras
competências." (E9)
"É reabilitar as pessoas sem as rotular pelas características que apresentam;
todos nós temos direito a igualdade." (E10)
As competências "reabilitadoras", para os entrevistados, significam respeitar
os direitos dos indivíduos, não discriminar, oferecer oportunidades, integrar,
aceitar as diferenças, entre outros aspectos, que representam o objetivo do
próprio trabalho em reabilitação.
Conclusões
Os serviços de reabilitação psicossocial podem contribuir positivamente para a
qualidade de vida dos portadores de doenças mentais e para a sociedade como um
todo. Neste sentido, estes serviços revestem uma importância fundamental e
merecem uma atenção especial. Por reconhecer tal importância, pretendeu-se com
o estudo das competências, contribuir no âmbito da formação dos trabalhadores e
da constituição de equipas mais adequadas para o trabalho em reabilitação
psicossocial.
Desta forma, foi possível conhecer as competências que os próprios
trabalhadores consideram necessárias para o trabalho e compreender que devem de
ser adquiridas num processo dinâmico e de construção, ou seja, aprofundadas
através de uma procura constante de novos e diversificados conhecimentos, dando
relevância a todas as suas experiências.
Após a realização deste estudo, consideramos que os profissionais reconhecem a
importância do domínio dos conhecimentos específicos que resultam da sua
formação, treinamento e experiência, uma vez que indicam as competências
necessárias para o exercício de funções reabilitadoras.
Verificou-se que as experiências vividas junto dos utentes é a principal fonte
para a aquisição das competências desejadas, porque é através da prática que
conseguem identificar os problemas, aplicar os conhecimentos e desenvolver
estratégias de acordo com cada situação.
O principal contributo deste estudo será na área de formação dos profissionais
para atuarem na área de reabilitação. Acreditamos que a adequação da formação
possibilitará uma atuação profissional mais qualificada e com maiores
possibilidades de resultados positivos na reintegração social e também de forma
a contribuir para um estudo continuado na área de saúde mental e reabilitação.