"Projeto Mensanus": ganhos em saúde mental
Introdução
De acordo com o Plano Nacional de Saúde Mental - 2007-2016 (Portugal, 2008), a
principal causa de incapacidade e uma das principais causas de morbilidade, nas
sociedades atuais, são as perturbações psiquiátricas e os problemas de saúde
mental. Em Portugal, embora a prevalência da problemática acompanhe a tendência
europeia, estudos apontam para que a situação dos grupos mais vulneráveis
(mulheres, pobres e idosos) se encontra agravada. Ainda segundo o Plano
Nacional de Saúde Mental - 2007-2016, (Portugal, 2008), o número de pessoas em
contato com os serviços públicos mostra que apenas uma pequena parte das que
têm problemas de saúde mental têm acesso a serviços públicos especializados de
saúde mental; o internamento continua a consumir a maioria dos recursos (83%),
quando toda a evidência científica mostra que as intervenções na comunidade,
mais próximas das pessoas, são as mais efetivas e as que colhem a preferência
dos utentes e família e ainda o recurso preferencial aos serviços de urgência e
as dificuldades reportadas na marcação de consultas, sugerem a existência de
problemas de acessibilidade aos cuidados especializados.
Foi neste contexto que, Médicos do Mundo (Mdm) Portugal (Organização Não
Governamental de Ajuda Humanitária e Cooperação para o Desenvolvimento, fundada
na França em 1980, dando origem a rede internacional MdM, sendo que em Portugal
surge em 1998. Intervém especificamente na área da saúde em populações
vulneráveis) sentiu a necessidade de delinear uma intervenção específica e
direcionada para a área da saúde mental (avaliação, diagnóstico, tratamento e
reinserção).
Em 2009, nasceu, deste modo, o Projeto Mensanus, centralizado na reabilitação,
redução de danos e reinserção social de pessoas em situação de isolamento/
exclusão social, ao nível da saúde mental e com fatores de risco associados,
nomeadamente, acesso a substâncias psicoativas; deficitária vinculação social;
ausência de retaguarda familiar; desintegração das estruturas/redes sociais
sobretudo em relação à saúde; baixa escolaridade, percurso profissional
inexistente ou precário, desemprego de longa duração; ausência de documentação
válida e impedimentos jurídicos à resolução da situação; incapacidade de
satisfazer as necessidades básicas por meio próprio. A população abrangida pelo
projecto é na sua maioria pessoas do sexo masculino, com idades compreendidas
entre os 20 e os 65 anos.
O projeto Mensanus foi co-financiado pelo Alto Comissariado da Saúde desde
Abril de 2009 e até Março 2013 e tinha como objetivo geral a melhoria da
qualidade de vida das pessoas com problemas mentais, através da inclusão social
e da proteção dos seus direitos e dignidade. Foi implementado e desenvolvido
através de uma equipa técnica interdisciplinar, constituída por uma educadora
social, um enfermeiro especialista em reabilitação (Abril 2009 a Janeiro de
2012) e duas Enfermeiras Especialistas em Saúde Mental.
Com este artigo pretende-se apresentar, de uma forma breve, uma boa prática em
saúde mental em Portugal através da apresentação do projecto e as suas
especificidades, nomeadamente, objectivos propostos, população-alvo, descrição
de metodologia e actividades desenvolvidas e principalmente ganhos em saúde
mental.
Porquê Avaliar Ganhos em Saúde Mental?
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2001), a Saúde Mental é
essencial para o bem-estar das pessoas, das sociedades e dos países, devendo
ser universalmente encarada sob um novo prisma e em ambientes
transdisciplinares.
Com base nos últimos dados epidemiológicos, referidos no documento
Reatualização do Plano Nacional de Saúde Mental (Portugal, 2012), os problemas
relacionados com a saúde mental são ainda a principal causa de incapacidade e
uma das principais causas de morbilidade do país. Embora tenha havido melhoria
dos indicadores expresso pela melhoria da assistência em saúde mental no país,
continua a ser necessário desenvolver medidas, pois a promoção de saúde mental
de uma população é encarada como um ganho em saúde não só para o individuo como
para a sociedade.
Os ganhos em saúde são entendidos como resultados positivos em indicadores da
saúde e incluem referências sobre a respetiva evolução. Expressam a melhoria
dos resultados (Nutbeam, 1998) e traduzem-se, na sociedade, por ganhos em anos
de vida, pela redução de episódios de doença ou encurtamento da sua duração,
pela diminuição das situações de incapacidade temporária ou permanente, pelo
aumento da funcionalidade física e psicossocial e, ainda, pela redução do
sofrimento evitável e melhoria da qualidade de vida relacionada ou condicionada
pela saúde (OMS, 2001). Neste sentido, pretendemos avaliar os ganhos em saúde
dos beneficiários do projeto, de modo a expressar de forma efetiva e mensurável
a importância da continuidade e disseminação da intervenção.
De forma global, indicadores de saúde são instrumentos de medida sumária que
refletem, directa ou indiretamente, informações relevantes sobre diferentes
atributos e dimensões da saúde bem como os fatores que a determinam.
Os Indicadores de Saúde podem ser usados para melhorar o conhecimento sobre os
determinantes da saúde, identificar lacunas no estado de saúde e/ou populações
específicas e são igualmente úteis para informar o planeamento, a política de
saúde e gerir o sistema de saúde.
Assim, os indicadores de ganhos potenciais em saúde inerentes aos objetivos e à
população do projecto Mensanus encontram-se descritos na tabela_1.
Ganhos_em_saúde_1,_2,_3,_4 ' Os cuidados de saúde primários ou atenção
primária, segundo proposta de definição na declaração de Alma Ata (WHO, 1978)
consiste na prestação de assistência de saúde essencial, baseada em métodos e
técnicas práticas, apropriadas sob o ponto de vista científico e aceites
socialmente, colocadas ao alcance de todas as unidades e famílias das
comunidades, com a sua inteira participação e que possa ser financeiramente
mantida pelo país e pela comunidade, em todas as fases do seu desenvolvimento,
num espírito de auto responsabilidade e autodeterminação.
Um adequado acompanhamento a nível de atendimento primário, promove o bem-estar
da população e previne situações de doença evitáveis ou indesejadas, ao mesmo
tempo, que reduz os custos elevadíssimos associados aos recorrentes e
sistemáticos internamentos hospitalares (WHO, 1978; OE, 2009).
Ganhos_em_Saúde_5 ' A adesão ao regime terapêutico define-se como o grau de
concordância entre as recomendações dos prestadores de cuidados de saúde e o
comportamento da pessoa relativamente ao regime terapêutico proposto (Haynes,
McDonald, Garg, & Montague, 2002).
Ganhos_em_Saúde_6 ' O autocuidado é o que cada pessoa faz por si mesma para
estabelecer e/ou manter a saúde, prevenir e lidar com a doença. É um conceito
amplo, abrangendo: higiene (geral e pessoa), nutrição (tipo e qualidade do
alimento ingerido), estilos de vida (atividade física, lazer, etc); fatores
ambientais (condições de vida, hábitos sociais, etc.); fatores sócio-económicos
(nível de renda, crenças culturais, etc.) e automedicação(WHO, 1998).
Ganhos_em_Saúde_7 ' Recaída pode ser entendida como uma recorrência dos
sintomas da doença, após um período de melhoria. Adaptando este conceito ao
contexto do projecto, a recaída seria então o retorno a níveis anteriores do
comportamento, seguido da tentativa de parar ou diminuir o mesmo, ou
simplesmente o fracasso de atingir objectivos estabelecidos por um indivíduo
após um período definido de tempo. A Recaída é um dos estádios da mudança
comportamental. É um aspeto essencial a ser entendido quando se fala em mudança
de hábito. Muitas pessoas sofrem recaídas e têm que recomeçar o processo
novamente. É importante encarar a recaída não como um facto isolado, mas sim
como uma série de processos cognitivos, comportamentais e afectivos. Da mesma
forma, a recaída não pode ser encarada como um fracasso do indivíduo ou do
profissional e sim como parte do processo da mudança (Jungerman &
Laranjeira, 1999).
Ganhos_em_Saúde 8 ' A Reinserção tem como objectivo capacitar o indivíduo de
instrumentos necessários para superar a sua dependência e poder reintegrar-se
no seu contexto social específico. Trata-se de uma construção individual, auto-
suficiente, qualificante, capacitadora e capacitante, partindo sempre do
indivíduo enquanto pessoa principal do seu próprio desenvolvimento pessoal e
social. A reinserção é o estabelecer comunicações entre a pessoa excluída e o
resto da sociedade, com o objectivo de lhes proporcionar acesso aos factores de
identidade social. Em suma, a reinserção social visa a reintegração da pessoa
excluída da sociedade, promovendo a reconstituição, ou mesmo, a criação de
novos laços com os que a rodeiam (Carvalho, 2007; López & Laviana, 2007).
Ganhos_em_Saúde 9 ' Atividades socialmente úteis são aquelas em que de forma
livre ou planificada, a pessoa gere o seu tempo de uma forma satisfatório e
saudável. Pretende, desta forma, desenvolver iniciativas no sentido de
encontrar ocupações alternativas para o tempo livre; recuperar o lado do lazer
na vida quotidiana; aumentar a valorização pessoal e social e consequentemente
a auto-estima, no sentido da promoção da sua autonomia e das suas
potencialidades; permitir que encontre outras fontes de prazer reduzindo a
identificação do prazer/diversão com o consumo de substâncias quando
justificado (Carvalho, 2007).
Metodologia
O objectivo geral do projecto centra-se em Melhorar a qualidade de vida das
pessoas com problemas mentais através da inclusão social e da protecção dos
seus direitos e da dignidade.
No projecto, delinearam-se como metas, até Março de 2013: aumentar em 40% o
acesso dos utilizadores em processo de gestão de caso aos cuidados de
saúde mental; aumentar em 20% os níveis de autonomia e de independência dos
utilizadores identificados com grau de dependência. Privilegiou-se as seguintes
estratégias de intervenção: Outreach, Intervenção em situação de crise, Treino
de Assertividade, Capacitação e Advocacia, Potenciação dos fatores de proteção;
e as seguintes metodologias: o Modelo de intervenção de proximidade; Modelo
Transteórico; Modelo de intervenção centrado no utente e Modelo de Relação de
Ajuda.
No que respeita às atividades, o processo de acompanhamento aos utentes
consistia em:
- Intervenção social dinâmica - articulação institucional, acompanhamento e
encaminhamento às instituições de apoio, atendimentos e educação de
competências, (re) integração na rede de suporte e/ou familiar, promoção da
ocupação produtiva dos tempos livres;
- Intervenção comportamental - aconselhamento, co-definição do projecto de
vida, entrevista motivacional, prevenção de recaídas;
- Prestação de cuidados de saúde - consulta, atribuição de medicação, co-
definição do plano terapêutico, monitorização dos efeitos secundários,
tratamentos, monitorização do cumprimento do plano terapêutico, articulação
institucional, intervenção em situação de crise, promoção do autocuidado,
psicoeducação individual e em grupo;
- Informação, educação e mudança de comportamentos - acções individuais,
coletivas e distribuição de material informativo;
- Visita Domiciliária - consultas, avaliação das condições de habitabilidade,
monitorização das condições para adesão ao plano terapêutico.
Não havia uma periodicidade de intervenção fixa. A periodicidade das
actividades podiam ser diárias, duas a três vezes por semana, semanais,
quinzenais e ou mensais. Assim como as intervenções poderiam ser com uma classe
profissional ou multiprofissional. Esta diversidade dependida da situação e da
necessidade de intervenção.
A família também era alvo de intervenção. Na maioria das situações, foi
efectuado contacto com familiares directos ou indirectos dos beneficiários,
levando a que se pudessem (re)construir laços familiares até ao momento
inexistentes ou pouco firmes. A intervenção familiar tinha sobretudo o
objectivo de capacitar os familiares a lidar com as situações de doença dos
seus familiares.
À semelhança de outros projetos desenvolvidos por MdM, acreditamos que uma das
chaves para o sucesso de projetos que visam o desenvolvimento comunitário
assenta no trabalho em rede. Especificando, um trabalho baseado na articulação
interinstitucional, na rentabilização de recursos e saberes das parcerias e nas
intervenções holísticas e multicontextuais. Falamos portanto, de uma
intervenção que entende o sujeito como participante ativo no seu processo de
(re) construção do projeto de vida e na qual, a rede de suporte assume
verdadeiramente o seu papel, intervindo e responsabilizando-se pela (re)
integração plena do sujeito.
Resultados
O projecto iniciou, em Abril 2009, com 55 utilizadores em gestão de caso. Em
Julho 2010, 24 utilizadores (com mais de 65 anos) foram inseridos num projecto
para idosos da Médicos do Mundo - Representação Norte e 1 foi repatriado. Em
2013, no final do projecto: 7 abandonaram o projeto por iniciativa própria, 1
utente foi suspenso o acompanhamento por parte da Médicos do Mundo, 5 foram
transferidos para outras instituições e 17 foram reinseridos, em redes de
sociabilidade primária (familiar ou institucional).
Com base nos objetivos do projeto e nas diretrizes do Plano Nacional de Saúde
Mental - 2007-2016, (Portugal, 2008), e devido as metas propostas em 2009 não
traduziam efectivamente os ganhos em saúde mental dos beneficiários do
projecto, foram criados, no ultimo semestre do projecto, indicadores capazes de
avaliar os ganhos a nível da saúde mental dos referidos beneficiadores
anteriormente descritos. Os dados obtidos (Tabela_2) resultam, da consulta dos
processos individuais dos utentes, da análise do sistema de informação do
projeto Mensanus e da aplicação de inquérito por entrevista informal aos
utentes que encontravam em acompanhamento. De salientar, que apesar de só terem
sido definidos no ultimo semestre, estes dados se referem ao período temporal
de 4 anos, duração do projecto.
Discussão
De forma geral, os resultados obtidos permitem concluir que as estratégias,
metodologias e atividades desenvolvidas pelo projecto Mensanus revelam-se
eficazes na consecução dos objetivos propostos em candidatura.
Todos os indicadores têm taxa de sucesso acima dos 50 %. Os indicadores de
morbilidade encontram-se acima dos 70%. É relevante referir que os indicadores
relacionados com (in)capacidade/auto percepção do utente encontram-se entre 50%
e os 60 %. Estes últimos indicadores estão intimamente relacionados, por um
lado, com o perfil da população-alvo (a motivação e adesão dos próprios são
áreas centrais de intervenção contínua de todos os profissionais), por outro,
nem sempre encontramos na rede de suporte estruturas adequadas e capazes de
integrar estes utentes, quer em termos afetivos, quer em termos profissionais/
ocupacionais.
No entanto, considerando que todos os técnicos envolvidos no projeto trabalham
num total de 23 horas por semana, podemos concluir que os resultados obtidos e
consequentemente os ganhos em saúde são muito positivos. Na verdade, as horas
de cuidados estão relacionadas com potencial de recuperação previsto. Isto é,
quanto maior for o investimento em horas de cuidados a um utente, maior será o
potencial de recuperação, capacitação e autonomia.
Conclusões Finais
O Plano Nacional de Saúde Mental: 2007-2016 (Portugal, 2008), inclui
disposições claras sobre a necessidade de se assegurar cuidados específicos de
Saúde Mental a grupos especialmente vulneráveis. O projecto Mensanus
possibilitou, a quem dele usufruiu, o acesso equitativo a cuidados de saúde de
qualidade a todas as pessoas com problemas de saúde mental em situação social
vulnerável, promovendo e protegendo os seus direitos, apesar de
constrangimentos financeiros e técnicos (horas de afetação ao projeto).
Colocar a pessoa no centro do dispositivo de acção, respeitando os seus
direitos, vontades, e dignidade; trabalhar em equipa e em articulação inter
institucional, funcionando como ponte entre os vários actores no processo do
cuidar e assegurar um acompanhamento sistemático a cada pessoa com o seu
projectos de vida próprio foram panos de fundo que permitiram a reinserção de
pessoas sem-abrigo.
Os profissionais de saúde, com especial enfoque nos enfermeiros com
especialidade em saúde mental, têm um papel importantíssimo no acompanhamento a
nível da atenção primária, em articulação com outros profissionais, no sentido
de evitar a desinserção/desestruturação/desvinculação social destes grupos
vulneráveis, uma vez que, estamos perante indivíduos que necessitam de apoio e
reabilitação intensiva e contínua, durante um período mais alargado de tempo.
Os resultados da avaliação dos ganhos em saúde são considerados satisfatórios e
elevados, se pensarmos que se circunscrevem a um espaço temporal de 4 anos e a
uma intervenção técnica especializada em saúde mental e experiente no que
respeita à intervenção com grupos vulneráveis.
No entanto, facilmente se conclui que percentagens superiores poderiam ser
alcançadas, com uma equipa de terreno operacional a tempo inteiro. Urge uma
maior consciência da importância de implementação de projectos que privilegiam
a intervenção comunitária, que se desloque aos sítios onde estas pessoas
pernoitam e frequentam, isto é, equipas de terreno, que trabalham junto para e
com este grupo vulnerável.