O doente com esquizofrenia e com filhos
Introdução
Os estudos epidemiológicos demonstram que as perturbações psiquiátricas e os
problemas de saúde mental tornaram-se uma das principais causas de morbilidade
e de incapacidade e nas sociedades atuais, em que uma em cada quatro famílias
tem pelo menos um elemento que sofre uma perturbação mental ou comportamental
(World Health Organization, 2001; Xavier, M., Caldas de Almeida, J., Martins,
E., Barahona, B. e Kovess, V., 2002; Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016,
Resumo Executivo, 2008).
A esquizofrenia, encontra-se entre os dez principais motivos de sobrecarga
social a longo prazo, com taxas de prevalência na população mundial que não
chegam, regra geral, a 1% (World Health Organization, 2001; Plano Nacional de
Saúde Mental 2007-2016, Resumo Executivo, 2008; Sadock & Sadock, 2008).
As pessoas com esquizofrenia requerem uma maior atenção psiquiátrica a longo
prazo, ocupam cerca de 25% do total das camas psiquiátricas e representam 50%
dos internamentos psiquiátricos (Mueser & McGurk, 2004).
Objetivou-se estudar e caracterizar os doentes com o diagnóstico de
esquizofrenia, que têm filhos e que mantêm contacto com eles, com vista a
potenciar o reconhecimento das suas dificuldades e necessidades, contribuindo
para a definição de estratégias de intervenção nestas famílias.
A ausência de trabalhos portugueses sobre este tema e a falta de consensos nos
trabalhos que têm sido publicados, nomeadamente quanto à prevalência de
psicopatologia dos filhos de doentes com esquizofrenia, aliado ao interesse
despertado pelo estudo da esquizofrenia e pela importância atribuída à família,
motivou o presente estudo.
Esquizofrenia
Sendo considerada como a doença mental mais incapacitante (Marques-Teixeira et
al., 2006), o conceito tem sofrido várias alterações ao longo dos tempos, não
havendo unanimidade de conceptualização da patologia, pelo que contínua envolta
de grande subjetividade, apesar dos esforços para a sua objetivação (Vaz-Serra
et al., 2008).
Considerada responsável por uma parte importante da morbilidade psiquiátrica, é
transversal à geografia social (Sadock & Sadock, 2008), apresentando ainda
pouco consenso quanto aos fatores que influenciam ou causam o seu aparecimento,
apontando a evidência científica para uma etiologia multifatorial da doença
(Dalery & D'Amato, 2001).
Caracteriza-se por dois grupos de sintomas:
· Positivos, que incluem essencialmente ideias delirantes,
alucinações, transtorno formal do pensamento, comportamento extravagante e
desorganizado que refletem uma distorção/exagero das funções que estão
normalmente presentes na fase aguda da doença. Estes sintomas cognitivos,
comuns nos doentes com esquizofrenia, têm efeito ao nível da memória, com
défices de atenção, concentração, compreensão e abstração (Cardoso, 2002;
Sadock & Sadock, 2008; American Psychiatric Association, 2011).
· Negativos, que refletem uma perda ou diminuição de funções
(diminuição da intensidade ao nível das emoções, das motivações, da vontade e
da afetividade/relações interpessoais, o empobrecimento do pensamento e do
discurso e o isolamento social) que, em condições normais se encontram
presentes (Sadock & Sadock, 2008; American Psychiatric Association, 2011).
Enquanto os sintomas positivos da esquizofrenia são, muitas vezes, exuberantes
e atraem a atenção, os sintomas negativos tendem a prejudicar a capacidade da
pessoa em ter uma vida quotidiana dita normal, impedindo ou limitando a
manutenção de relacionamentos familiares estáveis.
Não há sintomas patognomónicos, apenas um quadro prodrómico, que se
caracteriza, em grande parte, pelos sintomas negativos: alteração do ciclo de
sono/repouso, apatia, isolamento, descuido na higiene pessoal, comportamentos
poucos habituais/ideias bizarras, dificuldades escolares e profissionais, entre
outros.
Esta sintomatologia tem uma relação muito importante e direta com as possíveis
repercussões da doença na família e nos filhos. Os efeitos dos sintomas
negativos no funcionamento do indivíduo são, habitualmente, o primeiro sinal
para a família de que algo está errado, sendo também a principal preocupação da
família, que muitas vezes vêm esse indivíduo como "preguiçoso" ou "desmotivado"
(Carvalho, 2012a).
A sintomatologia característica da esquizofrenia pode-se agrupar de uma outra
forma, em função das áreas atingidas, sendo a aparência e conduta (um aspeto
descuidado ou um importante abandono da sua higiene pessoal); transtornos
percetivos e sensoriais (aparecimento das alucinações: auditivas, visuais,
olfativas, gustativas e cinestésicas); transtornos do pensamento (conteúdo -
delírios; controlo - roubo do pensamento; controlo do pensamento, imposição do
pensamento entre outros; curso - bloqueio do pensamento; forma - desagregação
do pensamento, pobreza do pensamento, tangencialidade entre outros); alterações
do humor e da afetividade (apático e indiferente, com sintomas depressivos e
manifestações de ansiedade, irritabilidade e euforia e com manifestações
típicas de embotamento afetivo/ambivalência afetiva); alterações da
psicomotricidade (manifestações de agitação psicomotora, maneirismos,
estereótipos motores entre outros; alterações cognitivas (o tipo e a gravidade
da sintomatologia variam consideravelmente no decurso da doença e o
aparecimento pode ser, de uma forma insidiosa e gradual ou de uma forma
explosiva e instantânea) (Carvalho, 2012a).
Em Portugal, a esquizofrenia representa a primeira entidade responsável pela
doença mental (21,2%), seguida da depressão (14,9%), valores de referência que
incluem os serviços de internamento, consultas e urgências de todo o país,
sendo a região Norte a que apresenta os valores mais elevados, para a
esquizofrenia e para as psicoses afetivas (Rede de Referenciação de Psiquiatria
e Saúde Mental, 2004).
A esquizofrenia é a principal causa de procura de cuidados de saúde (36,5%),
sendo o 3.º motivo de procura de consulta médica em consultas externas (12,4%)
(Rede de Referenciação de Psiquiatria e Saúde Mental, 2004), responsável pelo
aumento do número médio de dias de internamento nos serviços de Psiquiatria
(35,4 vs 20,0 dias no internamento de Psiquiatria), é uma das doenças com maior
prevalência, afetando cerca de 60-100 mil pessoas, em que 60-70% dos doentes
não se casa e mantêm contactos sociais muito limitados (Ministério da Saúde '
Direcção Geral Saúde, 2004).
No estudo Schizophrenia Outpatient Health Outcomes (SOHO), que incluiu 10
países, entre os quais Portugal, verificou-se que 64,4% vivem dependentes da
família, 18,6% referem ter uma relação com um cônjuge/companheiro, a maioria
está desempregada (35%), em situação de reforma (33,7%) e 41,5% referiram não
ter atividades sociais com os amigos ou familiares. No que se refere à
qualidade de vida, 70,5% dos doentes sentem dificuldade em executar as suas
atividades diárias, 76,5% apresentam comorbilidade de ansiedade/depressão,
cerca de metade referem sentir desconforto ou dor, 25% não são capazes de
realizar tarefas ligadas a cuidados pessoais e 60% sofrem de disfunção sexual
(Marques-Teixeira et al., 2006).
Os familiares mais próximos à pessoa com esquizofrenia são os primeiros a
percecionar diferenças na personalidade e/ou nos comportamentos desse membro da
família, processando-se a diferentes níveis: alterações do comportamento
social, desinteresse por atividades e passatempos; negligência no autocuidado;
desconfiança; existência de ideias delirantes, aliados à falta de motivação, à
má gestão financeira, à dificuldade para completar as tarefas e à não adesão ao
regime terapêutico (Silva e Carvalho, 2011).
Esta falta de interesse manifesta-se também pelo isolamento social e pela maior
dificuldade em entrar/continuar no mercado de trabalho, devido aos deficits
provocados pela doença, pela presença do estigma social, pelos comportamentos
não adequados e imprevisíveis), assim como pela perda de autonomia.
Culturalmente o doente com esquizofrenia ainda representa o estereótipo do
"louco". A imprevisibilidade que ocorre na relação com o doente com
esquizofrenia tem um efeito profundo nos membros da família.
A presença de um doente com esquizofrenia na família alterará a dinâmica
familiar e irá pôr em evidência algumas das dificuldades e fragilidades do
doente e de toda a família, potenciando a descompensação de um ou mais dos seus
membros (Hanson, 2001).
A avaliação da dinâmica familiar é um fator importante para a percepção da
coesão eflexibilidade familiar, assim como a importância da comunicação e da
satisfação familiar no núcleo familiar (Carvalho et al., 2014), em que o modelo
circumplexo de Olson é um recurso interessante e permite classificar as
famílias com base na sua pontuação no que respeita à coesão e flexibilidade ou
adaptabilidade (Olson, 2011).
Objetivos
O estudo pretende estudar e caracterizar um grupo de doentes com esquizofrenia
com filho(s) de idades compreendidas entre os 6 e os 18 anos e que mantêm
contacto regular com eles.
Metodologia
Estudo transversal, quantitativo, de cariz descritivo e exploratório.
A amostra foi constituída por 38 doentes, correspondentes a 38 famílias com
filhos (50 filhos), referenciados numtotal de 3.056 doentes com o diagnóstico
de esquizofrenia, seguidos no hospital especializado.
O protocolo de colheita de dados incluiu uma entrevista estruturada e
instrumentos de avaliação. Na entrevista foram privilegiados os dados relativos
à caracterização socioeconómica e clínica dos doentes.
Foi utilizada a escala de funcionalidade (DSM IV) com as subescalas de
avaliação do funcionamento (AGF); de avaliação global da atividade relacional
(EAGAR) e de avaliação da atividade social e laboral (EAASL), em que pontuam de
1-100 (American Psychiatric Association, 2011). Para a caracterização social da
família foi utilizada a Escala de Graffar, que permitiu avaliar aspetos sociais
importantes como: profissão, instrução, fontes de rendimento familiar, conforto
do alojamento e os aspetos da habitação/bairro, com uma pontuação entre 5 e 25
pontos, categoriza a família em 5 classes, em que a classe mais baixa (I)
revela melhor índice social.
Utilizou-se ainda o Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scales (FACES
IV), de Gorall, Tiesel e Olson, (2006), na versão portuguesa de Rolim,
Rodrigues e Lopes, composto por 62 questões, com duas dimensões centrais (a
coesão e a adaptabilidade/flexibilidade), e que permitiu caraterizar as
perspetivas individuais, face à família quanto aos níveis de coesão e de
flexibilidade/adaptabilidade, assim como os níveis de satisfação e de
comunicação familiar.
Procedimento
A seleção da amostra foi constituída por indivíduos adultos de ambos os sexos,
com o diagnóstico de esquizofrenia e que têm filhos com idades compreendidas
entre os 6-18 anos, com contacto frequente e que aceitaram participar no
estudo, a partir da população de doentes com o diagnóstico de esquizofrenia,
seguidos num hospital especializado do norte de Portugal.
Foram explicados os objetivos e a finalidade do estudo e solicitada a
participação e o consentimento informado dos doentes, assim como o
consentimento expresso da Comissão de Ética da instituição.
A colheita de dados decorreu de março de 2008 a dezembro de 2009 no domicílio
dos doentes selecionados. Foram utilizadas estratégias para referenciação dos
doentes:
1. Solicitado apoio ao pessoal de Enfermagem da consulta externa que
ajudou a referenciar o maior número de doentes (melhor conhecimento) com
filhos.
2. Colaboração de outros profissionais de saúde mental pelo conhecimento
que encerram quanto aos doentes e às suas famílias.
3. Consulta dos processos clínicos para deteção de referências à
existência de filhos.
Dos 3.056 doentes com o diagnóstico de esquizofrenia, seguidos no hospital
especializado, referenciaram-se 213 (6,9%) doentes com filhos, sendo possível
contactar 155 famílias (72,8%) e sinalizar a existência de 274 filhos.
A amostra foi constituída por 38 doentes, correspondentes a 38 famílias com
filhos (50 filhos).
As variáveis quantitativas contínuas foram analisadas através de medidas de
tendência central e de dispersão e as do tipo nominal foram analisadas de
acordo com as frequências relativas e absolutas, com recurso ao Software
Statistical Package for the Social Sciences (IBM SPSS Statistics 19).
Neste estudo apresenta-se uma parte da investigação "Esquizofrenia e família:
repercussões nos filhos e no cônjuge" apenas centrada nos progenitores com
esquizofrenia.
Resultados
A amostra foi constituída por 38 indivíduos dos quais 52,6% do sexo feminino e
47,4% do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 31-51 anos, com
Média=40,87 (±4,82).
Os indivíduos casados representam 60,5% da amostra e os solteiros e divorciados
representam 15,8% do total da amostra.
Apresentam baixa escolaridade (84,2% têm estudos inferiores ao ensino
obrigatório). O 1.º ciclo representa 42,1% dos doentes, seguindo-se o 2.º ciclo
(26,3%) e o 3.º ciclo (15,8%). Apenas 10,5% tem o ensino secundário e 5,3%
ensino superior.
No que respeita à situação profissional e laboral, 47,4% mantêm-se ativos ainda
que com profissões não qualificadas segundo a classificação nacional de
profissões. Na situação de reforma encontram-se 34,2%.
O contacto permanente com os filhos é uma realidade para 76,3% progenitores
doentes, sendo que em 23,7% esse contacto faz-se apenas ao fim de semana
(Tabela_1).
Os agregados familiares são maioritariamente compostos por agregados reduzidos
com dois elementos (23,7%) e com 3 pessoas (42,1%).
Quanto às famílias dos doentes, 47,4% correspondem a classe média baixa de
acordo com a Escala de Graffar.
Todos os doentes tiveram acompanhamento em consulta de Psiquiatria e 92,1%
estiveram internados em serviços de Psiquiatria. O tempo de doença
(esquizofrenia) apresenta amplitude de 30 anos [2-32], com M=11,95 ±8,32 anos.
Foram aplicadas as subescalas de funcionalidade de acordo com o DSM IV:
avaliação global do funcionamento (AGF), avaliação global da atividade
relacional (EAGAR) e avaliação da atividade social e laboral (EAASL). A EAGAR
apresenta amplitude de [60-90] com M=75,39±9,32, tal como a AGF com valores
entre os [65-90] e com M=77,45±8,59.
A EAASL apresenta amplitude entre [61-95] com M=75,58±11,67, revelando bons
índices de funcionalidade por parte dos doentes.
Relativamente às reações dos familiares à sua doença, 55,5% dos doentes
referiram aceitação pelo aparecimento de a doença e compreensão/apoio a reações
de choque, enquanto 44,4% manifestaram-se profundamente preocupados com o
futuro, referindo ter reagido mal ou mesmo muito mal.
Sendo a convivência com os filhos um aspeto central do estudo, importava
perceber quando ocorreu o nascimento do 1.º filho: antes ou após manifestações
da doença. Em 61,8% dos casos o nascimento do 1.º filho foi anterior ao
processo de doença. Ao contrário, em 38,2% das famílias as manifestações da
esquizofrenia apareceram antes do nascimento dos filhos.
O relacionamento conjugal ou marital foi anterior à sintomatologia em 66,7% dos
doentes e 33,3% ocorreu depois das manifestações da doença.
Pela análise das frequências do FACES IV verificou-se que os doentes
percecionam a sua família como unida (58,6%) e muito flexível (69%), com um
nível de comunicação familiar moderado (51,7%). Referem, no entanto, um baixo
nível de satisfação familiar (55,2%) ou mesmo muito baixo (20,6%).
Os doentes apresentam resultados compatíveis com 10 tipos de família
diferentes, no entanto, 55,2% dos doentes consideram a sua família como
flexível e unida. Das famílias dos doentes estudadas apenas duas foram
classificadas como caóticas e emaranhadas.
Discussão
A questão do género é um dos aspetos mais abordados quando se fala da
esquizofrenia, motivado pelas diferenças que estão associadas, desde o início
da doença, à sintomatologia e às consequentes repercussões. Na população em
estudo verificou-se a existência de maior prevalência da doença em homens (61%)
tal como em evidenciado em outros estudos (Dalery & D'Amato, 2001;
Sadock & Sadock, 2008).
Relativamente a doentes com filhos, este valor altera-se sendo que 52,6% dos
doentes são do sexo feminino. Este facto é justificado pelo início tardio da
doença e sintomatologia menos exacerbada na mulher (Dalery & D'Amato,
2001).
Apresentam uma média (idade) próxima dos 40 anos, mas apesar do início precoce
da doença, estes doentes apresentam um tempo longo de doença aliado ao facto de
os filhos mais novos terem pelo menos 6 anos, pelo que está coerente com o que
seria de esperar. Seria expectável que os doentes que vivem maritalmente fossem
em maior número que os solteiros, o que se verifica, com a condição de casado/
união facto a representar mais de 65% da amostra. Quando analisamos a população
em estudo, verificamos que 59,1% dos doentes eram solteiros. Os doentes que têm
filhos têm ou tiveram uma relação marital (casados, divorciados/separados e
viúvos) apresentando valores próximos dos 80%.
As dificuldades na convivência marital podem ser um dos fatores importantes
para justificar estes resultados. Dalery & D'Amato (2001) referem que
61% dos homens não viviam em casal (depois dos 25 anos) contra 40% das
mulheres. Os mesmos autores referem que 42% das mulheres têm capacidade para
manter uma relação conjugal estável, contra apenas 12% dos homens. As mulheres
jovens pré-esquizofrénicas encontram-se melhor adaptadas que os homens, antes
da descompensação clínica da doença, sendo que 40% das mulheres são casadas no
momento do primeiro internamento, versus 30% dos homens, o mesmo se verificando
com o desenvolvimento psicossexual em que 16% das mulheres nunca tiveram
relações sexuais antes do início da doença, contra 40% dos homens (Dalery &
D'Amato, 2001).
A sintomatologia é percecionada de forma diferente. Existe uma maior tendência
dos homens para comportamentos antissociais e comportamentos de hiper-
reactividade, maior sintomatologia negativa nos homens e uma maior prevalência
de sintomatologia positiva nas mulheres (Dalery & D'Amato, 2001,
p.32).
Relativamente ao nível de ensino e de escolaridade verifica-se que os doentes
apresentam baixa escolaridade - 84,2%, possuindo a escolaridade obrigatória ou
nível inferior, sendo que 42,1% têm o 1.º ciclo de estudos.
Os baixos índices de escolaridade, associados às dificuldades impostas pela
doença, assim com a presença de algum estigma social, levam a maior dificuldade
no acesso a profissões mais qualificadas e melhor remuneradas. Cerca de metade
dos doentes encontra-se no ativo, demonstrando que, apesar de todas as
dificuldades impostas pela doença, apresentam funcionalidade suficiente que
lhes permite exercer as suas profissões.
Os agregados familiares são constituídos na sua maioria por famílias nucleares
com filho(s) e cônjuge. Alguns contam com a presença dos ascendentes dos
doentes, no entanto, em muito menor escala do que acontece com os doentes que
não constituíram família e que vivem dependentes dos pais ou de familiares. A
utilização da classificação social da família de Graffar confirmou que as
famílias pertencem maioritariamente à classe média baixa, estando de acordo com
a baixa escolaridade, baixo acesso ao emprego/empregos melhor remunerados,
dificultando, consequentemente, condições de habitação.
O contacto com os filhos era um fator fundamental na seleção da amostra sendo
que 76,3% das crianças vivem permanentemente com o progenitor doente.
Pela realidade profissional e pelo acompanhamento de doentes nos serviços de
internamento de Psiquiatria, muitas vezes tem-se a perceção que os doentes com
esquizofrenia não têm contacto com os descendentes, sendo a custódia dos filhos
entregue a terceiros - institucional ou familiares (Carvalho, 2012a).
A constituição da família e a opção de ter filhos foi maioritariamente anterior
à doença. O nascimento do 1.º filho ocorreu, em 61,8% dos casos, antes do
processo de doença, pelo que as crianças passaram por um processo de adaptação
e de alterações do ambiente familiar. O mesmo se verificou com as relações
conjugais em que 66,7% iniciaram o seu relacionamento antes da ocorrência de
manifestações da sintomatologia própria da esquizofrenia.
O FACES IVpermite dar resposta ao modelo Circumplexo de Olson, importante para
o diagnóstico das relações familiares, uma vez que que se centra em dimensões
que são relevantes nos modelos de abordagem familiar e da terapia familiar, em
que se foca no sistema relacional e integra as 4 dimensões: a coesão; a
flexibilidade; a comunicação e a satisfação familiar (Olson, 2011), sendo que a
coesão reflete o grau de ligação emocional que os membros da família partilham
uns com os outros e a adaptabilidade, podem ser definidas como o grau de
flexibilidade, capacidade do sistema familiar para mudar a sua estrutura do
poder, as regras do funcionamento e os papéis relacionais em resposta a uma
situação de stress situacional (Olson, 2011).
Em função dos resultados destas dimensões do instrumento de avaliação, podemos
inferir um conjunto de potenciais problemas/diagnósticos de enfermagem, dos
quais a focos de atenção como a comunicação, a satisfação familiar, a coesão e
a flexibilidade familiar (FACES IV), podendo ser englobados nos processos
familiares (Carvalho, 2102b)
Todos os doentes inquiridos têm acompanhamento psiquiátrico com média de 12
anos de acompanhamento em serviços de Psiquiatria. O tempo de duração do
acompanhamento psiquiátrico, no sexo masculino, é praticamente o dobro do sexo
feminino (15,94±9,45 / 8,35±5,12), sendo que as mulheres apresentam uma
evolução menos grave, menos recidivas, menos hospitalizações e internamentos
mais curtos (Dalery & D'Amato, 2001).
A evolução mais benigna na mulher permite melhor manutenção das capacidades de
viver em casal e menores repercussões sociais da doença, quer na autonomia,
quer na capacidade de trabalho (Dalery & D'Amato, 2001).
O despiste de comorbilidade psiquiátrica, associado ao consumo de substâncias
como indicador de comportamentos aditivos, muitas vezes atribuídos aos doentes
com esquizofrenia, não se revelou um forte atributo.
A funcionalidade do doente foi um dos aspetos equacionados como podendo ter
alguma relação com as alterações produzidas no seio familiar (Carvalho et al.,
2014). Embora possa ser difícil comparar ou tirar ilações, uma vez que os
doentes estudados são, talvez, daqueles que dentro da população com o
diagnóstico com esquizofrenia, possam ter maior grau ou maior índice de
funcionalidade global, uma vez que, em algum momento da sua vida, constituíram
família, tiveram um ou mais descendentes e mantêm contacto com eles. Os índices
obtidos demonstram que os doentes apresentam globalmente uma boa capacidade
funcional.
Uma criança com sintomas ou problemas próprios da idade, ainda que
transitórios, constituiu um problema adicional e a incapacidade por parte do
progenitor doente para desempenhar adequadamente o seu papel parental implica
um esforço suplementar para os restantes membros da família (Somers, 2007;
Clarke, 2008).
Conclusões
Constata-se que o grupo de doentes estudados apresentava bons índices de
funcionalidade, também confirmada pelo número significativo de doentes
profissionalmente ativos.
Admite-se que o bom nível de funcionalidade das suas famílias possa relacionar-
se com a constituição, manutenção e funcionamento das famílias, embora o
desenho utilizado não tenha permitido apurar se a limitação imposta pelo
presente estudo em analisar os doentes com filhos e que mantinham contacto com
eles, não tenha acarretado a seleção dos mais funcionais.
Este grupo de doentes não evidenciou comportamentos aditivos ou comorbilidade
psiquiátrica associada.
A existência da doença por si não foi motivo identificado para que as famílias
não pudessem funcionar. Os doentes apresentam uma perceção da sua família como
funcional e a maioria das famílias são caracterizadas como flexíveis e unidas.
Foram identificadas dificuldades como o baixo nível socioeconómico, baixa
formação escolar/académica e consequentes dificuldades laborais ou de acesso ao
mercado do trabalho. Foram referidas dificuldades no acesso aos serviços de
saúde e no acesso à informação sobre a doença.
Globalmente representam famílias funcionais com bons níveis de satisfação e
comunicação familiar sendo, na sua maioria, consideradas como famílias
flexiveis e unidas.
Implicações para a Prática Clínica
Estes resultados, podem ser importantes no combate ao estigma da doença mental,
como fator de exclusão social, a que estes doentes e família ainda estão
sujeitos, desmistificando a ideia de que a família do doente com esquizofrenia
podem ser "mais" problemáticas.
Este estudo é um pequeno contributo para uma área ainda pouco estudada, uma vez
que os estudos centram-se mais nos doentes e nos cuidadores e não tanto, no
doente como integrado na família e com os descendentes a seu cargo, pelo que
são necessários novos trabalhos que incluam estes sub-grupos e em que a família
seja estudada como um todo.