Antibioterapia Tópica versus Sistémica no tratamento da Otite Aguda Externa
POEMs
Antibioterapia Tópica versus Sistémica no tratamento da Otite Aguda Externa
Ana Isabel Silva*; Sérgio Barros Cardoso**; Hélder Aguiar
*USF Nova Salus/ACES Grande Porto VIII – Gaia
**USF Salvador Lordelo/ACES Tâmega II e Vale do Sousa Sul
***USF Vale do Vouga/ACES Entre Douro e Vouga II – Aveiro Norte
Referência: Kaushik V, Malik T, Saeed SR. Interventions for acute otitis
externa. Cochrane Database Syst Rev 2010; (1): CD004740. DOI: 10.1002/14651858.
[acedido em 05/05/2012].
Questão Clínica
Quais as alternativas terapêuticas mais eficazes no tratamento da otite aguda
externa?
Resumo do Estudo
Introdução: A otite aguda externa consiste numa inflamação do canal auditivo
externo de etiologia diversa como infecciosa, alérgica ou fúngica, podendo
afectar até 10% de todas as pessoas. A etiologia bacteriana é a forma mais
comum observada pelo Médico de Família. Dentro dos microorganismos que provocam
a otite aguda externa bacteriana o mais frequente é haver infecção local por
Pseudomonas aeruginosa e Staphylococus aureus.
Sem tratamento, a otite aguda externa pode evoluir para miringite,
pericondrite, celulite facial ou auricular ou otite externa necrotizante, que
surge mais frequentemente em doentes diabéticos, idosos ou imunodeprimidos, em
que existe extensão ao osso temporal com osteomielite, situação potencialmente
fatal.
Objectivo: O objectivo do estudo consiste em determinar a efectividade das
diferentes terapêuticas disponíveis no tratamento da otite aguda externa.
Metodologia: Foram incluídos ensaios controlados e aleatorizados simples ou
duplamente cegos, sem restrições para a língua ou ano de publicação dos estudos
(até 6 de Janeiro de 2009). Incluíram-se participantes de todas as idades com
otite aguda externa não complicada, com membrana timpânica intacta. Excluídos
ficaram os doentes com otite aguda externa complicada, secundária a otite
média, otite crónica externa, otite crónica supurativa, otite externa de origem
fúngica, viral, eczematosa, furunculosa ou necrotizante.
Foram encontrados 80 ensaios, dos quais se incluíram 19 (11 eram duplamente
cegos): três de elevada qualidade, os restantes de qualidade moderada ou baixa.
Estes totalizaram 3382 participantes.
Os tipos de intervenções efectuadas foram a limpeza do canal auditivo externo,
tratamento tópico (antisépticos, antibióticos, corticosteróides e combinações
entre eles) e antibioterapia oral. Foram pesquisados outcomes primários:
resolução sintomática e resolução dos sinais e outcomes secundários:
erradicação microbacteriológica no canal auditivo externo, recorrência de
sintomas e complicações do tratamento.
Resultados: Os resultados mostram que o uso de antibioterapia ou antisépsia
tópica são altamente eficazes associados ou não com corticosteróides, com uma
taxa de resolução clínica entre 55% e 100% face a uma taxa de 10% conseguida
com o uso de placebo.
Os outcomes da limpeza auditiva não foram avaliados, uma vez que esta foi
realizada de início para permitir o diagnóstico seguro e para avaliar a
resposta ao tratamento, tendo sido efectuada sempre a nível hospitalar.
Os antibióticos tópicos (neomicina e colistina com neomicina) foram comparados
com o placebo mediante o processamento estatístico de dados relativos a três
ensaios com maior eficácia na resolução clínica no primeiro grupo (OR 11, IC
95%) com boa resposta em 55% face aos 10% no grupo controlo. A resolução
microbiológica e os efeitos adversos não foram pesquisados.
As associações de antibiótico e corticosteróide (polimixina B com neomicina
associados a hidrocortisona e dexametasona) não mostraram superioridade em
relação à antibioterapia tópica isolada em termos de resolução clínica ao 7.o-
9.o dia (OR 3,46; IC 95%); no entanto, verificou-se uma maior recorrência no
primeiro grupo (OR 3,1; IC 95%) sendo contraditórios os dados relativos ao
tempo para atingir os outcomes. Embora não tenha sido estudada a resolução
microbacteriológica, comparando o ácido acético com um aminoglicosídeo
associado a corticosteróide, ao fim de 2 e 3 semanas observaram-se melhores
taxas de resolução clínica no segundo grupo com um OR 0,29 e IC 95%. A taxa de
recorrência também foi superior neste grupo (OR de 3,12 e IC 95%) bem como a
rapidez em atingir o outcome: 6 dias face aos 8 dias da utilização do
antiséptico. Embora os diferentes fármacos tenham sido bem tolerados, o
antiséptico associou-se mais frequentemente a sintomatologia local (irritação,
queimadura, dor).
Ao associar o antiséptico com corticosteróide (triancinolona) e fazendo a
comparação com um aminoglicosídeo associado a corticosteróide, verificou-se uma
melhor taxa de resolução clínica na primeira semana (OR 4,82; IC 95%) mas sem
diferenças ao fim de duas semanas. Mais uma vez, apenas foram descritos efeitos
adversos associados ao antiséptico.
Quando comparadas diferentes associações de antibióticos com corticosteróides,
um dos ensaios mostra-nos diferença na resolução clínica em favor do grupo de
quinolona (ciprofloxacina) com dexametasona face ao grupo de amiglicosídeo com
hidrocortisona (OR 2.00 CI 95%), mas um outro ensaio não mostra significância
na mesma comparação. Já em termos de resolução microbiológica verificou-se
superioridade no grupo das quinolonas (OR 2,94; IC 95%), havendo também um
ensaio que refere que estas resolvem mais rapidamente o quadro clínico (dor
severa ou significativa com p = 0,0013 e p = 0,0456, menos inflamação com p =
0,0043 e edema com p = 0,0148) que os autores atribuem a diferença de potência
do corticosteróide.
A associação de um antibiótico sistémico com tratamento tópico (aminoglicosídeo
com hidrocortisona) foi comparada ao tratamento tópico num ensaio de alta
qualidade. Não se encontraram diferenças estatisticamente significativas em
termos de resolução clinica (p = 0,5109; IC 95%), microbiológica (p = 0,4086;
IC 95%) ou resolução da dor (p = 0,9644; IC 95%). Os fármacos foram bem
tolerados.
O uso de outros veículos, como pavios medicados ou sprays, mostra resultados
semelhantes aos descritos, podendo ser alternativas viáveis se disponíveis ou
necessários.
Conclusão: O artigo conclui, portanto, que os vários preparados e apresentações
tópicas são os mais eficazes no manejo terapêutico da otite aguda externa com
boas taxas de resolução clínica e bacteriológica, não se recomendando de forma
alguma a associação de antibioterapia sistémica numa otite aguda externa não
complicada.
COMENTÁRIO
O correcto diagnóstico e tratamento da otite aguda externa é importante para a
actividade diária do médico de família. Um estudo em particular mostra-nos que
36% dos doentes afectados referem incapacidade para actividades da vida diária
por uma média de 4 dias, havendo mesmo 21% dos doentes que necessitaram de
estar acamados por um período médio de 3 dias.1
Actualmente, a antibioterapia tópica está definida como tratamento de primeira
linha na otite aguda externa. No entanto, verifica-se ainda que 40% dos doentes
têm prescrições de antibioterapia sistémica,2 sendo que apenas uma pequena
parte desta percentagem é atribuível a concomitância de otite média ou extensão
da doença. O aumento das resistências aos antibióticos de largo espectro muitas
vezes utilizados é uma preocupação, além de que estes são inúteis por não
apresentarem actividade contra os microorganismos mais frequentemente
envolvidos na etiologia: Pseudomonas aeruginosa e Staphylococus aureus.
Esta revisão sistemática permite esclarecer a eficácia das várias intervenções
descritas no manejo terapêutico da otite aguda externa. Dos vários artigos
analisados destaca-se a sua baixa qualidade realizando-se apenas três meta-
análises. Os resultados são baseados em OR com intervalos de confiança
alargados de 95% devido a tamanhos de amostragem muitas vezes modestos. No
processo de análise, os autores da revisão eliminaram qualquer heterogeneidade,
por isso atribui-se um nível de evidência 1a. No entanto, 17 dos artigos
revistos não foram realizados no âmbito dos cuidados de saúde primários e
apenas dois o foram nesse contexto, destacando-se que um deles é de elevada
qualidade.3 Tais factos podem condicionar as extrapolações destes resultados
para a nossa realidade, uma vez que a própria limpeza do canal auditivo,
realizada como parte do tratamento em 11 dos estudos incluídos, poderá ter um
papel na resolução clínica da doença e os cuidados de saúde primários não
dispõem do material próprio para a sua correcta execução.
Na análise dos resultados verificamos que os tratamentos tópicos de forma
isolada são formas efectivas para a otite aguda externa não complicada e que a
associação de antibioterapia sistémica é desnecessária.
Embora a escolha do agente tópico utilizado não tenha influenciado
significativamente os outcomes, devem ser feitas algumas considerações. O ácido
acético está disponível em gotas ou spray como medicação de prescrição livre e,
embora seja económico e viável, mostra menos eficácia a partir do 7.o dia e a
duração da sintomatologia é superior às alternativas sendo, por isso, difícil
de aconselhar o seu uso regular.
Disponíveis no mercado português existem várias associações entre antibiótico e
corticosteróide. Apesar da evidência não mostrar diferenças significativas a
nível da resolução clínica e microbiológica a associação com corticosteróides,
especialmente os mais potentes, promoveu uma mais rápida resolução dos sinais
inflamatórios (eritema, edema, dor). Já de forma isolada, a evidência quanto ao
seu uso é escassa e não é de recomendar.
Os antibióticos tópicos mais comuns são os aminoglicosídeos (neomicina ou a
gentamicina) e as quinolonas (ciprofloxacina ou a ofloxacina). A primeira
classe, pela sua ototoxicidade, está contraindicada nos casos em que existe
perfuração timpânica sendo totalmente segura quando tal não se verifica.4 As
quinolonas serão a escolha nos casos em que se desconhece o estado da membrana
timpânica (em caso de dificuldade na sua observação).
Perante as diversas alternativas deve imperar o bom senso do clínico na
avaliação de factores de custo, disponibilidade, regime terapêutico, risco de
ocorrência de resistências e de ototoxicidade. Os pacientes deverão manter o
tratamento entre 7-10 dias ou até resolução da sintomatologia. Os doentes que
mantém sintomatologia para além das duas semanas deverão ser reavaliados pelo
médico.
Por esclarecer, fica assim, o papel da limpeza auricular efectuada inicialmente
nos doentes incluídos nos estudos realizados no âmbito hospitalar e o seu
efeito na resolução clínica do processo infeccioso sobre o qual deveriam
incidir mais estudos. Na inviabilidade custo-efectiva de referenciar esta
patologia para realizar esse processo seria de ponderar a distribuição de
material de limpeza nas unidades de cuidados primários se o seu papel fosse de
facto preponderante no processo de resolução da doença. Por sua vez, a lavagem
auricular está sempre contra-indicada e não pode ser um substituto das técnicas
de limpeza. Uma outra questão que deverá ser abordada em futuros estudos será
avaliar a aderência dos doentes às intervenções tópicas que muitas vezes
obrigam a aplicações frequentes por períodos de tempo prolongados.