Enurese em crianças portuguesas: prevalência e relação com hábitos de sono e
pesadelos
Introdução
A enurese, ou enurese nocturna, é um problema frequente nas crianças, podendo
provocar distúrbios sociais e psicológicos importantes.1 Segundo a
Standardization of Terminology of Lower Urinary Tract Function in Children and
Adolescents, de 2005, enurese é sinónimo de incontinência nocturna ou enurese
nocturna e é definida como perda involuntária de urina durante o sono.2
A prevalência de enurese nocturna encontrada em diversos estudos internacionais
é variável, oscilando entre 3,9 e os 12,6%.3,4,5,6,7,8,9 A prevalência diminui
com a idade, estando descrito como sendo de 16% aos 5 anos, 13% aos 6 anos, 10%
aos 7 anos, 7% aos 8 anos, 5% aos 10 anos, 2 a 3% aos 12 a 14 anos e 1 a 2% a
partir dos 15 anos.3,4,5,6,9
Em Portugal foram realizados três estudos na zona Norte em que se encontraram
prevalências de 15,6%,10 6,1%11 e 6,9%.12 A variabilidade entre os estudos
relativamente à prevalência de enurese deve-se à utilização de diferentes
definições de enurese, tamanhos amostrais e idade das populações estudadas,
tornando difícil a comparação entre eles.
O sono está relacionado com o funcionamento cognitivo, a aprendizagem e a
atenção.13,14,15 Os hábitos de sono são reconhecidos como preponderantes no
desenvolvimento das crianças, a nível físico, comportamental e emocional. Uma
grande parte das crianças oferece resistência ao acto de deitar. Muitas
utilizam um brinquedo especial ou a luz acesa para adormecer, outras tentam
dormir na cama dos pais, vão ter com estes ou chamam-nos durante a noite.16
Também os pesadelos, um dos distúrbios de sono mais prevalentes, podem
interferir na qualidade do sono.
A maior parte dos estudos que avaliam a relação entre enurese nocturna e
hábitos do sono tentam avaliar a importância da «profundidade do sono» (as
crianças «deep sleepers») como factor associado. Poucos estudos incluíram o
número de horas de sono, o dormir com a luz acesa, a existência de objectos de
transferência, o «co-sleeping» (não adormecer sozinho, não dormir sozinho) e os
pesadelos nas variáveis a estudar.17,18,19
Não sendo este um tema habitualmente abordado na consulta com o médico
assistente, sabe-se que o problema do sono e a enurese da criança têm um
impacto directo, resultando em fadiga diária, perturbações do humor e afectando
o seu desempenho.20
Embora já tenham sido realizados três trabalhos em Portugal que estudam a
prevalência da enurese,10,11,12 e um deles aborde variáveis relacionadas com o
sono (noção que os pais tinham sobre as suas crianças terem o sono pesado;
ressonar),12 nenhum estudou a associação entre enurese e hábitos do sono e
pesadelos. O conhecimento sobre a prevalência da enurese em Portugal e dos
factores a ela associados é importante pois permitirá abordar o tema de forma
apropriada em consultas de Saúde Infantil.
Foram objectivos deste estudo determinar a prevalência de enurese em crianças
portuguesas e verificar se existe associação entre enurese, hábitos de sono e
pesadelos.
Métodos
Realizou-se um estudo observacional analítico transversal, com recolha de dados
entre Abril e Junho de 2006.
A população em estudo correspondeu às crianças nascidas no ano 2000, inscritas
em centros de saúde da região Norte de Portugal envolvidos na formação pós-
graduada do Internato Médico de Medicina Geral e Familiar e que aceitaram
participar no projecto, perfazendo um total de 30 centros de saúde. Foram
excluídas as crianças com deficiência mental, acamadas ou cujos pais (ou
cuidadores) não entendiam ou não falavam português. Da população, seleccionou-
se uma amostra aleatória simples estratificada não proporcional por Unidade de
Saúde. A dimensão ideal da amostra, calculada para uma prevalência esperada de
15%, com um nível de precisão de 1,8% e intervalo de confiança a 95%,
correspondeu a 1509. Tendo em conta uma taxa de não-resposta de cerca de 15%, a
dimensão amostral ajustada foi de 1800 crianças, 60 por cada centro de saúde
participante.
As variáveis estudadas foram: história pessoal de enurese nocturna (variável
dependente); idade, sexo, hábitos de sono, pesadelos, história familiar de
enurese nos progenitores (variáveis independentes).
A história pessoal de enurese nocturna englobou a frequência de episódios de
micção involuntária nocturna (diária, semanal, mensal, ocasional e
inexistente). Para caracterizar o sono da criança foram estudados os seguintes
aspectos: a que horas se deita habitualmente a criança, o número de horas que
dorme por noite, se adormece sozinha, se dorme sozinha, se utiliza objectos de
transferência, se dorme com a luz acesa e se tem ou não pesadelos (definidos
como a ocorrência de sonhos assustadores que levam ao despertar, geram
ansiedade e ocorrem pelo menos uma vez por mês).12,21,22
A recolha de dados foi efectuada mediante entrevista pessoal, com aplicação de
um questionário elaborado pelas autoras.
Para a análise dos dados foram utilizados os testes de Qui-quadrado e t de
Student. Foram calculados os odds ratio (OR) brutos e ajustados por modelo de
regressão logística. O nível de significância adoptado foi de 0,05.
RESULTADOS
Foram convidadas a participar no estudo 1800 crianças, tendo comparecido à
entrevista 1599, o que corresponde a uma taxa de resposta de 88,8%.
A caracterização da amostra quanto ao sexo e idade encontra-se no Quadro_I.
Considerou-se a idade no momento da entrevista, pelo que, apesar de todas as
crianças terem nascido no ano 2000, algumas tinham 5 e outras 6 anos de idade à
data do estudo. Não foi possível obter informação para o total de 1599 crianças
em todas as variáveis, pelo que foram codificados valores «missing» para
efeitos de análise, o que justifica os diferentes totais em alguns quadros.
A prevalência de enurese encontrada foi de 16,4% (IC95%: 14,6-18,2%).
A distribuição dos casos pela frequência de episódios de enurese encontra-se no
Quadro_II.
Nos Quadros_III e IV, encontram-se os resultados obtidos relativamente às
variáveis independentes estudadas. Verificou-se associação estatisticamente
significativa entre enurese e sexo masculino, história familiar de enurese nos
progenitores e ocorrência de pesadelos.
Não se verificou associação estatisticamente significativa entre enurese e
hábitos de sono (dormir sozinho, adormecer sozinho, dormir com a luz acesa,
utilizar objecto de transferência e número de horas de sono).
No Quadro_V, apresentam-se os odds ratio (OR) brutos e ajustados de cada uma
das variáveis independentes estudadas. Para a análise multivariada foram
incluídas no modelo de regressão logística as variáveis associadas à enurese
com p <0,05 na análise bivariada. Os OR brutos e ajustados foram praticamente
sobreponíveis.
DISCUSSÃO
No presente estudo foi encontrada uma prevalência global de enurese nocturna em
crianças de 5-6 anos de 16,4%. Este valor aproxima-se do de outros trabalhos
onde foi adoptada a mesma definição de enurese. Um estudo efectuado na Irlanda
revelou uma prevalência de 14% em crianças dos 4 aos 14 anos, sendo as
prevalências aos 5 e 6 anos de 17,6% e 16% respectivamente.23 Dois trabalhos
levados a cabo na Turquia revelaram, respectivamente, prevalências de 19,8% (6-
10 anos) e de 17,5% (6-12 anos).8,24 Um estudo efectuado na China encontrou uma
prevalência de 11,8% aos 5 anos e de 10,1% aos 6 anos.4 O estudo português,
realizado em 862 crianças dos 6 aos 16 anos das escolas primárias da Foz do
Douro – Porto, encontrou uma prevalência global de 15,6%, sendo que a
prevalência aos 6 anos era de 21,8%.10 Outro estudo português encontrou uma
prevalência de enurese de 6,9% num grupo de 2104 crianças com idades
compreendidas entre os 5 e os 13 anos e residentes no Norte de Portugal.12
Note-se que a faixa etária estudada no presente trabalho (5-6 anos) difere de
vários estudos, tornando por vezes difícil fazer comparações. Por exemplo,
naqueles que usam faixas etárias maiores, é esperado que a prevalência global
seja inferior pois a prevalência de enurese diminui com a idade.
Neste estudo verificou-se uma prevalência de enurese superior no sexo masculino
e uma associação positiva com a história familiar, o que tem sido quase
invariavelmente encontrado nos outros estudos efectuados.
Uma das limitações do estudo efectuado é o facto de o questionário não ser
validado. Existem questionários validados em inglês relativamente aos hábitos
do sono, nomeadamente o Child’s Sleep Habits Questionnaire – CSHQ (Owens, 2004)
e o Pediatric Sleep Questionnaire (Chervin et al, 2007), com perguntas simples
e directas relativamente aos pesadelos/terrores nocturnos e número de horas de
sono. As perguntas do questionário elaborado para o presente estudo são
semelhantes às dos questionários referidos. No entanto, não se trata de um
instrumento validado, nem foi previamente testado em estudo piloto. Assim, a
possibilidade de respostas erradas devido a má interpretação da formulação das
questões constitui um possível viés de informação.
As autoras consideram que a primeira pergunta do questionário («No último ano a
criança molhou a cama durante a noite?») tem baixa probabilidade de condicionar
problemas de interpretação. No entanto, pode ser fonte de viés de medição, por
exemplo no caso de os pais terem vergonha em admitir a enurese dos filhos.
A avaliação da história familiar de enurese nocturna («A mãe/pai da criança
molhou a cama até tarde quando era pequena/o?»), embora formulada de forma
simples e clara, poderá ter introduzido viés de memória (o que diminui o número
de respostas afirmativas) ou viés de ruminação (os pais de crianças enuréticas
têm maior probabilidade de se recordar dos seus antecedentes de enurese).
A definição de pesadelo utilizada no questionário («A criança acorda assustada
durante a noite e conta que teve um sonho mau?») foi uma adaptação/
simplificação da definição da DSM-IV para a linguagem corrente. No entanto, por
ser pouco objectiva e precisa, poderá ser fonte de confusão com, por exemplo,
os terrores nocturnos. As questões relativas aos hábitos do sono apresentam
termos menos precisos (raramente, habitualmente) que podem causar variabilidade
nas respostas, conforme a interpretação da questão e a valorização do problema.
Relativamente aos pontos fortes do nosso estudo, salientamos o tamanho da
amostra (n= 1599), a boa taxa de resposta (88,8%) e o facto de se tratar de uma
amostra aleatória simples, obviando o viés de selecção. Foram, de facto,
incluídas crianças de todos os médicos de cada centro de saúde e também as que
não tinham médico atribuído. No entanto, a amostra não foi estratificada
proporcionalmente à dimensão da população de cada centro de saúde participante.
Para além disso, sabe-se que, nos estudos em que é necessária a colaboração dos
pais ou cuidadores, pode ocorrer um viés de selecção.
Em conclusão, podemos afirmar que a prevalência de enurese encontrada no Norte
de Portugal é sobreponível à de outros trabalhos nacionais e internacionais
onde foi adoptada a mesma definição de enurese e a mesma faixa etária. A
associação da enurese com o sexo masculino e a história familiar é também
uniforme em toda a bibliografia.
Este estudo acrescenta evidência a favor de associação entre enurese e
pesadelos e quanto à relação da enurese com os hábitos de sono das crianças vem
apoiar a hipótese de serem condições independentes.