Prevenção quaternária: a propósito de um desenho
EDITORIAL
Prevenção quaternária: a propósito de um desenho
Marc Jamoulle*
*Médico de familia. Investigador em Cuidados de Saúde Primários, Charleroi,
Belgica
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Quando tive a ideia da Prevenção Quaternária1 o mundo ainda não era global. A
Organização Mundial de Saúde (OMS) ainda insistia na lista dos medicamentos
essenciais, os países não ocidentalizados não consumiam estatinas e o ataque de
pânico ainda se chamava crise de nervos. A depressão ainda não era para tratar
sem interrupção e os psicóticos só eram medicados nas crises. A indústria
alimentar ainda não era suficientemente eficaz a vender má comida, mas o tabaco
já estava em todo o lado.
Numa formação em Saúde Pública, mergulhado em exercícios do χ2, esse teste
estatístico que tenta separar o trigo do joio, praticava o cálculo de
especificidades, sensibilidades e outros valores preditivos, dos quais se sabe
valerem quase tudo para populações, mas nada para um paciente individual.
Interessava-me pelos grandes números e pelo seu imenso potencial de predição
dos acontecimentos agrupados, mas, depois das aulas, deparava-me com os meus
pacientes e com situações tipo «Ele está sozinho com a mulher doente, tem dores
de costas e bebe»,2 que escapam completamente a qualquer autoridade estatística
e qualquer previsibilidade.
Fui sempre um desses maus alunos que estão nas aulas lá atrás, longe do olhar
inquisidor do professor, mas felizmente a perturbação do défice de atenção sem
hiperatividade ainda não existia. Em 1986 mantinha ainda a capacidade de «estar
na lua» quando assistia a aulas. Tal explica que durante uma aula de
estatística tenha sido levado a fazer um desenhinho no canto inferior de uma
folha. Em vez de testar ocorrências, rabisquei uma nova versão de um teste
improvável, que testa o médico versus o paciente, o conhecimento de alguns
versus a dúvida da maioria e a ciência versus a consciência.
Assim, é possível delimitar quatro possibilidades de acordo ou de desacordo: 1)
paciente e médico podem concordar em que não há doença; 2) o médico pode
apostar na doença e tentar convencer disso o paciente, que se acha de boa
saúde; 3) podem ambos estar de acordo sobre a existência de um problema, a
necessidade de o tratar e prevenir complicações; 4) pode o paciente sentir-se
doente e o médico não encontrar nada, situação deveras frequente e arriscada
para o doente. Desta forma interessante, pacientes e médicos encontrar-se-ão
forçosamente no ponto ómega, na doença e na morte.
Nesta fase, mergulhei também no Texbook of Family Medicinede McWhinney,
regozijando-me com as suas posições para com o homem doente. Alguns anos antes,
já me tinha congratulado com a leitura de Illich e, antes ainda, com Balint. No
cruzamento da saúde pública com a saúde individual, interrogava-me sobre
questões éticas que atravessavam a minha profissão.
Sempre levado a questionar a minha relação com o paciente, passei a interessar-
me pelo conceito de motivos de consulta (MC). O professor Henk Lamberts da
Universidade de Amesterdão acolheu-me no seio do que ia tornar-se o Wonca
International Classification Committee (WICC). Em 1999, o WICC aceitou a
definição e o conceito de Prevenção Quaternária foi transcrito no Wonca
Dictionnary of General Practice:3 «Ação tomada para identificar um paciente sob
risco de medicalização excessiva, para protegê-lo de novas invasões médicas, e
para sugerir intervenções eticamente aceitáveis.»
O conceito teria permanecido confidencial e divertido se um dos membros do WICC
não tivesse convencido a grande Barbara Starfield4 do seu interesse. Ao mesmo
tempo, a perceção do mundo mudava em alguns dos meus colegas. Sob a capa da
descoberta de novos medicamentos, alimentos e pesticidas, esta indústria tinha
recuperado o seu atraso em relação à indústria tabaqueira em termos de
nocividade para a espécie humana, em particular, e para a Terra, em geral.
Todos se socorriam dos mesmos métodos sofisticados de manipulação da informação
e de sedução psicológica – os utilizados pela indústria tabaqueira para
incentivar os jovens a pensar que o tabaco não dá dependência. A indústria
farmacêutica desdobrou-se em batalhões de delegados de informação médica, em
pérolas de engenho para esconder atrás de uma fachada científica a manipulação
da informação, a compra de espaços de publicação, a dissimulação de fracassos e
o abafar de notícias alarmantes através de um monte de publicações
tranquilizadoras pré-pagas.5
Mas a capacidade de desvendar informação e de a analisar também se expandiu com
determinação. Numerosos médicos e cientistas do mundo inteiro começaram a
denunciar manipulações e abusos de todo o género. Nenhum domínio da Medicina
atual escapa à crítica. E como nas últimas décadas a Medicina se declarou
competente para tudo, da saúde mental à sexualidade, passando pelos
comportamentos, as críticas disparam vindas de todo o lado e em particular dos
atores dos cuidados de saúde primários, os que estão em contacto diário com a
população.
O domínio das classificações e particularmente o Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders (DSM) foi um destes campos de batalha, com as
revelações das manipulações a que a Associação Americana de Psiquiatria se
prestara.6 Em 1999, fora necessária toda a combatividade de um primeiro grupo
de médicos cibernautas e uma primeira petição para impedir que a OMS avalizasse
novas normas relativas à tensão arterial, insidiosamente propostas por uma
farmacêutica multinacional que tentava alargar o seu mercado. A crise da dita
pandemia da gripe abriu os olhos relativamente à influência das empresas sobre
os estados e a OMS. Numerosos medicamentos são propostos como panaceias e
retirados dos mercados após lutas ferozes nas quais se percebe que os
organismos de controlo internacionais são também manipulados por essas mesmas
empresas.7
Os jornalistas denunciam estas manipulações,8 perante as quais a maior parte
dos médicos fica impassível ou conivente. Exemplos em que foram ultrapassados
os limites do aceitável podem ser detetados em todos os domínios do exercício
da Medicina, quer se trate de informação, rastreio, diagnóstico ou tratamento.
A Medicina torna-se, pela primeira vez na história contemporânea, suspeita de
disseminar a doença. O primum non nocere hipocrático é arrasado por esta
civilização de negociantes sem escrúpulos.
Este quadro sombrio assemelha-se à dúvida que invade a prática médica. A
inflação de informação, rastreios, meios de diagnóstico e novos tratamentos
exige uma sagacidade incrível ao médico que está no terreno, constantemente
obrigado a colocar a dúvida no centro do seu processo de decisão.
Neste novo quadro que refina o que em nós restou da abordagem científica, o
quadrozinho do χ2 entre o paciente e o médico fornece uma espantosa grelha de
observação destes fenómenos. O campo 1 adequa-se perfeitamente à
sobreinformação, o campo 2 ao sobrerastreio, o campo 3 ao sobretratamento, ao
sobrediagnóstico ou à Medicina defensiva, e o campo 4, que questiona a relação
médico-doente, permite-nos também questionar o nosso agir a todos os níveis
(Figura_1).
Curiosamente, o meu desenhinho foi recuperado por numerosos médicos e
professores a tal ponto que, em 2010, tive a surpresa de me aperceber que
jovens estudantes brasileiros de Medicina o conheciam perfeitamente. Difundido
por todo o lado pelos colegas do WICC, o conceito instalou-se na Europa e na
América Latina e está a caminho da Ásia.
Em 2011, a Equipo Cesca organizou um primeiro seminário pela internet sobre a
Prevenção Quaternária. Em 2012, um seminário internacional on line, que
terminou com uma jornada de debates em Buenos Aires, reuniu médicos, psicólogos
e assistentes sociais argentinos, uruguaios, brasileiros, equatorianos e de
múltiplos outros países, para uma discussão inédita sobre a validade da nossa
profissão, partindo da grelha de reflexão da Prevenção Quaternária. O conceito
de Prevenção Quaternária serve manifestamente como detonador de uma partilha
abrangente de pontos de vista sobre a ética da profissão do prestador de
cuidados no mundo global.
Este ano viu morrer dois dos mais eminentes mentores da nossa disciplina, Ian
McWhinney e Barbara Starfield, e o conceito de Prevenção Quaternária deve-lhes
muito. Sinto-me extremamente honrado e sensibilizado por ser o portador de um
pensamento tão fecundo através de uma história inacreditável que começou com um
desenhinho num canto inferior de uma página.