Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção no Adulto: qual o papel do
médico de família?
CLUBE DE LEITURA
Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção no Adulto: qual o papel do
médico de família?
Adult attention deficit hyperactivity disorder: What is the role of the family
physician?
Carla Isabel Simões
Interna de Medicina Geral e Familiar do 4.o ano, USF Flor de Sal - Aveiro
Post RE, Kurlansik SL. Diagnosis and management of attention-deficit/
hyperactivity disorder in adults. Am Fam Physician 2012 May 1; 85 (9): 890-6.
Nas últimas décadas tem-se vindo a dedicar atenção crescente à persistência da
Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção (PHDA) na idade adulta,
acreditando-se actualmente que este transtorno pode persistir em pelo menos 30%
dos pacientes diagnosticados na infância.
Estima-se que 3 a 4% dos adultos cumprem os critérios de diagnóstico do
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 4th edition (DSM-IV),
existindo 16% que cumprem critérios em número insuficiente. Atendendo a que 65
a 85% dos diagnósticos em crianças e adolescentes ocorrem nos cuidados
primários, é razoável concluir que muitos adultos se apresentarão também ao seu
médico de família para a avaliação deste problema.
Diagnóstico diferencial
Várias condições apresentam sintomatologia similar à PHDA e exigem um
diagnóstico diferencial.
Condições médicas incluem défices de audição, apneia do sono e interacções
medicamentosas.
Condições psiquiátricas incluem ansiedade, transtornos do humor, transtorno
obsessivo-compulsivo, uso de drogas, problemas de aprendizagem e défices
intelectuais. Substâncias como os esteróides, anti-histamínicos, cafeína e
nicotina também podem afectar a atenção.
Os adultos com PHDA podem apresentar estas patologias como comorbilidades,
sendo o conhecimento da cronologia da sintomatologia fundamental para realizar
um diagnóstico preciso.
Diagnóstico
O diagnóstico assenta numa história clinica detalhada, na avaliação do
comportamento actual e do nível de funcionamento. Os critérios do DSM-IV para a
PHDA no adulto são iguais aos das crianças, existindo muitas críticas aos
mesmos, nomeadamente à baixa idade de corte para o diagnóstico (7 anos) e o
facto de muitas manifestações no adulto serem diferentes.
Em antecipação à DSM-V, a Associação Americana de Psiquiatria apresentou uma
proposta de alteração aos actuais critérios que inclui aumentar a idade de
corte para os 12 anos e diminuir o número de critérios a cumprir de seis para
quatro.
O diagnóstico clínico da PHDA no adulto deve ter uma abordagem por degraus:
• Avaliação dos sintomas de PHDA nos últimos 6 meses.
• Estabelecimento de uma história de PHDA antes dos 7 anos.
• Avaliação do impacto a nível doméstico, laboral, escolar e de relacionamento.
• Obtenção da história de desenvolvimento para estabelecimento de sintomas na
infância.
• Obtenção da história psiquiátrica para exclusão de outras patologias
psiquiátricas ou determinação da presença de comorbilidades.
• Obtenção da história familiar de PHDA, tiques, uso de drogas e comportamentos
criminosos.
• Realização de exame físico para exclusão de causas médicas (nomeadamente
tiroideias e neurológicas) e avaliação de possíveis contra-indicações ao uso de
terapêutica estimulante. Deverá avaliar-se o peso inicial para comparação em
futuras monitorizações.
Existe um conjunto de escalas que permitem estruturar o diagnóstico e podem
facilitá-lo. No entanto, é escassa a informação existente sobre a sua
sensibilidade e especificidade.
Não existem exames laboratoriais específicos nem exames complementares que
confirmem o diagnóstico. No entanto, o estudo das funções tiroideia e hepática
e a determinação dos níveis de chumbo poderão ser úteis na exclusão de
comorbilidades e patologias mimetizantes.
Tratamento
Farmacoterapia
A base do tratamento da PHDA é a farmacoterapia.
As guidelines clínicas recomendam os estimulantes e a atomoxetina como primeira
linha de tratamento. Estimulantes e antidepressivos (como a bupropriona e a
desipramina) têm eficácia similar, embora não existam ensaios de comparação
directa.
A medicação deverá ser iniciada com doses baixas e titulada lentamente até
alcançar o máximo benefício ou os efeitos secundários se tornarem intoleráveis.
Deve-se esperar 4 a 6 semanas entre ajustes de doses, devendo-se preferir os
estimulantes de acção prolongada.
São contra-indicações para o uso de estimulantes a hipertensão arterial,
taquicardia, arritmias cardíacas, psicoses, transtorno bipolar, anorexia grave
e síndrome de Tourette. Apesar da existência de relatos de casos de morte
súbita em pacientes com problemas cardíacos graves, um estudo recente com 150
000 adultos demonstrou que o seu uso não aumenta o risco de eventos
cardiovasculares graves.
Outras medicações usadas em crianças com PHDA, como o modafinil e os agonistas
alfa clonidina e guanfacina não apresentam evidências suficientes que permitam
recomendá-los em adultos.
Outras terapias
Pequenos estudos têm demonstrado que a terapia cognitivo-comportamental é útil
como adjuvante da medicação no tratamento da PHDA, podendo melhorar o
desempenho das actividades diárias.
A meditação e a erva de São João foram também sugeridas como potenciais
terapias, não existindo no entanto evidência suficiente para recomendá-las.
Comorbilidades
Depressão
De uma maneira geral, a depressão deverá ser tratada antes de tratar a PHDA. O
uso combinado de antidepressivos e estimulantes é seguro e eficaz, estando no
entanto contra-indicado o uso concomitante da atomoxetina e dos inibidores
selectivos da recaptação da serotonina por partilharem a via do citocromo P450.
Doença bipolar
Os estimulantes devem ser evitados, devendo-se preferir os estabilizadores do
humor e os antipsicóticos atípicos.
Ansiedade
Nos doentes com transtornos da ansiedade, os estimulantes constituem a primeira
linha de tratamento, seguidos pelos inibidores selectivos da recaptação da
serotonina e pela terapia cognitivo-comportamental.
Deficiências intelectuais
Nos utentes com défices intelectuais não existe evidência suficiente para
recomendar o uso de estimulantes no tratamento da PHDA. Existem estudos sobre o
uso de risperidona, sendo no entanto a evidência disponível sobre a sua
eficácia insuficiente.
Referenciação
Não existe evidência suficiente acerca de quando referenciar para os cuidados
de saúde secundários. Dever-se-á ter em conta a presença de comorbilidades que
normalmente se referenciariam (incluindo depressão e ansiedade graves) e a
existência de sintomatologia que afecte gravemente o funcionamento do utente.
Uso indevido de estimulantes
Um estudo em cerca de 4 300 adultos aponta para uma taxa de uso não médico de
estimulantes de 2%. Ser homem, de raça branca e ter antecedentes de abuso de
substâncias são factores de risco para o seu uso indevido.
Os médicos de família deverão considerar o recurso a estratégias para prevenir
o uso ilícito de substâncias prescritas para adultos com PHDA, tais como a
assinatura de um acordo de controlo de substâncias mediante análises de urina
de rastreio e a calendarização de vigilâncias periódicas para avaliar a
eficácia da medicação e a potencial violação do acordo.
COMENTÁRIO
A PHDA é um dos transtornos psiquiátricos mais comuns na infância. Até há pouco
tempo acreditava-se que se tratava de uma doença de resolução espontânea
durante a adolescência e juventude, com pouco ou nenhum impacto na vida
adulta.1 A evidência actual, no entanto, aponta para a persistência da PHDA na
idade adulta na maioria dos casos, existindo alguns factores preditores da
mesma (severidade dos sintomas, presença de comorbilidades e existência de
condições psicossociais adversas). A NICE (National Institute for Health and
Clinical Excelence) preconiza nas suas guidelines uma transição programada do
seguimento da PDHA dos cuidados pediátricos para os cuidados de saúde do
adulto, por forma a evitar o vazio de seguimento que a maioria destas crianças
e adolescentes experimentam quando atingem a idade adulta. Idealmente, os
cuidados do adulto deveriam envolver os cuidados de saúde primários, equipas
comunitárias de saúde mental e serviços especializados em PHDA em adultos.2
Este artigo de revisão narrativa resume de forma clara e concisa os aspectos
mais relevantes do diagnóstico e tratamento da PHDA no adulto que, para muitos
profissionais no nosso país, continua a ser uma «doença que não existe». A
falta de sensibilização dos médicos para este problema, que poderá resultar da
ausência de formação pré e pós-graduada nesta área, o alto grau de suspeição
necessário ao diagnóstico e a inexistencia de um instrumento diagnóstico
específico e de critérios que «captem» a apresentação complexa da PHDA na idade
adulta poderão justificar o seu subdiagnóstico.1,3-5 Este subdiagnóstico e a
consequente ausência de tratamento têm sido associados a taxas mais altas de
insucesso académico, baixo nível ocupacional, risco aumentado de dependências
(álcool, tabaco e drogas), acidentes, delinquência e relações sociais mais
pobres.1,4,6
As guidelines actuais preconizam uma abordagem multimodal da doença, que inclua
psico-educação do doente e família, tratamento farmacológico, coaching, terapia
cognitivo-comportamental e terapia familiar.1 A farmacoterapia constitui a
primeira linha de tratamento, sendo o metilfenidato a primeira opção
terapêutica. A atomoxetina e a dexanfetamina são opções caso o paciente não
responda ou seja intolerante ao metilfenidato. Nos casos em que exista risco de
abuso de substâncias, a atomoxetina é o fármaco de primeira linha.7 O apoio
psicológico individual ou em grupo está recomendado em doentes que recusem o
diagnóstico ou o tratamento farmacológico, apresentem fraca adesão terapêutica,
fraca resposta aos fármacos ou mantenham limitações funcionais importantes.7
Numa revisão sistemática de Vidal-Estrada e colaboradores (2012), a terapia
cognitivo-comportamental surge como a abordagem psicológica mais eficaz tanto
no tratamento da PHDA como da ansiedade e depressão, comorbilidades
frequentemente presentes nestes pacientes e com importante repercursão
funcional no dia-a-dia do doente.8
O Médico de Família encontra-se numa posição central para o diagnóstico desta
patologia, sendo por isso importante um maior investimento na formação deste
especialista nesta área, capacitando-o para a sua correcta abordagem. Neste
contexto, este artigo de revisão narrativa constitui um documento importante na
educação médica contínua, permitindo ao leitor adquirir e actualizar os seus
conhecimentos de acordo com o «estado da arte», num curto espaço de tempo.
Contudo, são de realçar algumas das suas limitações, nomeadamente o facto de
não possuir uma metodologia clara que permita a reprodução dos dados, ao
contrário das revisões sistemáticas, devendo por isso as recomendações ser
interpretadas mais cautelosamente, e tendo sempre em conta a evidência que as
sustenta.