Função tiroideia, estado de humor e cognição no idoso
INTRODUÇÃO
A disfunção tiroideia, principalmente a subclínica, é um problema relativamente
comum nos idosos.1,2 Não existe concordância entre os diversos estudos
realizados até à data, no que respeita à prevalência desta condição, mas
estima-se que a prevalência de hipotiroidismo, nesta população, varie entre
3,3%-12% e de hipertiroidismo entre 2,6%-5,5%.2-4
A disfunção tiroideia divide-se em hipertiroidismo, hipertiroidismo subclínico,
hipotiroidismo e hipotiroidismo subclínico, de acordo com os níveis séricos das
hormonas tiroestimulante (TSH), tiroxina livre (T4 livre) e triiodotironina
livre (T3 livre).5 No hipertiroidismo existem níveis elevados de T4 e/ou T3
livres, com o nível de TSH diminuído e no hipotiroidismo encontra-se um nível
baixo de T4 livre e um nível elevado de TSH. No que diz respeito à disfunção
tiroideia subclínica, esta caracteriza-se por uma alteração do nível sérico da
TSH, associada a valores séricos normais das hormonas tiroideias. O
hipotiroidismo subclínico é definido por um aumento do nível sérico de TSH, com
um nível sérico normal de T3 livre e T4 livre, e no hipertiroidismo subclínico
há uma diminuição do nível sérico de TSH com valores séricos normais de T3
livre e T4 livre.2,6
As alterações cognitivas são também comuns nesta faixa etária, sendo
reconhecidas como um importante problema de saúde pública. De facto, estudos
revelam que aproximadamente 17% dos idosos apresentam um comprometimento
cognitivo capaz de afectar as actividades de vida diária, não implicando porém
uma associação ao diagnóstico formal de demência.7
Vários estudos têm verificado uma estreita associação entre as disfunções
tiroideia e cognitiva, pelo que a hipótese da disfunção tiroideia poder
condicionar alterações cognitivas, que surgem durante o processo de
envelhecimento, tem sido investigada, com resultados contraditórios.1,2,7,8 Por
outro lado, em pacientes com disfunção tiroideia, clínica ou subclínica, também
são comuns as perturbações do humor, nomeadamente ansiedade e depressão, que
frequentemente melhoram com o tratamento da disfunção da tiróide.5,9 Os estudos
que têm procurado demonstrar a associação entre a ansiedade/depressão e
disfunção tiroideia alcançaram resultados controversos.9-13 Adicionalmente,
estas perturbações de humor nos idosos são tidas como estando subdiagnosticadas
e, consequentemente, subtratadas, havendo dados que apontam para prevalências
de depressão entre 9% (em idosos na comunidade) e 25% (em idosos
institucionalizados).14
Em Portugal não existem estudos descritos com o objectivo de avaliar a
prevalência da disfunção tiroideia na população idosa da comunidade. Com base
nas divergências encontradas na literatura, torna-se pertinente, no âmbito da
Medicina Geral e Familiar, avaliar a prevalência da disfunção tiroideia e o seu
impacto na cognição e no estado de humor do idoso. De facto, investigações
nesta área poderão ter importantes implicações, quer científicas, quer na
implementação de estratégias para a sensibilização dos elementos envolvidos na
protecção da saúde do idoso.
Neste contexto, este trabalho tem como objectivos determinar a prevalência de
disfunção tiroideia na população idosa inscrita na Unidade de Saúde Familiar
(USF) Ponte e analisar a associação entre função tiroideia, alterações
cognitivas e algumas alterações do estado de humor, nomeadamente ansiedade e
depressão.
MÉTODOS
Realizou-se um estudo observacional, transversal e analítico, entre Maio de
2010 e Julho de 2011, na USF Ponte (Agrupamento de Centros de Saúde do Ave II,
Guimarães-Vizela). Todos os participantes foram devidamente informados dos
objectivos do projecto e assinaram o respectivo consentimento informado. Esta
investigação foi aprovada pela Comissão de Ética da Administração Regional de
Saúde do Norte.
A população em estudo consistiu em indivíduos inscritos na USF Ponte, com idade
igual ou superior a 65 anos à data de início do projecto. De forma a
concretizar os objectivos pretendidos, seleccionou-se uma amostra com base na
técnica de amostragem aleatória simples. Através do software SINUS (Sistema de
Informação para as Unidades de Saúde), obteve-se a informação relativa à
população alvo, posteriormente transferida para o software Microsoft Excel®,
para aleatorização. A dimensão amostral foi calculada através do software Epi
Info 6 (função STATCALC). Assumindo um intervalo de confiança de 95%, com uma
margem de erro de 5%, obteve-se uma amostra composta por 263 indivíduos, a
partir de um total de 838 utentes. Foram excluídos os utentes sem contacto
telefónico disponível ou com contacto telefónico incorrecto; utentes que não
atenderam o telefone três vezes em dias diferentes; utentes que revelaram
incapacidade para se deslocarem à USF durante o período do estudo (por motivos
de doença crónica e/ou aguda que comprometia a sua mobilidade, assim como por
inexistência de meio de transporte que permitisse a sua presença durante os
períodos de aplicação dos questionários e colheita de sangue); e, por fim,
utentes com deficiência audiovisual ou outra (verificada no SAM ou durante o
convite para participar) que não permitissem a obtenção de todos os dados
necessários ao estudo. Estes utentes foram excluídos da lista previamente
seleccionada, o que implicou a adição de outros tantos casos seleccionados pelo
mesmo processo aleatório.
Aos utentes incluídos no estudo foi aplicado um questionário e solicitada a
colheita de uma amostra de sangue venoso periférico. Adicionalmente,
confirmaram-se os dados clínicos recorrendo ao Sistema de Apoio ao Médico
(SAM). Realizou-se um estudo piloto, com a finalidade de verificar a
aplicabilidade e exequibilidade do questionário e listar obstáculos não
previstos no protocolo experimental. Neste estudo piloto foram analisados 27
indivíduos (cerca de 10% da dimensão da amostra calculada), seleccionados de
acordo com os critérios definidos, que pertenciam a uma população com
características semelhantes. Foram elaboradas pequenas alterações ao
questionário com base nos resultados obtidos.
O questionário encontrava-se dividido em 3 secções. As secções A e B foram
preenchidas pelos investigadores e a secção C era de auto-preenchimento. No
caso de o utente apresentar dificuldades no preenchimento desta secção, os
investigadores procederam à leitura das respectivas questões. Previamente à
aplicação dos questionários, os investigadores treinaram em conjunto a
aplicação dos mesmos com o objectivo de uniformizar a linguagem usada na
colocação das questões e de estabelecer critérios para a aceitação das
respostas.
A secção A visava obter informações sociodemográficas (género, idade,
escolaridade), antropométricas (peso, altura, índice de massa corporal – IMC) e
clínicas (diagnóstico de disfunção tiroideia, depressão e ansiedade, com base
na medicação habitual do utente).
Para avaliação da função cognitiva foi aplicado o Mini-Mental State Examination
(MMSE) – secção B. Trata-se da escala mais amplamente utilizada para avaliação
do estado mental, nacional e internacionalmente. Inclui itens sobre orientação
temporal e espacial, registo de informação, atenção e cálculo, evocação,
linguagem e construção. Cada item tem uma pontuação definida e a pontuação
máxima final corresponde a 30 pontos. De uma forma geral, uma pontuação igual
ou inferior a 22 sugere demência. No caso de se tratar de uma pessoa
analfabeta, a pontuação considerada significativa é igual ou inferior a 15. No
caso de indivíduos com escolaridade superior a 11 anos, a pontuação igual ou
inferior a 27 pontos é já indicativa de demência. De acordo com a escolaridade,
procedeu-se à dicotomização da pontuação nas categorias com e sem demência.
Esta escala encontra-se validada para a população portuguesa.14
A secção C era constituída pela Hospital Anxiety and Depression Scale (HADS),
para avaliar os níveis de ansiedade e/ou depressão dos indivíduos em estudo.
Esta escala é constituída por 14 perguntas, que se devem reportar à última
semana; destas, 7 permitem avaliar o domínio relativo à ansiedade (HADS-A) e as
restantes 7 o domínio da depressão (HADS-B). Cada pergunta, com um score total
a variar entre 0 e 3, tem 4 hipóteses de resposta. Em cada domínio, a pontuação
global varia entre 0 e 21. Uma pontuação final igual ou superior a 11 evidencia
a presença de sinais de perturbação ansiosa/depressiva clinicamente
significativa. Assim, de acordo com a pontuação obtida nos dois domínios, os
indivíduos foram categorizados com apresentando ou não sinais de ansiedade e
depressão. Esta escala pode ser lida ao respondente e está validada para a
população portuguesa.15,16 Para obtenção e confirmação dos antecedentes
clínicos, de forma mais fidedigna, foi utilizado o SAM. Através do processo
clínico individual, foi recolhida informação acerca do diagnóstico prévio de
diabetes mellitus, hipertensão arterial (HTA), dislipidemia, antecedentes de
doença cardiovascular (insuficiência cardíaca, arritmia, isquemia cerebral,
fibrilhação auricular, doença cerebrovascular, isquemia com angina, isquemia
sem angina, enfarte agudo do miocárdio) e história de hábitos tabágicos.
A função tiroideia foi avaliada através do doseamento de TSH e T4 livre, numa
amostra de sangue venoso periférico, obtida após um período de 12 h de jejum.
Esta colheita foi realizada na USF Ponte, aquando da aplicação do questionário,
por um técnico destacado pelo laboratório de análises clínicas que colaborou no
estudo (Maria de La Salete e Irmão, Lda). A selecção de apenas um laboratório
prendeu-se com a necessidade de garantir a uniformidade dos procedimentos e,
consequentemente, dos dados obtidos.
Relativamente à análise estatística, efectuou-se uma descrição simples de todas
as variáveis, com cálculo das frequências absolutas, relativas e acumuladas.
Utilizaram-se os testes Qui-quadrado, one-way ANOVA, t de Student, Mann-Whitney
e Kruskal-Wallis para analisar as associações entre as variáveis em estudo:
género, idade, escolaridade, índice de massa corporal, hipotiroidismo,
hipertiroidismo, distúrbio cognitivo, ansiedade, depressão, HTA, diabetes,
dislipidemia, doença cardiovascular e tabagismo. O risco de apresentar
disfunção cognitiva ou alteração do humor foi estimado por regressão logística
não condicional, através de odds ratio (OR) e intervalos de confiança (IC 95%)
e ajustado para a idade, género, escolaridade, diagnóstico prévio de diabetes,
HTA, dislipidemia e antecedentes de doença cardiovascular. Para análise da
performance cognitiva nos diferentes domínios avaliados pelo MMSE, procedeu-se
ao cálculo de médias ajustadas para a idade e escolaridade, utilizando a
regressão linear múltipla. Considerou-se existir significância estatística para
valores de p < 0,05. A análise estatística foi realizada em SPSS versão 18.0
(SPSS Inc, Chicago, Illinois) e utilizou-se ainda o STATA 9.2, para o cálculo
de médias ajustadas.
RESULTADOS
Da amostra inicial, foram excluídos (e repostos) 46 utentes (17,5%): 5 por
contacto telefónico não disponível, 9 por contacto telefónico incorrecto, 12
por não atenderam o telefone três vezes em dias diferentes, 17 por revelarem
incapacidade para se deslocar à USF e 3 por deficiência. Foram, assim,
avaliados 263 utentes, com idade média de 72 anos (DP 5 anos), dos quais 138 do
sexo feminino (52,5%). Do total de utentes, 23 (8,7%) apresentavam disfunção
tiroideia: 4 (1,5%; IC 95% 0,4-3,0) hipotiroidismo, 14 (5,3%; IC 95% 2,7-8,0)
hipotiroidismo subclínico, 3 (1,1%; IC 95% 0-2,7) hipertiroidismo e 2 (0,8%; IC
95% 0-1,9) hipertiroidismo subclínico. Relativamente ao estado de humor, 30
(12%) utentes apresentavam sintomas compatíveis com ansiedade e 42 (16,8%)
revelaram sintomas depressivos, salientando-se que em 13 utentes não foi
possível calcular uma pontuação global por não terem respondido à totalidade
das perguntas.
Quanto à análise da função cognitiva, 57 (21,7%) utentes obtiveram pontuações
no MMSE compatíveis com demência. As restantes características da amostra
encontram-se descritas no quadro_I.
Os utentes com demência eram significativamente mais velhos (73,8 anos vs 71,7;
p = 0,014) e maioritariamente mulheres, embora sem significado estatístico
(quadro_II). Não foi encontrada qualquer associação entre HTA, diabetes,
dislipidemia, doença cardiovascular, tabagismo e sinais de disfunção cognitiva
(quadro_II). Não se verificou, também, associação entre os níveis séricos das
hormonas tiroideias e a função cognitiva (quadro_II). Quanto ao estado de humor
(quadro_II), utentes com demência apresentaram um score superior na HADS-A e
HADS-B (9,2 vs 7,6; p = 0,032 e 8,8 vs 6,8; p = 0,002, respectivamente).
As características da amostra, de acordo com o estado de humor, estão descritas
no quadro_III. Os utentes com sintomas de ansiedade e depressão eram na sua
maioria mulheres (respectivamente, 86,7% e 71,4%; p < 0,001). Os utentes com
ansiedade apresentavam um IMC superior, comparativamente aos utentes sem
alteração do humor, enquanto os utentes com depressão apresentavam um IMC
inferior (p = 0,088). Verificou-se uma prevalência mais baixa de HTA nos
utentes com sintomas de ansiedade (p = 0,035) e, embora sem significado
estatístico, a prevalência de diabetes foi superior nos utentes deprimidos.
Relativamente à função tiroideia, doentes com quadro de ansiedade obtiveram
valores superiores de TSH (p = 0,078). Não foi encontrada qualquer relação
entre os níveis de T4 livre e alterações no estado de humor.
No que diz respeito à probabilidade dos utentes apresentarem disfunção
cognitiva, estimada através da regressão logística, verificou-se, após ajuste,
que a idade se associou significativamente com demência (OR = 1,10, IC 95%
1,02-1,18) (quadro_IV). Ter concomitantemente sintomas de ansiedade e/ou
depressão também se demonstrou estar associado a uma maior probabilidade de
revelar disfunção cognitiva (OR = 1,05, IC 95% 1,00-1,16; OR = 1,07, IC 95%
1,01-1,19, respectivamente). Não foi encontrada associação entre disfunção
tiroideia e demência (quadro_IV).
No quadro_V estão representados os odds ratio brutos e ajustados para ansiedade
e depressão, de acordo com as características da amostra. Após ajuste, o sexo
feminino associou-se significativamente a uma maior probabilidade de apresentar
ansiedade (OR = 4,45, IC 95% 2,00-9,87) e depressão (OR = 2,63, IC 95% 1,16-
5,96). De forma semelhante, após ajuste, observou-se relação significativa
entre IMC e depressão (OR = 0,90, IC 95% 0,82-0,98). Utentes com diabetes
apresentavam, também, uma maior probabilidade de ter sintomas compatíveis com
ansiedade e depressão (OR = 2,45, IC 95% 1,13-5,33 e OR = 2,37, IC 95% 1,05-
5,36, respectivamente). No que concerne à função tiroideia, valores mais altos
de TSH estavam significativamente associados a uma maior probabilidade de
apresentar ansiedade (OR = 1,25, IC 95% 1,01-1,67), não tendo sido verificado o
mesmo para o caso da depressão. Não foram encontradas associações entre as
restantes patologias crónicas avaliadas e a alterações do humor em questão.
Atendendo à pontuação nos diferentes domínios específicos do MMSE, ao avaliar a
sua relação com a presença de depressão, notaram-se diferenças estatisticamente
significativas nos domínios «Orientação temporal» e «Atenção e cálculo». Nestes
(quadro_VI), as pontuações médias (ajustadas para a idade e escolaridade) foram
inferiores nos indivíduos com depressão [(3,62 vs 4,09; p = 0,005) e (2,83 vs
3,83; p < 0,01), respectivamente]. Relativamente à presença de ansiedade, foi
efectuada a mesma análise comparativa, não se encontrando diferenças
estatisticamente significativas.
DISCUSSÃO
Neste estudo, verificou-se que 6,8% dos utentes apresentava hipotiroidismo
(englobando hipotiroidismo subclínico e clínico) e 1,9% cumpria critérios de
hipertiroidismo (subclínico e clínico). A prevalência de disfunção tiroideia
encontrada é semelhante à descrita na literatura para idosos da comunidade. De
acordo com os resultados destes estudos, a prevalência de idosos com níveis de
TSH sugestivos de hipotiroidismo varia entre 3,3% e 12% e de hipertiroidismo
entre 2,6% e 5,5%.2-4 Paralelamente, ao analisar especificamente o
hipotiroidismo subclínico, disfunção tiroideia mais prevalente neste estudo
(5,3%), verifica-se que esta estimativa é superior à descrita para uma
população
europeia com características semelhantes. De facto, segundo um estudo realizado
na população inglesa, a prevalência do hipotiroidismo subclínico em indivíduos
com mais de 65 anos de idade é de 2,9%.5
Encontrou-se uma prevalência de disfunção cognitiva, nesta população, de 21,7%,
o que não difere muito do valor apontado na literatura.6,15 Por sua vez, 28,8%
dos indivíduos apresentavam algum tipo de perturbação do humor. Estes
resultados estão de acordo com um estudo realizado na população idosa
espanhola, que tinha como principal objectivo determinar a prevalência de
sintomas psiquiátricos e doenças mentais, em idosos que recorriam aos Cuidados
de Saúde Primários.15 Segundo os autores, nos 293 idosos avaliados, verificou-
se uma prevalência de sintomas de ansiedade e depressão de 15,7% e 14,3%,
respectivamente.15 É importante referir, ainda, que aquando da análise dos
resultados foram detectados 10 casos em que coexistiam simultaneamente
perturbação depressiva e ansiosa, os quais foram introduzidos no grupo da
depressão. Apesar de se tratar de um número pequeno, não se poderá descartar
completamente a hipótese desta classificação poder alterar os restantes
resultados.
Não foi verificada associação entre os níveis de TSH e/ou T4 livre e a presença
de disfunção cognitiva. Gussekloo J et al, 2004, num estudo prospectivo de 599
idosos, também constataram que os níveis plasmáticos de TSH e T4 livre não
estavam relacionados com incapacidade nas actividades da vida diária e
alterações cognitivas.4 Roberts LM et al, em 2006, analisaram 5.865 idosos da
comunidade e não encontraram associação entre a disfunção tiroideia e
cognição.2 No entanto, outros estudos mostraram esta associação.3,6,8,16 As
discrepâncias nos resultados poderão dever-se ao número reduzido de doentes com
disfunção tiroideia encontrado em cada estudo, a diferenças nas características
da amostra e nas idades analisadas, aos critérios de exclusão aplicados em cada
estudo, aos diferentes valores de referência para as hormonas tiroideias e à
utilização de diferentes instrumentos para avaliação da função cognitiva.
Paralelamente, os valores do doseamento de TSH podem variar até 30%, dependendo
da altura do dia em que é realizada a flebotomia, assim como se os utentes
estão ou não em jejum.17 Embora a maioria dos estudos que não verificou
associação entre a função tiroideia e disfunção cognitiva tenha realizado as
colheitas de forma aleatória, ao longo do dia, neste estudo todas as colheitas
de sangue venoso foram realizadas no período da manhã.2,4
Neste estudo observou-se uma relação inversa entre IMC e a probabilidade de
apresentar depressão. Esta observação não é apoiada pela literatura, tendo os
autores constatado que estudos prévios mostravam mesmo o oposto.18 Nos estudos
internacionais em que esta relação é directamente avaliada, constatou-se um
aumento do risco de ocorrer depressão com o aumento do IMC, e que reduções dos
valores de IMC se associam a uma diminuição da prevalência de sintomas
depressivos.18 De notar, porém, que nenhum destes estudos envolvia apenas
populações idosas, sendo esta característica diferenciadora uma possível
explicação para a relação inversa observada neste trabalho. A gordura corporal
é um aspecto geralmente considerado como sinal de riqueza e bem-estar,
sobretudo pela população idosa portuguesa, o que se diferencia da imagem
corporal que as pessoais mais jovens e com IMC superior têm de si, favorecedora
do aparecimento de sintomas depressivos nos estudos citados.
Vários estudos demonstram uma associação entre disfunção tiroideia e
depressão,9,19 enquanto outros, nomeadamente a presente investigação, não
verificaram relação entre os níveis de TSH e/ou T4 livre e a presença de
sintomas depressivos.2,4,20-22 Estes resultados inconsistentes podem dever-se a
características da amostra, uma vez que esta associação é descrita
maioritariamente em estudos que utilizaram amostras de base hospitalar.23,24
Para além disso, a utilização de diferentes instrumentos ou de entrevistas
clínicas diagnósticas para avaliar a presença de sintomas depressivos pode, por
sua vez, influenciar os resultados obtidos.
Neste estudo, verificou-se uma prevalência mais baixa de HTA nos utentes com
sintomas de ansiedade. A associação entre HTA e ansiedade tem sido muito
estudada, com resultados divergentes.25 Neste contexto torna-se importante
referir o estudo de Davies SJ et al, de 2012, que demonstra a presença de uma
associação não linear – curva em U – em que o pânico está associado a tensão
arterial sistólica elevada e os sintomas de ansiedade generalizada a tensão
arterial sistólica mais baixa.26 Sendo assim, fica em aberto a hipótese dos
doentes estudados terem uma perturbação de ansiedade generalizada, embora a
associação encontrada se possa dever apenas a uma casualidade.
Relativamente à associação entre os valores de TSH e a prevalência de ansiedade
verificou-se que, independentemente do género, idade e escolaridade, os utentes
com níveis mais altos de TSH tinham uma probabilidade superior de apresentar
ansiedade. Esta associação29 está descrita na literatura e pensa-se que está
relacionada com alterações envolvendo neurotransmissores, com aumento do número
de receptores de catecolaminas em diferentes áreas do córtex cerebral, com
consequentes implicações no desenvolvimento de perturbação de ansiedade.27-29
Neste sentido, Denicoff et al, em 1990, demonstraram que pacientes submetidos a
tiroidectomia, cujo tratamento de substituição hormonal era interrompido,
desenvolviam sintomas de ansiedade.30 Esta associação poderá revestir-se de
particular importância uma vez que tem consequências na qualidade de vida dos
doentes. Para além disso, o tratamento mais adequado destes doentes com quadros
de ansiedade poderá conduzir à resolução da disfunção tiroideia concomitante.
Neste estudo foi, ainda, demonstrada uma possível associação entre demência e
ansiedade e confirmada a associação entre demência e depressão. A literatura
tem mostrado associação entre demência e depressão, mas a sua relação com
ansiedade não tem sido avaliada. Desta forma, este aspecto representa um dado
novo que poderá ser aprofundado em futuras investigações, para esclarecer a
possível relação existente entre estas entidades clínicas. Estudos anteriores
já tinham levantado a questão sobre qual dos distúrbios (disfunção cognitiva vs
perturbação do humor) surgiria em primeiro lugar. No entanto, está ainda por
esclarecer a relação de causalidade entre estas patologias.14,31
Quando se abordaram os diferentes domínios específicos do MMSE, para avaliar a
sua associação com a prevalência de depressão e/ou ansiedade, verificaram-se
diferenças estatisticamente significativas nos domínios «Orientação temporal» e
«Atenção e cálculo», de acordo com a presença de depressão. Estes resultados
poderão traduzir a necessidade de, na prática diária de um médico de família,
se suspeitar da presença de depressão quando um idoso apresentar queixas
relativas aos referidos domínios ou, alternativamente, poderão significar que,
no contexto de uma depressão em idosos, aquelas serão as tarefas cognitivas
mais afectadas.
Portanto, este estudo não mostrou uma associação entre disfunção tiroideia e
demência, nem entre disfunção tiroideia e depressão. Em parte, tal poderá
dever-se a alguns dos critérios usados na exclusão dos utentes. Isto é, os
critérios «deficiência» e «impossibilidade de os utentes se deslocarem à USF»
podem ter-se verificado mais frequentemente nos utentes que, concomitantemente,
apresentassem as patologias avaliadas neste estudo – défice cognitivo,
ansiedade, depressão, hipotiroidismo e hipertiroidismo.
Assim, neste estudo, os critérios de exclusão aplicados, que resultaram na
exclusão de 46 unidades de observação (17,5% da amostra), constituem uma
limitação metodológica a considerar. Outra limitação importante do estudo
prende-se com o cálculo da dimensão amostral, o qual, ao admitir uma margem de
erro superior às prevalências mínimas dos fenómenos a estudar, resultou num
subdimensionamento amostral que, por sua vez, retirou poder estatístico ao
estudo. Deve considerar-se, ainda, como potencial limitação a não utilização de
testes específicos para avaliação dos diferentes domínios da função cognitiva,
de forma a detectar alterações ainda num estádio muito precoce. No entanto,
trata-se do primeiro estudo a avaliar em Portugal a prevalência de disfunção
tiroideia, tendo usado uma amostra aleatória de idosos da comunidade, com o
doseamento simultâneo de TSH e T4 livre, o que permitiu diagnosticar os
diferentes tipos de disfunção tiroideia existentes, e considerar outros
factores cardiovasculares que poderiam ser potenciais confundidores das
associações em estudo.
A disfunção tiroideia, as alterações do humor e a disfunção cognitiva são
problemas comuns no idoso, por vezes interpretados no contexto do processo
fisiológico do envelhecimento. No entanto, é fundamental considerar a possível
associação da disfunção tiroideia com défice cognitivo e/ou alterações do
humor, uma vez que o tratamento da disfunção tiroideia poderá apresentar
efeitos benéficos a nível da saúde mental e física. Contudo, são necessários
mais estudos, com amostras de maior dimensão e com aplicação de testes mais
sensíveis para o diagnóstico de disfunção cognitiva, ainda numa fase inicial,
de forma a esclarecer estas associações.