Efectividade das infiltrações de corticosteróides nas doenças reumáticas peri-
articulares: uma revisão baseada na evidência
Introdução
Em Portugal as doenças reumáticas têm um elevado peso económico e social e são
causa de 16-23% das consultas em cuidados de saúde primários (CSP).1 Os
sintomas músculo-esqueléticos traduzem, em muitos casos, lesões músculo-
esqueléticas relacionadas com o trabalho (LMERT).2 As LMERT têm uma elevada
prevalência em Portugal, identificando-se factores de risco de natureza
ergonómica (como movimentos repetidos, levantamento e transporte de cargas),
organizacional (como horas ou ritmos de trabalho excessivos) e individual (como
o tabagismo e a obesidade).1,2
As infiltrações músculo-esqueléticas são consideradas importantes adjuvantes na
abordagem da doença articular e peri-articular, nomeadamente das LMERT.3,4
Actualmente, em Portugal, as infiltrações músculo-esqueléticas são
maioritariamente realizadas em cuidados de saúde secundários (CSS) ou em
medicina privada praticada por reumatologistas ou ortopedistas. Não obstante,
vários autores consideram que as técnicas de infiltração músculo-esquelética
poderão ser executadas de forma efectiva pelo médico de família, reconhecendo-
se várias vantagens na realização destas técnicas em cuidados de saúde
primários.3,4
No contexto da implementação do projecto «Terapêutica por infiltração local com
corticosteróides nas doenças reumáticas peri-articulares na USF Marginal», que
teve como objectivo tornar disponível aos utentes esta opção de tratamento, foi
feita uma revisão baseada na evidência sobre efectividade das infiltrações de
corticosteróides em várias doenças reumáticas peri-articulares.
Métodos
Foi realizada uma pesquisa sistemática entre 20 e 25 de Março de 2011, nas
bases de dados Cochrane Library, Best Practice e Essential Evidence Plus,
MEDLINE e Clinical Evidence, de revisões sistemáticas (RS), normas de
orientação clínica (NOC) e ensaios clínicos aleatorizados e controlados (ECA)
não incluídos nas RS, com data de publicação não anterior a 2000, utilizando os
termos MeSH «carpal tunnel syndrome», «tennis elbow», «De Quervain disease»,
«trigger finger», «shoulder pain», «trochanteric», «bursitis», «anserine» e
«corticosteroid injection».
Utilizaram-se os seguintes critérios de elegibilidade: população de doentes com
o diagnóstico de síndroma do túnel cárpico, epicondilite, doença de De
Quervain, dedo em gatilho, ombro doloroso, bursite trocantérica ou bursite
anserina, independentemente dos critérios de diagnóstico utilizados, idade,
género e doenças associadas; intervenção terapêutica com infiltração peri-
articular de corticosteróide (independentemente do corticosteróide, dose,
técnica e associação a anestésico) versus ausência de tratamento, placebo ou
outros tratamentos; resultados orientados para o doente (como alteração dos
sintomas, função, qualidade de vida, satisfação e absentismo laboral); data de
publicação não anterior a 2000.
Para os critérios de elegibilidade foram escolhidas as doenças reumáticas peri-
articulares mais frequentes na população geral e em que a infiltração com
corticosteróide seja utilizada como recurso terapêutico na prática clínica em
Portugal.2
Para cada uma das doenças reumáticas peri-articulares que integram esta revisão
foi feita uma pesquisa sistemática independente por um dos autores, o qual
também foi responsável pela selecção e análise dos resultados obtidos. Os
resumos foram seleccionados tendo em conta os critérios de inclusão, sendo
posteriormente reunidos os artigos em texto integral referentes aos títulos e
resumos seleccionados. Foram excluídos os estudos que não cumpriam os critérios
de elegibilidade ou não acessíveis em texto integral.
Os resultados foram classificados de acordo com a taxonomia Strength of
Recommendation Taxonomy (SORT).5 As NOC foram classificadas de acordo com a sua
metodologia com base na classificação adoptada pelo Centro de Estudos de
Medicina Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina de Lisboa.6
Resultados
Nas sete pesquisas sistemáticas realizadas independentemente para cada doença
reumática peri-articular foram encontrados 515 resultados, dos quais foram
selecionados 44 para leitura.
Destes, foram excluídas duas NOC, por não terem sido acessíveis em texto
integral, dois ensaios clínicos, por não serem claros os processos de
aleatorização e ocultação, e um ECA por não cumprir o critério de elegibilidade
relativo à intervenção terapêutica. Foram, assim, incluídos 39 resultados
(Quadro_I), que correspondem a 36 artigos diferentes (porque três dos artigos
foram resultado em mais do que uma revisão).
Quanto à síndroma do túnel cárpico (STC) (Quadro_II), a infiltração local de
corticosteróide é mais efectiva que o placebo após um mês (Força de
Recomendação (FR) A) e parece promover uma maior melhoria clínica do que os
corticosteróides orais até aos 3 meses (FR A) e do que uma injecção
intramuscular de corticosteróide até 1 mês (FR B).7-12
Embora pareça haver uma tendência de redução ao longo do tempo, não se sabe com
certeza quanto tempo dura o efeito benéfico da infiltração de corticosteróide e
se há possibilidade de conseguir um alívio permanente.8
A revisão da Cochrane Database incluiu dois ECA que compararam a infiltração
local de corticosteróide com a cirurgia no tratamento do STC. Estes estudos
foram classificados como de boa qualidade nos parâmetros alocação, critérios de
diagnóstico e diferenças de base, apresentando limitações na ocultação (não
realizada ou inadequada). Os resultados não favorecem, de forma clara, uma
intervenção sobre a outra,13 o que significa que não se pode concluir através
da evidência actual sobre a efectividade da infiltração local de
corticosteróide versus cirurgia no tratamento do STC, sendo necessários mais
estudos. De salientar que, em termos de complicações do tratamento, estas
poderão ser superiores no grupo da cirurgia comparativamente a tratamentos não
cirúrgicos.13
As normas de orientação clínica incluídas nesta revisão sugerem a opção
infiltração de corticosteróide, antes de considerar a cirurgia, se a doença for
ligeira a moderada.14-17
Em relação à epicondilite (Quadro_III), existe forte evidência de que a
infiltração de corticosteróide é benéfica na redução dos sintomas a curto-
prazo, sendo claramente superior à ausência de tratamento, ao uso de anti-
inflamatórios não esteróides (AINE), a tratamentos de medicina física e de
reabilitação e ao uso de ortóteses (FR A).18-21
No entanto, vários ensaios clínicos de elevada qualidade e consistentes
mostraram reversão dos efeitos com o tempo, sugerindo que a infiltração de
corticosteróide é menos benéfica do que outros tratamentos conservadores a
médio-longo prazo (FR A).18-22
A diferença entre os efeitos demonstrados a curto, médio e longo prazo
contribui para explicar a inconsistência observada nas normas de orientação
clínica.23-25
Na prática clínica, a infiltração de corticosteróide é frequentemente prescrita
em combinação com anti-inflamatórios ou agentes físicos (fisioterapia), embora
ainda não tenham sido demonstradas diferenças de efectividade com estas co-
intervenções. Duas das RS incluídas realçam a necessidade de realizar estudos
de tamanho suficiente para avaliar se os agentes físicos poderão reduzir a
recorrência associada à infiltração de corticosteróide.20,21
Tendo em conta que as tendinopatias têm escassa patogénese inflamatória, a
investigação recente tem estudado a injecção de outras substâncias para além do
corticosteróide. O ECA incluído sobre epicondilite comparou a injecção de
toxina botulínica com a infiltração de corticosteróide e mostrou a
superioridade deste às quatro semanas e ausência de diferenças significativas
às oito e doze semanas. Alguns ECA, de toxina contra placebo, têm mostrado
benefício da toxina mas os resultados não foram consistentes.22
Quanto à efectividade da infiltração de corticosteróide na doença de De
Quervain (Quadro_IV), as duas RS incluídas basearam-se em apenas um ensaio
clínico controlado que comparou infiltração de metilprednisolona com a
utilização de tala em mulheres grávidas e puérperas. Este estudo mostrou uma
superioridade clara da infiltração de corticosteróide (Número Necessário de
Tratar para Benefício (NNT)= 1) mas, sendo um estudo de baixa qualidade (com um
número pequeno de participantes e apenas grávidas ou puérperas, pouco tempo de
duração, limitações metodológicas), a aplicabilidade prática foi considerada
limitada.8,26
Posteriormente, foi publicado um ECA controlado que pretendeu estudar a
efectividade da infiltração de corticosteróide contra placebo na doença de De
Quervain, em CSP. Metodologicamente tratou-se de um ensaio de boa qualidade –
em que os processos de aleatorização, alocação e ocultação, o seguimento, as
características de base e as medições utilizadas foram adequados, apontando-se
como limitação o facto de não ter sido atingido o número planeado de
participantes.27
Este estudo mostrou que uma ou duas infiltrações de acetonido de triancinolona1
10 mg/ml, fornecidas pelo médico de família, causam uma maior melhoria
sintomática do que o placebo (NNT=2). Os doentes que tiveram melhoria com o
corticosteróide foram seguidos num estudo coorte de 12 meses que mostrou
manutenção dos benefícios na maioria dos parâmetros avaliados. Assim, neste
estudo sugere-se que a infiltração de corticosteróide seja utilizada como
tratamento inicial na doença de De Quervain, referenciando-se para cirurgia em
caso de resposta insuficiente ou recorrência.27
As sugestões clínicas apontadas por estes dois ECA são consistentes com a norma
de orientação clínica incluída nesta revisão, que apoia a recomendação de
tratamento conservador inicial, podendo utilizar-se a infiltração com
corticosteróide para além da evicção de movimentos provocadores de dor e a
imobilização com tala como forma de tratar os sintomas da doença de De Quervain
(FR B).28
Em relação ao tratamento do dedo em gatilho no adulto (Quadro_V), a revisão da
Cochrane Database inclui dois ensaios clínicos sobre infiltração de
corticosteróide com lidocaína versus infiltração de lidocaína que, apesar da
baixa qualidade metodológica, têm resultados consistentes no sentido da
efectividade da infiltração de corticosteróide, com efeitos terapêuticos de
dimensão considerável às quatro semanas (NNT=3) e mantidos aos quatro meses.29
As implicações práticas destes resultados são limitadas pela qualidade dos
estudos, pela realização em CSS, pelo limite temporal de quatro meses e pela
inexistência de ECA que comparem directamente a infiltração de corticosteróide
com cirurgia ou tala à data da revisão. Não obstante, sendo uma modalidade de
tratamento fácil de aplicar, com menos custos e menos invasiva que a cirurgia,
os autores consideram que possa ser considerada em primeira linha.29
A segunda revisão sistemática sobre dedo em gatilho incluiu, para além dos dois
ensaios clínicos já referidos, outros dois estudos: um sobre a infiltração de
corticosteróide versus cirurgia de libertação percutânea com a infiltração de
corticosteróide (sucesso terapêutico 47% versus 91%) e um outro sobre
corticosteróide intra-tendinoso versus corticosteróide subcutâneo (sem
diferenças significativas nos resultados). Devido às limitações metodológicas
da revisão os resultados devem ser interpretados cuidadosamente.30
Posteriormente à publicação das duas RS, foi publicado um ECA de boa qualidade,
realizado em CSP, que mostrou efectividade superior da infiltração de
corticosteróide contra placebo (com NNT=4) a curto prazo e manutenção dos
efeitos benéficos durante o período de seguimento de 12 meses, sem efeitos
adversos importantes.31
Assim, pode concluir-se que existe evidência de boa qualidade proveniente de um
ECA (consistente com estudos de baixa qualidade anteriores) de que a
infiltração de corticosteróide é efectiva e aparentemente segura no tratamento
do dedo em gatilho quando comparada com placebo (FR B), sendo proposta como
tratamento de primeira linha.31,32
De notar que um ECA incluído nesta revisão mostrou que a efectividade das
infiltrações parece ser menor na subpopulação dos doentes diabéticos
(principalmente naqueles com manifestações sistémicas), sendo mais provável que
estes necessitem de cirurgia.33
Em relação à efectividade da infiltração de corticosteróide no ombro doloroso
(Quadro_VI), com base nos estudos seleccionados não é possível tirar conclusões
firmes sobre o benefício a curto ou longo prazo da infiltração. Há pouca
evidência para suportar ou refutar a efectividade deste tratamento.34-41
Desconhece-se se a infiltração com corticosteróide é mais efectiva do que os
AINE ou os tratamentos de medicina física e de reabilitação.21,34,36,37
As infiltrações subacromiais com corticosteróide podem ajudar a controlar a
dor, facilitando os tratamentos de medicina física e de reabilitação.41
Na periartrite calcificante a infiltração no ponto subacromial poderá ser
considerada como tratamento de primeira linha.39
A infiltração poderá ser repetida uma a três vezes em intervalos não inferiores
a três semanas.39,40
Em relação à efectividade da infiltração de corticosteróide na bursite
trocantérica (Quadro_VII), foram incluídas apenas duas NOC.41,42 Ambas
consideram que a infiltração com corticosteróide e anestésico é uma opção
terapêutica útil, que apresenta frequentemente bons resultados. Uma das NOC
recomenda a infiltração como tratamento de escolha para a dor trocantérica.41
Quanto à revisão da efectividade da infiltração com corticosteróide na bursite
anserina, nenhum dos artigos obtidos na pesquisa cumpriu os critérios de
elegibilidade. São necessários estudos de boa qualidade metodológica.
Conclusão
Com base nos resultados desta revisão, os autores fazem as seguintes sugestões
de actuação para o tratamento pelo médico de família de utentes com doenças
reumáticas peri-articulares numa unidade de saúde de CSP em que esteja
disponível a opção terapêutica infiltração peri-articular de corticosteróide:
1. No doente com síndroma do túnel cárpico de gravidade ligeira a moderada,
após modificação de actividade, ponderar a infiltração de corticosteróide antes
de referenciar o doente para cirurgia (não é claro se a cirurgia é mais
efectiva do que a infiltração mas é mais provável que a cirurgia cause efeitos
adversos).
2. No doente com epicondilite, ponderar infiltração de corticosteróide se a
sintomatologia for grave e não melhorar após quatro semanas de tratamento
conservador (melhora os sintomas a curto prazo mas os efeitos revertem com o
tempo); se necessário repetir a infiltração algumas semanas após a primeira.
3. No doente com tenossinovite de De Quervain, pode utilizar-se como primeira
linha a infiltração de corticosteróide, para além das alterações de adaptação
ergonómica e do uso de tala.
4. No doente com dedo em gatilho, considerar como primeira linha a terapêutica
com infiltração de corticosteróide; se necessário pode repetir-se a infiltração
após um intervalo de pelo menos quatro semanas.
5. No doente com dor no ombro, ponderar a infiltração de corticosteróide.
Considerar como primeira linha se os sintomas limitam os exercícios de
reabilitação e na bursite cálcica.
6. No doente com bursite trocantérica, propor como tratamento de primeira linha
a infiltração de corticosteróide. Se a primeira infiltração não aliviar a dor,
o tratamento pode ser repetido.
7. Em relação à bursite anserina, há escassa evidência e resultados
discordantes sobre efectividade da infiltração de corticosteróide pelo que se
sugere avaliar caso a caso a relação risco-benefício do procedimento.