Rastreio do cancro da mama: leges artis ou primum non nocere?
CLUBE DE LEITURA
Rastreio do cancro da mama: leges artis ou primum non nocere?
Breast cancer screening: leges artis or primum non nocere?
João Pedro Fallé
Interno de Formação Específica em Medicina Geral e Familiar, USF Lagoa, ULS
Matosinhos
Independent UK Panel on Breast Cancer Screening. The benefits and harms of
breast cancer screening: an independent review. Lancet 2012 Nov 17; 380 (9855):
1778-86.
Introdução
O rastreio do cancro da mama através de mamografia foi implementado em
Inglaterra pelo National Health System Breast Cancer Screening Programme em
1988. Estudos sobre o follow-up das mulheres submetidas a este rastreio
conduziram ao debate sobre os potenciais benefícios do rastreio do cancro da
mama, centrado na redução da mortalidade atribuível ao rastreio, o número de
sobrediagnósticos e a análise dos riscos e benefícios. Os autores deste artigo
fizeram uma revisão dos trabalhos publicados até à data, focando-se nos efeitos
do rastreio do cancro da mama do Reino Unido (mamografia trianual entre os 50 e
os 70 anos de idade) a nível da mortalidade e sobrediagnóstico.
O Efeito do Rastreio na Mortalidade
O objetivo do rastreio é antecipar o momento do diagnóstico de modo a que o
prognóstico possa ser melhorado através de uma intervenção terapêutica precoce.
O diagnóstico precoce leva a um aumento aparente na incidência do cancro da
mama e a um aumento do tempo entre o diagnóstico e a morte. Assim, a medida de
ganho será a redução na mortalidade por cancro da mama em mulheres submetidas a
rastreio por mamografia em relação às não submetidas.
As primeiras conclusões dos autores acerca da mortalidade por cancro da mama
baseiam-se numa revisão sistemática da Cochrane (2011). O risco relativo
global, comparando mulheres rastreadas e não rastreadas, é de 0,80 [Intervalo
de confiança (IC) 95% 0,73 - 0,89], ou seja, a redução de risco relativo da
mortalidade por cancro da mama nas mulheres rastreadas é de 20% (IC 95% 11 -
27).
Em termos de ganho absoluto, uma mulher inicialmente rastreada aos 50 anos de
idade e que o continue a ser até aos 70 anos, não terá qualquer benefício nos
primeiros 5 anos de rastreio, mas a redução na mortalidade irá prolongar-se até
10 anos após o término do mesmo. Em relação à evicção de mortes por cancro da
mama, por cada 235 mulheres rastreadas, 1 morte será evitada.
Sobrediagnóstico
O principal dano do rastreio é, para os autores, o sobrediagnóstico, definido
como a deteção por rastreio de cancros que nunca teriam sido detetados
clinicamente durante o tempo de vida da mulher, sejam eles invasivos ou in
situ, uma vez que ambos são ativamente tratados.
Três importantes ensaios clínicos aleatorizados e controlados concluiram que
11% de todos os cancros detetados por mamografia de rastreio são
sobrediagnóstico e que a probabilidade de uma mulher a quem foi diagnosticado
um cancro representar sobrediagnóstico é de 19%. Aplicando este valor à
incidência cumulativa de cancro da mama atual do Reino Unido (invasivo e in
situ), 1 em cada 77 mulheres rastreadas dos 50 aos 70 anos terão um cancro da
mama sobrediagnosticado.
Os autores defendem que o sobrediagnóstico ocorre e que a consequência deste
sobrediagnóstico são cirurgias, radioterapia e quimioterapia desnecessárias.
Contudo, concluem que é impossível distinguir, à partida, os carcinomas fatais
dos sobrediagnósticos e que são necessários mais estudos que afiram melhor a
percentagem de sobrediagnósticos.
Carcinoma Ductal in Situ
O carcinoma ductal in situ é um tumor maligno dos tecidos epiteliais da mama
mas cujas células não se infiltram para além da membrana basal, ficando
limitado aos ductos de onde surge, pelo que não constitui, por si só, uma
patologia fatal, embora possa ser associado com cancro invasivo. O problema
deste tipo de carcinoma é que é detetado mais frequentemente por via da
mamografia de rastreio do que sintomaticamente (20% vs 5%). Estudos não
demonstram qualquer efeito significativo do carcinoma ductal in situ na
sobrevivência da mulher até 20 anos de follow-up após o diagnóstico. Assim, o
diagnóstico de carcinoma ductal in situpor mamografia de rastreio obriga à
ponderação entre os potenciais ganhos no diagnóstico e tratamento desta lesão
pré-cancerígena invasiva em algumas mulheres e os riscos de tratamento em
outras mulheres de algo que nunca afetaria a sua vida.
Outros danos
Embora de menor grau, os autores entendem que existem outros danos associados
ao rastreio. A dor associada à realização da mamografia é frequente e, nalguns
casos, levará a que as mulheres não tornem a realizá-la. Cerca de 4% das
mulheres submetidas a rastreio são reconvocadas para repetir a mamografia e
possivelmente realizar biópsia. Destas, 1 em cada 5 terá cancro; das restantes,
70% vão necessitar de mais estudos imagiológicos e 30% de biópsia,
procedimentos estes que causam dano psicológico e ansiedade.
Quase a totalidade (99%) das pacientes a quem foi diagnosticado um cancro da
mama por rastreio vai ser submetida a cirurgia, 70% a radioterapia e 25% a
quimioterapia. Todos estes procedimentos acarretam morbilidades reconhecidas
embora tenham uma mortalidade reduzida (<0,15%). A grande questão é para as
mulheres cujo cancro é sobrediagnóstico e para as quais as morbilidades não são
compensadas por nenhum potencial ganho por diminuição da mortalidade.
Conclusões
O rastreio do cancro da mama prolonga a vida. A evidência disponível sugere uma
redução da mortalidade de 20% das mulheres submetidas a programas de rastreio
ao longo de 20 anos, o que corresponde a 1 morte evitada em 235 mulheres
rastreadas. Contudo o sobrediagnóstico existe e não deve ser negligenciado. Por
cada 10 mil mulheres rastreadas aos 50 anos e durante os 20 anos seguintes, 681
cancros serão detetados (129 dos quais sobrediagnóstico) e 43 mortes
prevenidas, ou seja, por cada morte por cancro da mama evitado, 3 cancros
sobrediagnósticos serão identificados e tratados. Todavia, segundo os autores,
o benefício é superior ao dano, embora reconheçam que é necessário aumentar a
especificidade da mamografia para que distinga os carcinomas mamários
potencialmente fatais dos potencialmente «inócuos».
COMENTÁRIO
O objetivo de um programa de rastreio é diminuir a mortalidade por determinada
doença, fundamentado na convicção de que um diagnóstico mais precoce melhora o
prognóstico. Para isso, dois pré-requisitos são fundamentais: o rastreio deve
ser capaz de antecipar o mais possível o diagnóstico de um carcinoma fatal; e o
tratamento precoce destes cancros deve conferir vantagem face ao tratamento
apenas na fase da sua apresentação clínica. Serão estas premissas cumpridas?
O rastreio do cancro da mama em Portugal foi pela primeira vez inserido no
Plano Nacional Oncológico de 1990-19941 e consiste na realização de uma
mamografia bianual a mulheres entre os 50 e os 69 anos de idade. Nos Estados
Unidos da América (EUA), o rastreio do cancro da mama (bianual dos 40 aos 64
anos de idade)2 tem mais de 30 anos e alguns investigadores têm feito a análise
dos resultados obtidos até à data. Um estudo em particular, recentemente
publicado no New England Journal of Medicine,3 concluiu que, nos EUA, a
implementação deste rastreio aumentou muito mais o número de cancros
diagnosticados precocemente (mais 122/100 000 mulheres) do que diminuiu os
casos com diagnóstico tardio (menos 8/100 000 mulheres), o que parece
significar, segundo os autores, que apenas uma pequeníssima parte desses 122
cancros precocemente diagnosticados iriam evoluir para estádios mais avançados.
Neste estudo, a taxa de sobrediagnóstico encontrada foi de 31%. Ainda segundo
estes autores, os dados parecem indicar que a redução da mortalidade por cancro
da mama verificada nos últimos anos se deve mais à evolução dos meios de
terapêutica do que à realização de mamografias de rastreio. Esta conclusão é
apoiada por um estudo,4 baseado nas estatísticas da Organização Mundial de
Saúde a nível europeu, que sugere que o rastreio do cancro da mama não tem uma
responsabilidade direta na redução da mortalidade por cancro da mama observada.
Um outro estudo5 europeu, que analisou 20 anos de follow-up em mulheres
submetidas a programas de rastreio, concluiu que em cada 1 000 mulheres
rastreadas, 67 terão o diagnóstico de cancro da mama (dos quais 6% serão
sobrediagnóstico) e 21 - 23 falecerão (menos 7 do que as que morreriam se não
tivessem sido rastreadas). Das 1 000 mulheres rastreadas, 200 serão
reconvocadas para investigação devido a um falso-positivo, das quais 170 serão
submetidas a procedimentos não invasivos e 30 a invasivos.
O efeito a longo-prazo da radiação decorrente do rastreio ainda não é
conhecido. Mais estudos são necessários para que se perceba a real magnitude
dos benefícios e riscos da mamografia. Contudo, e apesar dos conhecimentos
atuais serem favoráveis à realização do rastreio de cancro da mama por
mamografia, considerando que o benefício é superior ao risco, a mulher deve ser
informada desses mesmos riscos e benefícios, para que a sua decisão de
participar no rastreio seja a mais esclarecida possível.