Complexidade em Medicina Geral e Familiar
EDITORIAL
Complexidade em Medicina Geral e Familiar
Raquel Braga*
*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
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Na sua passagem por Portugal, no 30o Encontro Nacional, em Aveiro, Richard
Roberts, Presidente da WONCA Mundial, fez uma estimulante e inspiradora
conferência de encerramento em que revelou a sua experiência de tomada de
contacto com Médicos de Família de todo o mundo e em todos os contextos.
O fio condutor desta experiência é a coragem, a proximidade, a relação única de
confiança que os médicos desenvolvem com os seus doentes, mesmo em contextos
adversos e desprovidos de recursos materiais e meios técnicos.
O médico generalista que desenvolve o seu trabalho em contexto dos Cuidados de
Saúde Primários (CSP) é muitas vezes a primeira e a única oferta de saúde,
interagindo com toda a diversidade de pessoas, com toda a gama de problemas,
desde os mais simples e mais comuns até aos mais raros e específicos.
Desenvolvendo um trabalho abrangente e relevante, faz uma enorme diferença a
nível individual na saúde das pessoas, o que é quantificável no impacto que
demonstra ter na saúde das populações.1
É revigorante pensar que o que fazemos, a nível da Medicina Geral e Familiar
(MGF), é importante aqui e em todo o mundo, independentemente da forma como o
sistema de saúde de cada país está organizado, quer colocando os CSP no centro,
quer procurando a especialização de cuidados.
Para além da abrangência no tratamento dos problemas, um dos aspectos realçados
nesta conferência foi a complexidade do trabalho que desenvolvemos. Mais do que
uma abordagem meramente emocional, foi feita uma análise quantificada e até de
comparação da complexidade envolvida na consulta de MGF com a complexidade
envolvida nas consultas de outras especialidades médicas.2
É esse aspecto, a complexidade, que vamos dissecar, como forma de entendermos o
valor acrescentado do que fazemos a nível da consulta de MGF. Este assunto foi
estudado nos Estados Unidos da América2 com o objectivo prático de
quantificação, valorização e pagamento dos actos praticados, o que nos permite
falar deste assunto tão subjectivo de forma objectiva e factual.
Temos a percepção de que o nosso trabalho é complexo, que essa complexidade é
mesmo um factor referido de sobrecarga ou burnout.3
Num estudo acerca da forma de lidar com a complexidade, efectuado na década de
90, um quarto dos médicos de família considerou que o espectro de cuidados que
era esperado prestarem era mais alargado do que deveria ser e 30% acreditava
que esta amplitude de cuidados tinha aumentado nos últimos dois anos.4
Acresce que nas últimas três ou quatro décadas a complexidade dos cuidados de
saúde também cresceu, acompanhando a oferta dos serviços de saúde, a evolução
farmacoterapêutica e a diversidade demográfica dos doentes e das populações.
Na maior parte das vezes, no nosso dia-a-dia, ao nível da consulta de MGF,
lidamos com pessoas portadoras de doenças comuns, pouco complexas e com
tratamentos acessíveis e fáceis de manejar. Lidamos também frequentemente com
pessoas com doenças pouco comuns ou graves e limitantes que nos ocupam com o
restante da sua morbilidade e da sua dolência.
Algumas vezes, acompanhamos pessoas portadoras de doenças raras e muito
específicas. No entanto, mais frequentemente lidamos com o desafio da sua
inespecífica apresentação inicial, quando estas apresentam ainda sinais
incipientes e sintomas indiferenciados, muitas vezes vagos e incaracterísticos,
uma vez que, efectuado o diagnóstico ou iniciado o seu estudo, estas são
referenciadas para consultas especializadas, para tratamento e seguimento.
Por vezes há tendência em assumir que os problemas mais diferenciados, aqueles
que normalmente são referenciados ou apresentados em consultas hospitalares são
os que apresentam a maior complexidade.
No polo oposto a estes problemas complexos e bem definidos, encontramos os
Medically Unexplained Physical Symptoms (MUPS),5,6 por vezes indutores de
grande incerteza e fonte de grande complexidade, responsáveis por 20 a 35% dos
motivos de consulta em MGF.6 Estes sintomas físicos que provocam a procura de
cuidados, mas acerca dos quais não se determina a patogénese, após uma
avaliação diagnóstica apropriada, podem incluir causas somáticas, físicas e
ambientais. Apesar de não deverem ser confundidos com somatização ou dolências
psicossomáticas, a diferenciação relativamente a essas entidades não é nítida,
sendo a confusão frequente, quer na literatura médica, quer na prática
clínica.6
Provar, quantificar e demonstrar que o que fazemos diariamente lidando com toda
esta variabilidade de problemas é complexo e difícil, foi o que fizeram David
Katerndahl e colegas2 ao criarem um modelo de quantificação da complexidade das
consultas e comparando essas medições de complexidade em MGF com as das
consultas de outras duas especialidades médicas, a Cardiologia e a Psiquiatria.
Neste modelo é tida em conta a complexidade em cada consulta e ao longo das
consultas, sendo estas medições corrigidas pelo tempo de duração das consultas.
Para medir a complexidade foram consideradas a quantidade de inputs em cada
consulta – quantidade de informação transferida do doente para o médico
(anamnese, exame físico, exames auxiliares de diagnóstico efectuados, dados de
caracterização do paciente) bem como a quantidade de outputs – terapêutica
farmacológica e não farmacológica, incluindo aconselhamento e educação para a
saúde, bem como procedimentos efectuados e recomendações.
A complexidade de cada input output foi definida como a média de inputs/outputs
por encontro clínico, ponderada pela diversidade inter-encontro (gama de
possibilidades usadas) e variabilidade (mudança de temas inter-visitas).
O nível total de complexidade estimado, bem como a complexidade por minuto e
por hora das consultas foi determinado, sendo em todos os casos mais elevado
nas consultas de MGF do que nas consultas de Cardiologia e Psiquiatria, ao
passo que o tempo de duração da consulta era menor em MGF.2
Neste modelo entende-se que a complexidade numa consulta não se restringe à
doença, mas alarga-se à observação da pessoa como um todo, numa perspectiva de
abrangência, continuidade e personalização de cuidados.
Torna-se neste ponto interessante fazer um paralelo entre o nível de
complexidade da Consulta de MGF e o valor acrescentado do contributo dos CSP
para um sistema de saúde e para a saúde individual e das populações.
Esta ideia é analisada por Stange e colegas através do Paradoxo dos Cuidados de
Saúde Primários,7 que consiste na observação de que médicos de cuidados de
saúde primários fornecem cuidados de menor qualidade, no caso de certas doenças
específicas, do que médicos especializados nessas doenças. No entanto, prestam
cuidados de maior qualidade ao nível da pessoa entendida como um todo, melhores
cuidados de saúde gerais, com maior equidade e menos custos e, sobretudo,
prestam melhor qualidade de cuidados a nível da saúde das populações.1,7
Uma das mais importantes reflexões deste Paradoxo7 é a distinção entre doenças
complexas, doentes complexos ou populações complexas. Pessoas com uma única
doença complexa, de apresentação rara e tratamento específico, beneficiam da
abordagem focada de um especialista. Pacientes complexos, com diferentes
comorbilidades obtêm uma melhor resposta da interacção dos níveis de cuidados,
com a intervenção de cuidados especializados selectivamente integrada pelos
cuidados de saúde primários. Populações complexas com diferenças a nível do
estado de saúde, cultura e acesso aos cuidados beneficiam enormemente de um
sistema baseado em cuidados de saúde primários robusto e igualitário. Os
cuidados de saúde em diferentes níveis (doença, doentes e populações) são mais
bem integrados por uma abordagem generalista que prioriza e personaliza
cuidados do que por uma abordagem especializada que (apenas) se detém e
intervém nas particularidades de doenças complexas.7
Entenda-se aqui o termo personalização de cuidados como o complexo conhecimento
da pessoa ao longo do tempo, inserida no seu contexto familiar e comunitário e
não o mero conhecimento fisiopatológico que possibilita as melhores opções
farmacológicas.
Entender este Paradoxo dos Cuidados de Saúde Primários7 passa também por
entender o paradoxo da complexidade em saúde: é entender que a par da
complexidade e especificidade de determinadas doenças raras e graves surge a
complexidade da dificuldade da integração de cuidados, da priorização dos
problemas, da contextualização e personalização de cuidados às pessoas no
continuum saúde, doença aguda, doença crónica, tendo ainda em conta os aspectos
biopsicossociais e a prevenção da doença.
Este valor acrescentado é difícil de medir quando temos em conta apenas
resultados centrados na doença, mas é notório ao nível das pessoas e das
populações. Tudo isto, de que falámos neste editorial, faz da MGF uma
especialidade de valor único dada a sua complexidade, abrangência e proximidade
com as pessoas e com as populações, tornando-se um recurso inestimável na saúde
individual e uma peça fulcral no Serviço Nacional de Saúde português.