Os exames gerais de saúde salvam vidas?
CLUBE DE LEITURA
Os exames gerais de saúde salvam vidas?
Do general health check-ups save lives?
Ana Cristina Moreira*, Joana Santos**, Margarida Moreira***, Margarida Ferreira
da Silva****
Internas em Formação Específica de Medicina Geral e Familiar
*UCSP Oliveira do Douro
**USF Arco do Prado
***USF das Ondas
****USF das Ondas
Krogsbøll LT, Jørgensen KJ, Grønhøj Larsen C, Gøtzsche PC. General health
checks in adults for reducing morbidity and mortality from disease. Cochrane
Database Syst Rev 2012 Oct 17; 10: CD009009.1
Introdução
Os exames gerais de saúde (EGS) são elementos comuns nos cuidados de saúde de
alguns países. Têm o objetivo de detetar doença e fatores de risco (FR) para
reduzirem a morbimortalidade. No entanto, a maioria dos testes comummente
pedidos não foram completamente estudados e levam ao aumento de intervenções
diagnósticas e terapêuticas que podem ser prejudiciais ou benéficas.
Objetivo
Quantificar os benefícios e os prejuízos dos EGS com ênfase nos resultados
relevantes para o paciente como a morbimortalidade.
Métodos
Pesquisa de artigos até julho de 2012 nas seguintes bases de dados: Medline,
EMBASE, Healthstar, Cochrane Library, Cochrane Central Register of Controlled
Trials, CINAHL, EPOC Trials Register, ClinicalTrials.gov e WHO ICTRP,
suplementada por pesquisa das listas de referências dos artigos incluídos e de
citações (Web of Knowledge).
Critérios de Seleção
Incluíram-se ensaios clínicos (EC) randomizados que compararam adultos não
selecionados para doença ou FR, submetidos ou não a EGS, definidos como
rastreio da população geral para mais de uma doença ou FR em mais do que um
sistema orgânico. O EGS teria de ter sido realizado no contexto de Cuidados de
Saúde Primários ou comunidade. Foram excluídos estudos realizados na população
geriátrica.
Recolha e análise de dados
Dois autores extraíram os dados de forma independente, avaliaram o risco de
vieses dos EC e contactaram autores para resultados adicionais. Analisaram os
resultados de mortalidade total e por doença específica através de meta-análise
– modelo de efeitos aleatórios – e para os outcomes secundários efetuaram uma
síntese qualitativa, dado a meta-análise não ser praticável.
Resultados
Foram identificados 16 EC e incluídos 14 destes (182 880 participantes), com
follow-up entre um e 22 anos. Nove EC providenciaram dados totais de
mortalidade (155 899 participantes, 11 940 mortes), mediana de tempo de
seguimento de nove anos e risco relativo (RR) de 0,99 (intervalo de confiança –
IC de 95% de 0,95 a 1,03). Oito EC referiram dados de mortalidade
cardiovascular (152 435 participantes, 4 567 mortes), RR de 1,03 (IC 95% de
0,91 a 1,17) e de mortalidade por cancro (139 290 participantes, 3 663 mortes),
RR de 1,01 (IC 95% de 0,92 a 1,12). A análise de subgrupo e de sensibilidade
não alterou estes achados. Na revisão sistemática não foi evidenciado efeito
nos eventos clínicos ou outras medidas de morbilidade, mas um EC demonstrou um
aumento de hipertensão e de hipercolesterolémia com o EGS e outro demonstrou um
aumento de doença crónica auto-reportada. Um EC registou aumento de 20% no
número total de novos diagnósticos por participante durante seis anos,
comparativamente ao controlo. Nenhum ensaio comparou o número total de
prescrições, mas dois de quatro demonstraram um número aumentado de pessoas
medicadas com antihipertensores. Dois de quatro EC demonstraram efeitos
benéficos ligeiros na saúde auto-reportada, que poderá ser devido a viés de
informação (EC sem ocultação). Não foi evidenciado efeito na admissão
hospitalar, incapacidade, preocupação, visitas médicas adicionais ou ausência
do trabalho, mas a maioria destes resultados foram pouco estudados. Não
encontraram resultados úteis no número de referenciações a especialidades
hospitalares, de testes de seguimento após um resultado inicial positivo ou de
cirurgias efetuadas.
Conclusão
Os EGS não reduziram a morbimortalidade global, cardiovascular ou oncológica,
apesar do aumento de novos diagnósticos. Resultados prejudiciais importantes,
como o número de procedimentos diagnósticos de seguimento ou efeitos
psicológicos a curto prazo, não foram estudados ou reportados e muitos ensaios
apresentaram problemas metodológicos. Considerando o grande número de
participantes e mortes incluídas, o período longo de seguimento e a não redução
da mortalidade cardiovascular e por cancro, os EGS provavelmente não serão
benéficos.
COMENTÁRIO
Desde meados do século XX, os avanços tecnológicos da medicina moderna e a
maior atenção para os cuidados preventivos levaram ao aumento do rastreio de
doença/FR em indivíduos aparentemente saudáveis – constituindo os denominados
EGS, também conhecidos como exames médicos periódicos ou de rotina.
Por outro lado, a formação médica académica está, muitas vezes, vocacionada
para o tratamento de doenças, a procura da «cura». Assim como cada vez mais a
população se interessa por não contrair uma doença ou detetar a doença
precocemente, daí que procure a realização de exames para esse fim.
Historicamente, o conceito dos EGS evoluiu desde a sua origem, motivado
sobretudo pela necessidade de estratificação de risco dos doentes pelas
companhias de seguros e pelo requisito necessário para ingressar em
determinadas profissões,2 para uma conceção mais recente, em que estes exames
têm como objetivo identificar fatores de risco previamente desconhecidos ou
sinais precoces de doença, de forma a intervir atempada e eficazmente.3 Na sua
essência têm lugar nos Cuidados de Saúde Primários, porém veem a sua utilização
cada vez menos fundamentada, à medida que a análise dos seus resultados tem
vindo a demonstrar uma relação custo-benefício desvantajosa em adultos
assintomáticos.4
Ainda que amplamente praticados, não estão universalmente definidos ou aceites
– diferentes periodicidades e amplo espectro de exames diagnósticos, desde o
exame clínico ao pedido de procedimentos invasivos. É também, importante ter em
conta as suas consequências não intencionais, incluindo o sobrediagnóstico, o
continuum investigacional e os riscos associados (ansiedade, ausência laboral,
aumento dos custos de saúde).
Neste seguimento, a revisão sistemática e meta-análise de Krogsbøll e
colaboradores1,5 tenta avaliar os benefícios e prejuízos do EGS em adultos
assintomáticos, não selecionados para FR/doença. Os autores não encontraram
evidência destes na diminuição da mortalidade total, cardiovascular ou por
cancro (em nove EC), podendo mesmo aumentar o sobrediagnóstico, o
sobretratamento e a autoperceção de doença.
No entanto, e apesar dos resultados não serem totalmente surpreendentes, indo
de encontro a diversas recomendações nacionais e internacionais6-13 e de
tratar-se de uma revisão realizada de acordo com os padrões metodológicos
exigentes da Cochrane Collaboration, apresenta algumas limitações que podem pôr
em causa a validade dos resultados e conclusões obtidas.
Primeiro, o ano médio dos estudos incluídos é de 1976 (variando entre 1963 e
1999), altura em que as práticas da medicina diferiam das atuais, nomeadamente
os exames em questão, os limiares de diagnóstico e os tratamentos instituídos
perante a deteção da doença, tornando-se difícil extrapolar estes resultados
para os dias de hoje. Como exemplo, alguns dos testes atualmente preconizados
não foram avaliados na maioria dos estudos, nomeadamente o rastreio dos hábitos
tabágicos, da diabetes e dos cancros colorretal e da mama. Por outro lado, foi
considerado como rastreio oncológico a telerradiografia do tórax, atualmente
não utilizada para este efeito.
Segundo, ao excluírem os ECs randomizados dirigidos a uma doença/FR, os autores
excluíram a melhor evidência individualizada e focaram-se na análise combinada
de séries de exames, independentemente das diferenças metodológicas dos estudos
selecionados. Assim, isto não significa que a realização de exames periódicos
seletivos, de acordo com a medicina baseada na evidência, deixa de ter
interesse. Aliás, os estudos mais recentes demonstram benefício na deteção de
hipercolesterolémia em homens com idade superior a 35 anos e em mulheres com
idade superior a 45 anos7-9,12, na medição da pressão arterial com uma
periodicidade dependente do valor tensional obtido7-9,11 e nos rastreios dos
cancros colorretal7-10, do colo do útero7-10 (forças de recomendação – A) e da
mama7-9,13 (força de recomendação B).
Terceiro, apesar dos testes estatísticos não demonstrarem heterogeneidade dos
estudos incluídos na meta-análise, parece, pela análise da tabelas dos testes
praticados, verificar-se o oposto. Por exemplo, oito dos 14 estudos não
incluíram o exame clínico e quatro a história clínica; apenas cinco estudos
realizaram algum tipo de rastreio oncológico e sete não rastrearam a diabetes.
Quarto, a exclusão de EC dirigidos a indivíduos idosos resultou numa população
estudada relativamente jovem. Além disso, a média de anos de seguimento foi de
7,2 anos no total e de 10,7 anos (entre 4 e 22 anos) nos estudos utilizados
para análise de mortalidade, constituindo um seguimento relativamente curto.
Consequentemente, e dado que os FR incluídos de forma consistente foram a
pressão arterial, o colesterol, a altura e o peso, considerados atualmente como
FR a longo prazo6, a interpretação dos resultados de morbimortalidade deveria
ser contextualizada a curto prazo.
Quinto, os diferentes grupos de intervenção, ao serem constituídos pela
autosseleção individual em participar no estudo, levanta o viés de adesão/
seleção, porque aqueles que aderem, ao demonstrarem interesse pela saúde, têm
um melhor prognóstico independentemente do rastreio instituído, limitando,
assim, a validade externa do estudo. Além disso, existiu um número importante
de perdas no follow-up, podendo ter ocorrido o viés de perda de seguimento. Os
utentes que procuram o EGS são muitas vezes diferentes daqueles que não o
fazem: pertencem a uma classe social mais elevada, têm menor risco e
morbilidade cardiovascular, entre outros,14 daí que este seja um exemplo
insofismável da Lei de Cuidados Inversos e das iniquidades no acesso aos
Cuidados de Saúde.
Concluindo, a revisão em análise é bastante pertinente ao tentar responder a
uma questão amplamente debatida. No entanto, ao descrever abordagens antigas,
os seus resultados devem ser cautelosamente interpretados, não sendo
impeditivos da aplicação de rastreios dirigidos ou da implementação de
atividades preventivas, que podem mesmo ter contribuído para a ausência de
benefício dos EGS observada. Também não implicam que os componentes dos EGS
considerados individualmente sejam ineficazes. É importante desmistificar o uso
de exames de diagnóstico não criterioso, uma vez que já foi demonstrado que uma
percentagem significativa dos utentes atribui superioridade à utilização de
exames relativamente aos médicos que guiam as suas recomendações pela anamnese
e exame físico realizados durante a consulta.15-16
A Medicina Contemporânea, baseada na evidência, tende a substituir os exames
gerais de saúde por medidas mais custo-efetivas, como o exame de saúde
periódico seletivo, orientado para as caraterísticas especificas do indivíduo.
Ensaios mais recentes são necessários para avaliar a importância dos EGS
sistemáticos, desafiando ideias enraizadas sobre o valor destes exames, quer em
doentes, quer em médicos, não baseadas na evidência e que prevaleceram durante
décadas.17 Até lá reforça-se a importância de adaptar individualmente as
atividades de prevenção e rastreio e discutir com o doente, de forma
personalizada, as opções disponíveis, tal como é preconizado nas recomendações
emanadas pela United States Preventive Services Task Force18 e pela Canadian
Task Force on Preventive Health Care.