Tuberculose Infantil: a importância do rastreio
Introdução
A Tuberculose (TB) é uma infecção de transmissão aérea e um problema major de
saúde pública. Todos os anos surgem cerca de 9 milhões de novos casos e ocorrem
perto de 2 milhões de mortes.1 Embora todos os países sejam afectados, a
maioria dos casos ocorre em África (30%) e na Ásia (55%).1,2
A incidência mundial da doença na infância é variável, compreendendo
percentagens que variam entre os 3 e mais de 25%.3,4
Estes números levaram a Organização Mundial de Saúde a criar «The Global Plan
to Stop TB 2006-2015» que tem como objectivos diminuir a incidência de TB até
2015, diminuir a prevalência e mortalidade para metade relativamente às taxas
do ano de 1990 e detectar e tratar pelo menos 70% dos novos casos bacilíferos.1
Em Portugal, na última década do século XX, verificou-se uma diminuição
progressiva da incidência de TB no grupo etário inferior a 15 anos,3,5 sendo
que em 2001 registaram-se taxas nacionais de incidência de TB na ordem dos 8,3/
100 000 na faixa etária 0-4 anos e de 5,6/100 000 na faixa etária dos 5-14
anos.3
A TB geralmente atinge as crianças através do contacto com doentes bacilíferos,
sendo por isso considerada um excelente indicador sentinela, contribuindo para
aferir o nível de TB na comunidade e a eficácia das medidas de controlo
epidemiológico adoptadas.3 Na infância o diagnóstico de infecção por
Mycobacterium tuberculosis (Mt) é indicativo de uma transmissão recente,
traduzindo uma falência do sistema de saúde pública.3
O controlo da TB em crianças tem sido frequentemente descurado uma vez que
estas não são, regra geral, bacilíferas e por isso muitas vezes não são
contempladas na execução dos programas de controlo da doença.2 No entanto, o
rastreio na idade pediátrica assume elevada importância, uma vez que as
crianças constituem possíveis reservatórios da doença no futuro, existindo
ainda morbilidade e mortalidade associadas à TB na infância.2
A TB na idade pediátrica é um desafio diagnóstico porque apresenta
características muito particulares no que respeita à grande variabilidade
clínica (ou ausência da mesma) e por ter períodos de incubação variáveis.2,3
Outro aspecto, já referido anteriormente, relaciona-se com o facto das crianças
com TB serem geralmente paucibacilares, havendo dificuldade na obtenção de
amostras adequadas para bacteriologia. Assim, a confirmação do diagnóstico
baseada na identificação do agente responsável nem sempre é possível.3,6
A sensibilização de todos os clínicos para a TB em idade pediátrica é
fundamental, uma vez que esta é evitável e, na grande maioria dos casos, tem
evolução favorável para a cura, com taxas de sucesso entre 95-100%.2
Descrição do Caso
Os autores apresentam o caso clínico de uma criança do sexo feminino, de 2 anos
de idade, natural e residente no distrito de Beja, que foi referenciada do
Centro de Saúde para o Serviço de Urgência (SU) do Hospital de Beja com
suspeita de Pneumonia.
Tratava-se de uma primeira e única filha de um casal saudável, não
consanguíneo, com gestação vigiada, sem intercorrências, e com serologias do
3.o trimestre (HIV 1/2, VDRL, VHB) negativas. O parto foi de termo, no Hospital
de Beja, distócico (cesariana por incompatibilidade feto-pélvica), verificando-
se peso adequado à idade gestacional e choro imediato. Ao nascimento foi
detectada sindactilia do 2.o e 3.o dedos dos pés (aguardava correcção
cirúrgica). Tinha cumprido o Plano Nacional de Vacinação, sem vacinas extra-
plano.
A família pertencia à Classe Social IV de Graffar, sendo os co-habitantes da
criança os pais, avós e um tio maternos, todos com antecedentes irrelevantes.
Referência a um tio-avô materno com diagnóstico recente de Tuberculose Pulmonar
em fase contagiosa (bacilífero), com contacto diário com a família (não co-
habitava mas faziam as principais refeições em conjunto). Apesar deste último
familiar ter uma tosse persistente, a suspeita diagnóstica surgiu aquando da
realização de uma radiografia de tórax pré-operatória que evidenciou alterações
sugestivas de TB Pulmonar. No estudo subsequente realizou colheita de
expectoração para exame directo e cultural. A identificação do Mt foi obtida no
exame directo com a técnica de Ziehl-Neelsen, tendo iniciado terapêutica ainda
a aguardar as culturas e teste de susceptibilidade.
Posteriormente realizou-se o rastreio aos seus contactos próximos, todos eles
assintomáticos. Na sequência deste rastreio, foi efectuada à criança
apresentada uma Prova de Mantoux e uma radiografia de tórax, que mostrou uma
condensação no lobo médio à direita, sem imagem de adenopatias mediastínicas
(Figura_1). Perante a evidência radiológica de pneumonia lobar, na ausência de
clínica sugestiva (apirética, sem sintomatologia das vias respiratórias
inferiores) mas com diagnóstico recente de otite média aguda bilateral medicada
há 48 h com cefixima (8 mg/kg 2 id), é enviada ao Hospital de Beja para
esclarecimento.
Na admissão apresentava um bom estado de nutrição e hidratação, apirexia, sem
sinais de dificuldade respiratória, boa saturação de oxigénio transcutânea em
ar ambiente, com rinorreia anterior mucosa escassa, hiperémia da orofaringe e
hiperémia timpânica bilateral. A auscultação pulmonar era assimétrica, com
ligeira diminuição do murmúrio vesicular no hemitórax direito, e com fervores
crepitantes ipsilaterais. Não apresentava adenopatias palpáveis e o restante
exame objectivo não tinha alterações.
Analiticamente, hemoglobina 12,9 g/dL, leucócitos 11,94x10*9/L, com 28,5% de
neutrófilos e 64,1% de linfócitos, função hepática e renal sem alterações e
Proteína C Reactiva 4,7 mg/dL. Foi também realizada hemocultura que ficou em
curso.
Foram colocadas como hipóteses de diagnóstico Tuberculose Pulmonar e/ou
Pneumonia Adquirida na Comunidade (PAC) e decidiu-se pelo seu internamento para
esclarecimento. Iniciou antibioterapia com ampicilina (150 mg/kg/dia), via
endovenosa, para cobertura dos agentes mais frequentemente implicados na PAC e
realizou colheita de conteúdo gástrico, em 3 dias consecutivos, para pesquisa
do Mt. O exame directo foi negativo, ficando a cultura e teste de
susceptibilidade aos antibacilares em curso. A Prova de Mantoux foi positiva,
com induração de 14 mm às 72 h.
Perante a história de contacto com doente bacilífero, positividade da Prova de
Mantoux e radiografia de tórax com imagem de condensação, foi feito o
diagnóstico provável de TB Pulmonar Doença,2,6 pelo que suspendeu ampicilina e
iniciou terapêutica com isoniazida (INH) 15 mg/kg/dia, rifampicina (RMP) 15 mg/
kg/dia e pirazinamida (PZA) 20 mg/kg/dia, esquema de 2 meses, mantendo a INH e
RMP por mais 4 meses, nas mesmas doses.6 A cultura do aspirado do conteúdo
gástrico e a hemocultura foram posteriormente negativas.
Aos restantes contactos (todos eles assintomáticos) foi também realizado
rastreio com Prova de Mantoux e radiografia de tórax. Os pais, avô e tio
maternos da criança tiveram Prova de Mantoux positiva, todos eles sem
alterações nas radiografias de tórax, pelo que realizaram Interferon-Gamma
Release Assays (IGRA) e pesquisa de bacilo de Koch nas secreções brônquicas. A
pesquisa de Mt foi negativa no exame directo e cultural mas o IGRA foi positivo
em todos, pelo que iniciaram terapêutica para TB Infecção/Latente. A avó
materna teve rastreio negativo ficando com vigilância periódica.
Posteriormente a cultura do caso índice veio positiva para Mt multissensível
(sensibilidade confirmada para INH, RMP, PZA, etambutol e estreptomicina).
Comentário
Este caso mostra a importância da prevenção secundária (rastreio) em
conviventes ou contactos próximos de doentes diagnosticados com TB, em especial
se bacilíferos, tendo sido identificados vários casos passíveis de tratamento
antes de desenvolverem doença.
A TB mantém-se como um problema de saúde pública a nível mundial, atingindo
todas as faixas etárias. O diagnóstico precoce e isolamento são essenciais para
evitar epidemias (ou mesmo pandemias).5 Apesar do número de casos ter vindo a
diminuir nas últimas décadas, Portugal mantém uma das taxas mais elevadas de TB
da União Europeia.5 Na tuberculose infantil, a forma mais comum é a pulmonar e,
das formas extrapulmonares, são mais frequentes a linfoadenopatia tuberculosa e
a meningite tuberculosa.2
Em Pediatria a prática mais frequente é a suspeita diagnóstica, uma vez que as
lesões são geralmente paucibacilares, o que condiciona grande dificuldade na
obtenção de amostras adequadas para bacteriologia.6 Por isso, o diagnóstico
baseia-se fundamentalmente no contacto com o doente bacilífero, na presença de
clínica sugestiva, na positividade da prova tuberculínica e na identificação do
Mt.6 Assim, o diagnóstico de tuberculose será suspeito se houve contacto de
risco com doente com tuberculose activa, associado a alterações do estado
geral, emagrecimento ou tosse persistente, pneumonia persistente/recorrente,
sem resposta ao tratamento antibiótico ou presença de adenomegalias indolores.6
Será provável se Prova de Mantoux positiva, radiografia sugestiva, histologia
sugestiva e/ou resposta favorável ao tratamento antituberculoso. E confirmado
se identificação do Mt.6 Exames complementares de diagnóstico invasivos, como a
broncofibroscopia, não têm geralmente interesse no diagnóstico de TB em
crianças pequenas, pelo facto das lesões serem paucibacilares.
No caso apresentado, o diagnóstico de TB Doença foi provável, uma vez que havia
contacto de risco, Prova de Mantoux positiva e alterações radiológicas
sugestivas.2,6,7
A utilização do IGRA pode ajudar a distinguir TB infecção (Mantoux+ e IGRA+) de
reacção cruzada (Mantoux+ e IGRA-),2,8,9 associando a elevada sensibilidade da
Prova de Mantoux com a maior especificidade do IGRA,8 sendo que nenhum dos dois
testes consegue distinguir entre TB Infecção/Latente e TB Doença.10 Portanto,
em Pediatria o IGRA não oferece vantagem substancial relativamente à Prova de
Mantoux no que respeita à sensibilidade, no entanto pode ser importante na
distinção de Prova de Mantoux falsamente positiva.9 Apesar da evidência ser
ainda limitada, os estudos apontam para que o valor predictivo do IGRA seja
semelhante ao da Prova de Mantoux.9 Outra das limitações deste teste é o
resultado ser indeterminado, especialmente em crianças pequenas ou
imunocomprometidas.9 De referir ainda que, segundo a American Academy of
Pediatrics, a sensibilidade do teste IGRA em crianças abaixo dos dois anos de
idade necessita de mais estudos prospectivos a longo prazo para avaliar da sua
eficácia.10
No que respeita ao agente, o bacilo de Koch tem a particularidade de ter um
crescimento muito lento em meio de cultura (6 a 8 semanas em meio de
Lowenstein-Jensen e 2 a 3 semanas em meio líquido) e, sendo a tuberculose
infantil paucibacilar, apenas 30 a 40% das crianças com TB pulmonar têm
culturas positivas, o que explica que a cultura do conteúdo gástrico tenha sido
negativa. No que se refere ao exame directo (com Ziehl-Neelsen), a positividade
em amostras de crianças pequenas é inferior a 20%, mesmo naquelas com
diagnóstico provável de TB.9 Relativamente à colheita de material para exame
directo/cultural, uma alternativa à aspiração de suco gástrico em 3 dias
consecutivos é a indução da expectoração com nebulização de soro hipertónico
(3%-5%), técnica que tem sido usada de modo seguro e eficaz em crianças
pequenas.9 A cultura de uma única amostra de expectoração mostra resultados
equivalentes a 3 colheitas de conteúdo gástrico.9
No caso descrito a criança era imunocompetente, com Prova de Mantoux positiva,
tendo um bom estado geral de nutrição. No entanto, até 10-15% das crianças com
diagnóstico confirmado de TB podem ter inicialmente Provas de Mantoux
negativas.9 Factores relacionados com o hospedeiro, tais como idade (crianças
pequenas), desnutrição, imunossupressão, outras infecções virais (sarampo,
varicela, influenza), infecção recente ou TB disseminada podem diminuir a
reactividade da Prova de Mantoux.9
No que respeita a outros exames complementares de diagnóstico, podem ter
interesse particularmente em adolescentes, porque a doença com cavitação (rara
em crianças mais jovens) tem sido observada nesta faixa etária.9 Nestes, a
tomografia computorizada (TC) pode contribuir para o diagnóstico de TB pulmonar
ao evidenciar alterações pulmonares na sua fase inicial, tais como a presença
de cavitações ou linfadenopatia hilar intra-torácica.9 Nas formas de TB
meníngea ou no caso de tuberculomas, a TC crânio-encefálica assume um papel
importante no diagnóstico.9 O uso da ressonância magnética tem particular
interesse no caso da TB musculo-esquelética, particularmente quando envolve
ossos e articulações.9
No caso clínico descrito, após o término do esquema terapêutico realizou-se uma
radiografia de toráx de controlo que se mostrou completamente normal.
Devido à dificuldade na obtenção de amostras para bacteriologia, associada ao
facto das crianças serem paucibacilares e terem uma apresentação clínica muito
inespecífica, o diagnóstico torna-se um desafio para o clínico, sendo
necessário um grande índice de suspeição para diagnosticar e consequentemente
tratar a TB em idade pediátrica.
A TB tem vindo a atravessar séculos e avanços científico-médicos; no entanto,
tratando adequadamente a TB em idade pediátrica pode-se contribuir para
alterar, a longo prazo, o curso desta doença.