Prevalência e impacto da incontinência urinária na qualidade de vida da mulher
Introdução
A definição de incontinência urinária (IU) como qualquer perda involuntária de
urina (no último ano ou mês) foi introduzida pela Internacional Continence
Society, com o intuito de uniformizar os estudos epidemiológicos, atendendo a
que até então o conceito de IU era variável e dependente das diferentes
culturas, países, estilos de vida, género e idade.1,2
A IU é mais frequente em mulheres que em homens e aumenta com a idade e a sua
prevalência na população feminina, de acordo com os diversos estudos
existentes, é muito variável (5-69%).3,4,5 Essa variabilidade ocorre devido à
escolha da amostra, em função da idade, género, nível cultural, gravidade da
doença, tipo de IU e sua baixa notificação.
Segundo alguns investigadores, a IU constitui um problema de saúde que pode ter
repercussões físicas, socioeconómicas e psicológicas consideráveis.5-9
Assim, nos últimos anos, tem havido um crescente desenvolvimento de estudos que
se baseiam, não apenas nos sintomas da IU, mas essencialmente, na sua
interferência na qualidade de vida (QdV) das mulheres.7 De modo a determinar
esse impacto, foram desenvolvidos vários instrumentos de avaliação de QdV em
mulheres com IU.7,10,11 Tanto quanto os investigadores sabem, a nível nacional,
não existe ainda nenhum estudo sobre o impacto da QV em mulheres, que conste em
alguma publicação indexada.
Apesar do impacto da IU na vida das mulheres ser substancial, assim como a
sobrecarga económica imposta à sociedade, continua a ser um problema pouco
reconhecido e tratado.12,13 Por um lado, a maioria das doentes não procura
ajuda médica por vergonha, medo da cirurgia, pela ideia errónea de que se trata
de um problema intratável e é uma inevitável consequência do envelhecimento ou
da história de partos vaginais prévios ou pela ideia que a IU pode precipitar a
sua institucionalização.5,9,11
Por outro lado, os próprios profissionais de saúde contribuem de igual forma
para o subdiagnóstico e subtratamento. De facto, a Organização Mundial de Saúde
chamou à IU "o derradeiro tabu médico". Os fatores que contribuem
para isto são: medo de invasão da privacidade e dignidade da paciente, ao
questionar esta problemática; défice de formação e informação acerca do
diagnóstico e tratamentos disponíveis; falsa premissa de que os tratamentos são
fúteis e dependentes de fatores psicológicos da própria utente; receio dos
efeitos laterais das opções terapêuticas; IU encarada como uma consequência
inevitável da idade.6,9
Este trabalho de investigação tem como objetivos primários: avaliar, numa
população portuguesa essencialmente urbana de mulheres com idade superior a 40
anos, a prevalência da IU e o seu impacto na QdV; como objetivos secundários,
os autores pretendem correlacionar o impacto da IU na QdV com fatores
sociodemográficos, com o tipo de IU, com a referência da IU como problema de
saúde ao médico de família (MF) e com o estabelecimento de orientação para o
tratamento da IU.
Métodos
Trata-se de um estudo observacional, transversal e analítico que decorreu entre
julho de 2011 e setembro de 2012, nos locais de trabalho dos seus
investigadores: Unidade de Saúde Familiar (USF) Camélias e Nova Salus
[Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) Grande Porto VII], USF Famílias (ACeS
Entre Douro e Vouga I) e USF Calâmbriga e Vale do Vouga (ACeS Entre Douro e
Vouga II).
A população do estudo incluiu mulheres com idade igual ou superior a 40 anos,
inscritas e com MF nas USF que constituem local de trabalho dos investigadores.
Os critérios de exclusão considerados pelos autores são: ausência de contacto
telefónico válido no sistema informático SINUS; doenças neuropsiquiátricas que
comprometam a capacidade cognitiva, codificadas no sistema informático SAM, de
acordo com a ICPC-2 (International Classification of Primary Care) - códigos:
P70 (Demência); P71 (Psicose orgânica); P72 (Esquizofrenia); P98 (Psicose não
especificada); P99 (Perturbação psicológica, outra); N80 (Lesão craniana); N85
(Malformação congénita neurológica); institucionalizadas, internadas ou
acamadas aquando do momento da seleção; algaliadas cronicamente; grávidas, no
momento da seleção ou no ano anterior; emigradas; falecidas ou que não falassem
ou entendessem a língua portuguesa.
O tamanho amostral foi determinado através do programa Epi InfoTM 3.5.2,
considerando-se uma prevalência de IU esperada de 30%, com um nível de precisão
de 5%, um intervalo de confiança de 95% e uma taxa de não resposta de 30%. A
prevalência de IU esperada foi baseada num estudo de prevalência realizado em
Portugal a nível dos Cuidados de Saúde Primários (CSP).24 Assim, para uma
população de 18.968, foi obtida uma amostra de 1.918 mulheres.
Para a seleção da amostra recorreu-se a uma técnica de amostragem aleatorizada
de forma simples sem reposição através do programa informático RANDOM.ORG®,
disponível no sítio de internet http://www.random.org.
Após seleção, todas as utentes foram contactadas telefonicamente e, após uma
breve apresentação e contextualização, foi colocada a seguinte questão:
"A senhora teve alguma perda involuntária de urina (ou seja, sem o seu
controlo), no último mês?". Em caso de resposta afirmativa, a mulher foi
convidada a se deslocar à sua USF, onde posteriormente assinou o consentimento
informado e onde lhe foi aplicado um questionário, presencialmente. O processo
de seleção da amostragem encontra-se discriminado na Figura_1.
A definição e classificação da IU adotadas foram as mesmas descritas pela
International Continence Society, em que a IU equivale a "qualquer perda
involuntária de urina, no último mês". Assim foi considerado pelos
autores este limite de um mês para uma maior objetivação temporal.1 Enquanto, a
IU de esforço correspondia aos casos com resposta afirmativa à questão "A
perda de urina aconteceu sem vontade de urinar e quando fazia algum esforço,
como por exemplo caminhar, tossir, rir, fazer a cama?", perante uma IU de
urgência/imperiosidade foi dada uma resposta afirmativa à pergunta "A
perda de urina aconteceu quando teve vontade repentina de urinar?" e nos
casos de IU mista foi dada resposta afirmativa a ambas as premissas
anteriores.14
As variáveis independentes estudadas foram: idade, escolaridade, estado civil,
índice de massa corporal (IMC), paridade, tipo e tempo de IU e abordagem da IU
com e pelo MF.
A referência da IU ao MF como um problema de saúde correspondia à resposta à
pergunta "Alguma vez falou com o seu médico de família sobre a perda de
urina?", enquanto o estabelecimento de orientação para o tratamento da IU
dizia respeito à perceção do doente de ter recebido de alguma orientação
específica para o tratamento, incluindo: exercícios do pavimento pélvico,
tratamento farmacológico, referenciação a consulta de especialidade ou
referenciação a tratamento de fisioterapia.
A variável dependente estudada, o impacto da IU na QdV, foi obtida através do
questionário CONTILIFE©, Questionnaire d'évaluation de la Qualité de Vie liée à
l'incontinence urinaire de la femme.15 Este foi construído com a finalidade de
avaliar o impacto da IU na QdV das mulheres e permite a sua quantificação tendo
em conta 6 dimensões distintas: atividades quotidianas, situações de esforço,
autoimagem, impacto emocional, sexualidade e qualidade de vida em geral. É um
instrumento adaptado e validado para a população portuguesa e consiste em 28
itens, com uma escala de Likert de cinco ou seis pontos.15 Para cada questão
existem cinco ou seis opções de respostas possíveis, que nalguns itens se
relacionam com indicadores de frequência (nunca, raramente, por vezes,
frequentemente e sempre) e noutros com indicadores de intensidade (não, pouco,
moderadamente, muito e muitíssimo). A análise dos dados foi efetuada calculando
um score por dimensão e um score global, de acordo com as normas do respetivo
questionário. O score obtido é diretamente proporcional à QdV.15
Assim, o questionário aplicado (anexo_I) consistiu numa primeira parte efetuada
pelos autores com o objetivo de colher as variáveis já descritas e numa segunda
parte constituída pelo CONTILIFE©.
A análise estatística descritiva e inferencial foi realizada pelo programa SPSS
20.0®, onde se determinou a normalidade da distribuição da amostra pelo teste
Kolmogorov-Smirnov e a homogeneidade de variâncias pelo teste de Levene.
Perante uma distribuição normal dos dados, os testes paramétricos usados foram
o coeficiente de correlação de Pearson para estudo da associação linear entre
variáveis e o teste t Student para comparação de média entre dois grupos. O
método não paramétrico utilizado foi o de Spearman. Adotou-se um nível de
significância para um p ≤ 0,05.
O protocolo deste trabalho foi aprovado pelos ACeS envolvidos e pela Comissão
de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde do Norte (Parecer nº
11/2012, de 3 de julho de 2012).
Resultados
Da amostra de 1.918 mulheres, 587 foram excluídas por aplicação dos respetivos
critérios e 40 recusaram participar quando foram contactadas por telefone (taxa
de resposta de 97%). Das 1.291 que concordaram participar, 301 afirmaram terem
tido pelo menos uma perda de urina involuntária no último mês, sendo a
prevalência de IU nas mulheres inquiridas de 23,3% (95% IC 22,6-24,0%). Destas
301 mulheres com IU, 88 (29,2%) não compareceram na unidade funcional para
responder ao questionário na data prevista, concluindo o estudo 213 mulheres
com IU (Figura_1).
A idade média das mulheres com IU inquiridas foi de 59,6 (DP ± 1,60) anos,
69,0% (147) era casada e 77,5% (165) tiveram entre 1 a 3 filhos. Quanto ao
nível educacional, 48,4% (103) tinham o primeiro ciclo completo. Na amostra em
estudo, o IMC médio foi de 28,7 (DP ± 0,82). Em 84,0% das inquiridas, foi
demonstrado terem IU há mais de um ano, sendo que o tipo de IU, na grande
maioria (81,6%), é mista ou de esforço. As características das mulheres
inquiridas estão descritas no Quadro_I.
Segundo as mulheres, a IU interferiu de forma moderada na QdV global (avaliada
pelo score total), com um resultado médio de 6,7 em 10. Em média, os domínios
mais afetados foram as situações de esforço (6,2 em 10), auto-imagem (6,2 em
10) e impacto emocional (5.9 em 10). Para todas as áreas avaliadas pelo
CONTILIFE©, pelo menos 71,8% das mulheres admite que a IU interfere
moderadamente ou mais na sua QdV. A autoimagem é a área onde existe um maior
impacto – 96,7% das mulheres mencionam um impacto moderado ou superior.
O impacto na QdV é independente do tipo de IU para a QdV em geral e nos
restantes domínios, exceto para a dimensão "situações de esforço",
em que a QdV é menor na IU de esforço (5,56 ± 0,46 IC 95%, versus 8,46 ± 0,58
IC 95% na IU de urgência). Por sua vez, a QdV na dimensão "atividades
diárias" é menor na IU de urgência (6,95 ± 0,70 IC 95%, versus 7,71 ±
0,38 IC 95% na IU de esforço). Estas diferenças encontradas são
estatisticamente significativas (p < 0,05) - Quadro_II.
Relativamente à correlação das restantes variáveis estudadas com o impacto na
QdV, os Quadro_III e IV sumariam os resultados encontrados. No que diz respeito
à variável idade, embora a nível do score total não haja diferenças
significativas, na avaliação isolada das dimensões do CONTILIFE© foi encontrada
uma relação direta ténue (15%), estatisticamente significativa (p = 0, 29),
entre idade e QdV na dimensão "situações de esforço". De igual
forma, há uma relação direta discreta (de 23%), estatisticamente significativa
(p = 0,001), entre idade e QdV na dimensão "sexualidade". Assim
sendo, a idade associou-se a um impacto negativo na QdV, no que diz respeito às
situações de esforço e à sexualidade.
A escolaridade não se associa a impacto significativo na QdV total nesta
amostra (p = 0,06). No entanto, foi identificada uma associaçãosignificativa
negativa entre a escolaridade e a dimensão "atividades diárias" (p
< 0,001), ou seja, quanto maior a escolaridade, menor a QdV neste domínio.
A QdV da mulher com IU depende inversamente do IMC (p = 0,038), ou seja, quanto
maior o IMC, menor a QdV, sendo esta observação sobretudo na dimensão
"atividades diárias" (p = 0,004).
Quanto ao estado civil e à duração da IU, não foi encontrada associação
estatisticamente significativa com a QdV, quer pelo score total quer em
qualquer das dimensões estudadas.
Ter filhos associou-se de forma negativa à QdV total em comparação com as
mulheres que nunca tiveram filhos, de forma estatisticamente significativa (p =
0,021), com maior expressão a nível das dimensões "situações de
esforço" (p = 0,004) e "sexualidade" (p < 0,001).
Das 37,6% de mulheres com IU que abordaram a questão da IU com o seu MF, 63,8%
teve uma orientação. O impacto da IU na QdV associou-se a diferenças
estatisticamente significativas na referência deste problema de saúde ao MF. As
mulheres que abordaram as perdas de urina com o MF tinham, em média, menor QdV
total e em todas as dimensões estudadas (p < 0,05).
Relativamente à existência ou não de orientação para o problema da IU, não foi
encontrada nenhuma relação com significância estatística em qualquer dos
domínios estudados ou pelo score total.
Discussão
Este estudo identificou uma prevalência de IU na população portuguesa de 23,3%,
numa amostra de 1.291 mulheres e foi, tanto quanto sabemos, o primeiro estudo
nacional que avaliou o impacto desta patologia na QdV através de uma escala
validada para a população portuguesa. De uma forma global, as mulheres
inquiridas tiveram um prejuízo significativo na sua QdV total (6,7 em 10),
referindo impacto nas suas várias dimensões, incluindo sexualidade (8,5 em 10),
autoimagem (6,2 em 10) e impacto emocional (5,9 em 10).
Este estudo não limitou a amostragem às mulheres frequentadoras dos CSP, mas
antes a todas as mulheres inscritas neste nível de cuidados de saúde. No que
diz respeito à prevalência de IU, foi possível obter uma taxa de resposta
significativa (taxa de não resposta de cerca de 3%).
Um dos fatores que influencia a prevalência de IU é a idade das mulheres
incluídas nos estudos. Escolhemos este grupo etário (40 anos ou mais) uma vez
que as referências bibliográficas analisadas apresentam os 40 anos como o ponto
limiar a partir do qual a prevalência de IU aumenta exponencialmente.3,14-16
Outro aspeto a ter em conta na prevalência da IU é a sua própria definição e a
validade do instrumento de recolha dos dados. Como já foi mencionado, a
International Continence Society criou uma definição para ser usada nos estudos
epidemiológicos, que foi aquela adotada pelos autores. Existem questionários
validados para várias populações que permitem a definição e classificação da
IU. No entanto, para a população portuguesa ainda nenhum questionário foi
validado. Embora existam vários questionários traduzidos na língua portuguesa,
estão apenas validados para a população brasileira. Foi por este motivo que os
autores preferiram construir as perguntas que iriam determinar a classificação
de IU, embora isso possa constituir uma limitação do estudo. Estas perguntas
foram baseadas no estudo de Sandvik de 1995 e no estudo EPICONT de 2003.14,19
De acordo com a International Continence Society, a estimativa da prevalência
para cada tipo de IU é sensível à resposta de questões que contêm a definição
de IU de esforço e de urgência; de facto, os autores não encontraram um valor
específico de sensibilidade/especificidade para esta pergunta, porém a mesma
foi usada nos dois estudos de prevalência de IU em Portugal.24,25 Sabe-se
também que a própria metodologia de obtenção dos dados pode influenciar a
prevalência, nomeadamente, através da alusão à patologia na introdução ao
estudo e se a resposta aos questionários é feita por entrevista, via telefónica
ou por autopreenchimento.20,21 No presente estudo, a questão usada para a
determinação da prevalência foi feita telefonicamente, o que pode condicionar,
de facto, uma menor prevalência de IU, à luz destas fontes bibliográficas.
Porém, a introdução efetuada aquando do telefonema não mencionava o nome da
patologia que estava a ser estudada.
Quando comparado com outros estudos, as taxas de prevalência de IU encontradas
são muito variadas (5-69%) por diversos motivos, nomeadamente pelo método de
amostragem, pela idade das mulheres incluídas nos estudos, pela metodologia e
ferramentas usadas para obtenção dos dados, pela própria definição de IU e dos
seus subtipos, bem como a inclusão ou não do grau de severidade da IU.3-5,16-18
Comparativamente a estudos europeus que usaram como amostra mulheres com mais
de 40 anos de idade, existem várias discrepâncias. Um estudo italiano de
Bortolotti et al., a nível dos CSP, com uma amostra de 2.767 mulheres e com uma
metodologia semelhante, por contacto telefónico, mostrou uma prevalência de IU
inferior de 11%. Porém, a perda de urina tinha ocorrido no último ano, o que
alarga o horizonte temporal da ocorrência de IU comparativamente ao nosso
estudo, que apenas se direcionava a IU no último mês.22 Fatores que possam
justificar a diferença de prevalência poderão estar relacionados com a cultura
e aspetos sociais (que poderão influenciar a resposta). Por outro lado,
diferenças nos fatores sociodemográficos, como a idade e o IMC, poderão
contribuir para a diferença nos resultados.
Um estudo populacional dinamarquês de 2000 (Moller et al.) que envolveu 4.000
mulheres, das quais 2.864 foram incluídas, apresenta uma prevalência de IU
inferior (16,1%).23 Não obstante, este estudo tinha uma metodologia diferente,
quer na definição da IU, quer na obtenção dos dados, que ocorreu através do
envio de questionários de autopreenchimento por correio eletrónico. Além disso,
o estudo excluiu mulheres com idade superior a 60 anos, o que pode ter
condicionado diminuição significativa da prevalência (atendendo ao seu aumento
com a idade). De sublinhar que este estudo pode ter sofrido viés de seleção
pela taxa de não resposta de 30%.
A nível nacional foram encontrados dois estudos de prevalência. Um, de 2005,
cuja prevalência determinada foi de 35,2% e que incluiu 400 mulheres com 40 ou
mais anos de idade que recorreram a uma consulta com o MF, num determinado
período.24 O facto de apenas incluir mulheres frequentadoras da consulta de
Medicina Geral e Familiar poderá ter contribuído para uma maior prevalência.
Além disso, foi utilizado um inquérito de autopreenchimento que, tal como
referido anteriormente, pode condicionar maiores taxas de prevalência. Este
estudo também confirmou que apenas um terço das mulheres aborda o problema com
o seu médico.
Por seu lado, o estudo populacional nacional do Serviço de Higiene e
Epidemiologia da Faculdade de Medicina do Porto, publicado em 2008, que usou a
mesma definição de IU, o contacto por via telefónica e a mesma idade, obteve
uma prevalência sensivelmente aproximada (21,4%, para n = 1.483). De salientar
que, neste estudo, o tamanho amostral foi relativamente superior (n = 1.918)25
e que apenas 4,9% dos casos de IU estavam diagnosticados.
No que diz respeito à QdV, ainda existem poucos estudos publicados, a nível
internacional, que usam o CONTILIFE© para avaliação de QdV. Um estudo francês
de Saadoun et al. tenta correlacionar a gravidade da IU com impacto na QdV e
mostra que, independentemente da severidade da IU, todas as dimensões do
CONTILIFE© estão negativamente afetadas.26
A avaliação do impacto na QdV acrescenta informação importante, uma vez que os
danos causados pela IU diferem entre as mulheres e a avaliação isolada dos
sintomas pode ser insuficiente para que o médico apreenda a dimensão do
problema. Pese embora a identificação da IU e posterior caracterização da QdV
da mulher poder identificar casos não relatados de transtorno significativo na
vida diária, há que considerar também que a aplicação destas escalas pode
traduzir-se na sobrevalorização de uma situação que, sob o ponto de vista da
utente, não a afeta na sua definição de estar saudável. O impacto da IU na QdV
depende, por exemplo, do grau de aceitação e adaptação à IU. Mais do que
avaliar a doença, o MF tem nas suas competências a capacidade de avaliar a
dolência, ou seja o sofrimento e repercussões biopsicossociais da IU, colocando
a pessoa no centro da sua ação orientadora. Um momento oportuno para a
abordagem desta problemática é aquando da realização de consultas de
planeamento familiar ou rastreio do cancro do colo do útero. A abordagem desta
problemática poderia igualmente ocorrer através de intervenções comunitárias,
como distribuição de panfletos informativos e realização de sessões de educação
para a saúde. A perceção da paciente sobre a sua IU pode ser um fator fulcral
para ela procurar ajuda ou, então, desvalorizar o problema e não o abordar com
o médico.
Quanto à relação entre a QdV e o tipo de incontinência, como verificado no
estudo realizado por Dedicação AC et al., observou-se que a QdV é independente
do tipo de incontinência.27
Porém, a literatura não é unânime a este nível, devido a diferenças
metodológicas e ao tipo de questionário para avaliação do impacto (questionário
específicos para a IU versus questionários genéricos de avaliação da QdV).
Existem trabalhos que apontam para que a IU mista terá um maior impacto na QdV,
uma vez que a coexistência das duas formas poderá ter um efeito aditivo no
agravamento da QdV.19,28-33 No entanto existe um estudo de Coyne et al. que
ressalva que a pior QdV nas mulheres com IU mista se deve ao componente de
urgência e que há um maior impacto na QdV das mulheres com IU mista e de
urgência.34 Noutros trabalhos verificou-se uma associação entre a IU de
urgência e uma pior QdV, no entanto as amostras eram pequenas e os
questionários careciam de sensibilidade.35,36 Os autores salientam que na IU
urgência, pela sua fisiopatologia, os sintomas são muito mais frequentes e
imprevisíveis, com um consequente maior impacto na QdV. Por seu lado, a IU de
esforço acontece perante determinados eventos que podem ser prevenidos, como
por exemplo evitar exercício físico intenso ou pegar em objetos pesados.
O impacto da IU na QdV aumenta com o índice de massa corporal e com a paridade.
Estes achados são consistentes com outros estudos similares.31,33,37-40 Uma
explicação para que maior IMC e a paridade estejam associados a uma pior QdV
pode estar relacionada com o facto de ambas as variáveis serem consideradas
fatores de risco para a IU e, adicionalmente, pode estar presente um fator de
confundimento devido a não ter sido estudada a severidade da IU, que pode ser
maior em mulheres com maior IMC e que tiveram filhos.
No domínio das actividades quotidianas, a associação de uma pior QdV em
mulheres instruídas pode ser explicada por estas estarem mais informadas sobre
a IU e valorizarem mais o impacto da doença nas suas actividades, em comparação
com mulheres menos instruídas.
Das mulheres com IU, 38% falaram do problema ao seu MF, o que é superior ao
encontrado no estudo EPICONT e no estudo de Altawell et al., no entanto é
semelhante ao encontrado no estudo português de Moura.19,24,41 As razões para a
não abordagem do problema com o MF já foram abordadas na introdução.
À semelhança de outros trabalhos, as mulheres que falam do problema ao médico
de família têm uma pior QdV em comparação com as que não falam.40,41,42
Os resultados deste estudo devem ser interpretados com precaução devido a
algumas limitações. No que diz respeito ao objetivo primário (prevalência),
para além de existir variabilidade significativa entre os estudos, os
resultados podem não ser generalizáveis para a população portuguesa, dado o
local de estudo se ter centrado numa área pequena do país e fundamentalmente
urbana. Porém, o facto dos resultados encontrados neste estudo serem
semelhantes a um estudo prévio realizado a nível nacional, com metodologia
semelhante, sugere consistência nos mesmos. No que se refere aos objetivos
secundários, poderá haver potencial para viés de seleção pelo facto de parte
significativa (29,2%) das mulheres não terem comparecido nas unidades para a
realização do inquérito CONTILIFE©.
Em conclusão, embora tenha uma prevalência alta na população feminina, apenas
cerca de um terço das mulheres com IU aborda o problema com o MF e, destas, um
terço não tem qualquer tipo de orientação. A IU tem um impacto negativo na QdV
geral das mulheres. As situações de esforço, autoimagem e impacto emocional são
as dimensões mais afetadas, mas também a nível das atividades diárias e
sexualidade. O impacto da IU na QdV está relacionado com o IMC, número de
partos prévios e com a referência do problema ao MF. Assim, o MF deve estar
sensibilizado para o problema da IU e atualizado relativamente às opções
terapêuticas e possíveis orientações no sentido de minimizar o impacto da IU na
QdV.
Futuros estudos de investigação nesta área deverão procurar obter uma amostra
que possa ser generalizável à população portuguesa. Por outro lado, seria
interessante apurar, de forma prospetiva, o impacto das intervenções na QdV das
mulheres com IU.