Abcesso hepático amebiano em idade pediátrica: um caminho do intestino ao
fígado
Introdução
A amebíase é uma parasitose de distribuição mundial causada pelo protozoário
Entamoeba histolytica. Estimam-se cerca de 50 milhões de casos por ano, sendo
considerada a /terceira causa de morte (100.000 por ano) por doença parasitária
no mundo1,2. A sua prevalência varia com o nível de saneamento e é geralmente
mais elevada nas regiões tropicais e subtropicais3. Em Portugal deixou de ser
uma doença de declaração obrigatória a partir de 1999 e os últimos dados
publicados, referentes ao período 1992-1996, reportavam uma taxa de incidência
mediana de 0,04 casos/milhão de habitantes4.
Os humanos parecem ser o único reservatório do parasita e, sendo a transmissão
feita apenas por via fecal-oral, a doença poderia ser potencialmente erradicada
através de medidas de controlo sanitário2.
A infeção ocorre por ingestão do parasita na sua forma quística. No lúmen
intestinal os quistos libertam os trofozoítos que podem causar apenas
colonização intestinal.
Clinicamente, a amebíase pode manifestar-se sob a forma de colite, doença
extraintestinal ou ser assintomática em 90% dos casos2. A doença
extraintestinal é rara (< 1%) e a sua forma de apresentação mais comum é o
abcesso hepático5,6. O abcesso hepático amebiano (AHA) é mais frequente em
adultos do sexo masculino. Apesar de raro na idade pediátrica, está descrito em
recém-nascidos e tem uma distribuição de género equitativa1,3,5. O AHA resulta
da disseminação hematogénica dos trofozoítos através da veia porta. Localiza-se
preferencialmente no lobo direito do fígado, uma vez que este recebe a maioria
da drenagem sanguínea do cego e do cólon ascendente2. No seu conteúdo
encontram-se fragmentos proteicos acelulares, tipo «pasta de anchovas», que
correspondem a hepatócitos destruídos pelos trofozoítos7,8.
As manifestações clínicas do AHA (febre, dor abdominal, anorexia e mal-estar
geral) são inespecíficas e podem apresentar-se de forma aguda ou insidiosa3.
Descrevemos um caso clínico de AHA em idade pediátrica. Este caso tem interesse
pela raridade com que ocorre nas crianças do nosso país e alerta para a
necessidade de incluir a etiologia amebiana no diagnóstico diferencial de
quadros clínicos caracterizados por febre prolongada, dor abdominal e lesão
hepática focal.
Caso clínico
Criança de 24 meses, sexo masculino, raça negra, saudável, natural de Almada,
onde sempre residiu. Vive em habitação com saneamento básico e um poço (água
usada para regar horta). Os pais são de origem africana e residem em Portugal
há 10 anos.
Inicia 10 dias antes do internamento, de forma súbita febre alta com calafrio
acompanhada de dor no hipocôndrio direito e aumento progressivo do volume
abdominal. Encontrava-se prostrado, com sensação de doença, temperatura axilar
39 ◦C, pálido, bem perfundido. Tensão arterial 85/40 mmHg. Frequência cardíaca
de 120 bpm. Frequência respiratória de 40 cpm, com respiração superficial e
gemido expiratório. Saturação transcutânea de O2 de 98% em ar ambiente.
Murmúrio vesicular mantido bilateralmente, sem ruídos adventícios. Abdómen
(fig._1) muito distendido, sob tensão, por hepatomegalia dolorosa (bordo
hepático palpável 8 cm abaixo do rebordo costal direito). A avaliação
laboratorial revelou hemoglobina 6,2 g/dL, leucócitos 27.600/uL (57%
neutrófilos, 0% eosinófilos), proteína C reativa 32 mg/dL, AST 71 UI/L (VR: <
38 UI/L), albumina 2,2 g/dL (VR: 3,5-5 g/dL), coagulação, ALT, fosfatase
alcalina e bilirrubina total normais. A ecografia abdominal evidenciou «lesão
hepática única, localizada no lobo esquerdo, com área central hipoecogénica,
pouco vascularizada». A tomografia computorizada (figs._2 e 3) mostrou «lesão
de densidade heterogénea com cerca de 9,5x8x6,2cm, bemdelimitada e capsulada
(abcesso/quisto complexo infetado)». Foi colocada a hipótese diagnóstica de
abcesso hepático, pelo que iniciou terapêutica empírica com ceftriaxona (100
mg/kg/dia) e metronidazol (42 mg/kg/dia).
A serologia para E. histolytica(pesquisa de anticorpos do tipo IgG por método
de ELISA) foi fortemente positiva.
Perante um AHA do lobo esquerdo, de dimensões superiores a 5 cm foi decidida a
realização de drenagem percutânea, com saída de cerca de 400 ml de líquido tipo
«pasta de anchovas» (fig._4). Manteve terapêutica com metronidazol durante 10
dias, inicialmente endovenoso e após apirexia (D8 de internamento) passou a
oral, seguido de paromomicina oral, 35 mg/kg/dia, 7 dias.
A pesquisa por «Polymerase Chain Reaction» (PCR) de E. histolyticanas fezes dos
contactos foi negativa.
Discussão
O caso clínico apresentado pretende salientar a importância de se considerar a
etiologia amebiana no diagnóstico diferencial de abcesso hepático em crianças,
mesmo sem história de viagens a países endémicos. O facto de os contactos não
serem portadores sugere uma infeção autóctone. De referir que a deteção de E.
histolyticapor PCR é o método laboratorial de diagnóstico mais sensível,
permitindo também diferenciar entre doença recente ou passada2.
O AHA ocorre, em média, 12 semanas após a infeção inicial, mas pode manifestar-
se após meses ou anos2.
Como relatado no caso, na criança, as manifestações clínicas mais frequentes do
AHA são febre alta com calafrio, dor no hipocôndrio direito, tosse e
hepatomegalia, habitualmente com menos de 10 dias de evoluc¸ão3,5,9. A diarreia
é concomitante em menos de 1/3 dos casos, apesar de poder ocorrer nos meses
anteriores ao diagnóstico9. A icterícia é rara na criança e, quando ocorre, é
maioritariamente de causa obstrutiva3,9. Ocasionalmente, a apresentação da
doença é mais insidiosa e o diagnóstico tardio.
Analiticamente, tal como descrito na literatura2,3,9, constatou-se anemia,
leucocitose revelando-se a ausência de eosinofilia, aumento da proteína C
reativa e AST/ALT. Contrariamente ao descrito, não se verificou aumento da
fosfatase alcalina.
A ecografia foi utilizada como exame imagiológico de 1.a linha3,6e detetou uma
lesão hepática isolada no lobo esquerdo. O estudo por doppler revelou uma lesão
pouco vascularizada, favorecendo a hipótese de quisto. A cintigrafia com gálio
poderia complementar a investigação diagnóstica, uma vez que os abcessos
amebianos são «frios» enquanto os piogénicos são «quentes»9. Contudo, nenhum
exame de imagem é definitivo em excluir um abcesso piogénico ou doença
maligna9.
Perante o diagnóstico imagiológico de abcesso/quisto, foram formuladas as
hipóteses diagnósticas de abcesso piogénico (80% dos abcessos hepáticos nas
crianças, causados por Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Klebsiella,
Enterobacter e aneróbios7), AHA, quisto hidático infetado, hematoma infetado e
hepatoma necrótico5.
O teste serológico para deteção de E. histolyticausado neste caso clínico tem
sensibilidade de 100% e especificidade de 95,6%2. Os anticorpos são detetáveis
na fase inicial da doença em 92-97% dos doentes9, mas podem ser negativos nos
primeiros 7 dias2. Contudo, em áreas endémicas este teste é limitado, pois não
permite a distinção entre infeção recente ou passada9.
A abordagem terapêutica do AHA deve incluir um agente amebicida tecidular
seguido de um amebicida com ação intraluminal. O agente tecidular mais
frequentemente usado é o metronidazol5, na dose 35-50 mg/kg/dia (máximo 750 mg,
3 x dia), durante 7-10 dias. Este fármaco é eficaz, não tem efeitos secundários
graves e a maioria dos doentes apresenta melhoria clínica após 72 horas de
terapêutica1. A formulação oral é bem absorvida, logo não permanece tempo
suficiente no lúmen intestinal para erradicar a amebíase intestinal. Não há
registo de resistência dos trofozoítos. A terapêutica utilizada foi o
metronidazol, inicialmente endovenoso e após melhoria clínica oral, permitindo
a continuidade do tratamento em ambulatório. Em alternativa, pode ser usado o
tinidazol oral 50-60 mg/kg/dia (máximo 2 g), 1 x dia, 3-5 dias1,5. O tinidazol
tem a mesma eficácia e posologia mais simples (1 x dia)6.
A infeção intraluminal é tratada, posteriormente, com paromomicina (fármaco não
comercializado em Portugal) na dose 25-35 mg/kg/dia oral, 3 x dia, durante 7
dias6. A paromomicina é umaminoglicosídeo não absorvido no tubo digestivo e,
por isso, com atividade intraluminal contra os quistos e trofozoítos1. Não deve
ser administrado juntamente com metronidazol ou tinidazol porque a diarreia é
um efeito secundário frequente6.
Embora o tratamento médico possa ser eficaz, a drenagem percutânea guiada por
ecografia é uma parte importante do algoritmo terapêutico. Os critérios de
drenagem são a ausência de resposta após 3-7 dias de terapêutica médica, risco
de rotura (tamanho > 5 cm e localização superficial) ou para exclusão de outro
diagnóstico1,3,5,6. No doente apresentado foi realizada drenagem pois o AHA
tinha mais de 5 cm e uma localização superficial no lobo esquerdo.
O AHA pode romper para a cavidade peritoneal, pleural ou pericárdica2,7-9. Como
descrito anteriormente, as lesões do lobo esquerdo são cerca de 6 vezes menos
frequentes que as do lobo direito e têm maior risco de romper para o
pericárdio2.
Os abcessos não complicados têm uma taxa de mortalidade inferior a 1% se
diagnosticados e tratados precocemente2. São marcadores de mau prognóstico
bilirrubina > 3,5 mg/dl, albumina sérica < 2 g/dL, abcessos múltiplos ou de
grandes dimensões e encefalopatia hepática9. Quando ocorrem complicações a
mortalidade aumenta para 20%9. A amebíase parece conferir algum grau de
imunidade9.
As lesões tratadas tornam-se anecoicas, calcificadas ou podem persistir como
lesões quísticas. A resolução radiológica completa ocorre em 2 anos9.
O AHA é uma entidade rara nos países desenvolvidos, contudo, é uma etiologia
possível numa criança saudável com uma lesão hepática, febre e dor abdominal3.
A história epidemiológica deve ser investigada detalhadamente de forma a
identificar a fonte de contaminação e tratar os portadores assintomáticos de E.
histolytica.