Comércio e serviços em áreas urbanas de génese ilegal. O caso da Quinta do
Conde (Sesimbra - Portugal)
I. INTRODUÇÃO
Os loteamentos clandestinosi marcaram o crescimento das áreas Metropolitanas de
Lisboa e do Porto desde a década de 50, contribuindo para a expansão da
habitação nas suas periferias, num contexto social e económico complexo, no
qual se podem diferenciar, pelo menos, duas fases ' antes e depois de 1974. A
carência de habitação que está na origem deste fenómeno, nessa primeira fase, é
uma consequência da industrialização que despoletou o êxodo rural em direcção
às principais cidades industriais do litoral; na segunda fase, estes fluxos
abrandaram mas actuaram outros factores de natureza política decorrentes da
mudança de regime, como o retorno dos portugueses residentes nas ex-colónias
africanas (1975-76) e o aumento da população imigrante oriunda dos países
africanos de língua oficial portuguesa (PALOP). O crescimento destes novos
aglomerados populacionais levou à implantação dos primeiros estabelecimentos de
comércio e de serviços, por iniciativa de alguns residentes, quase sempre
mulheres, na busca de um complemento ao rendimento familiar. Não raro
reproduziam modelos tradicionais das suas áreas de origem, que estavam longe de
cumprir os requisitos legais exigidos.
Os estudos sobre loteamentos clandestinos e AUGI têm abordado preferencialmente
questões relacionadas com a habitação (Barata Salgueiro, 1977 e 1983; Bruno
Soares, 1982; Matos, 1990) e a reconversão urbanística (Barata Salgueiro, 1972;
Nunes da Silva e Pereira, 1986; Bruno Soares, 1984, 1987 e 1989; Guerra e
Fonseca Ferreira, 1990; Arrabaça, 2002; Costa, 2008). Na década de 80, esta
questão estava na ordem no dia, o que pode ser atestado pelos seguintes
eventos: a organização das Jornadas Nacionais sobre Loteamentos Clandestinos,
em 1981, e dasNovas Jornadas Nacionais sobre Loteamentos Ilegais, em 1983; e a
selecção desta temática para o primeiro número da revista Sociedade e
Território, em 1984.
Este artigo, elaborado a partir da dissertação de mestrado em gestão do
território apresentada na FCSH/UNL (Tomé, 2011), visa: relacionar a evolução
geográfica e funcional do comércio e serviços em espaços urbanos de génese
ilegal com as transformações ocorridas no território nos últimos trinta anos,
tendo por base o exemplo da Quinta do Conde (Sesimbra); caracterizar e
perspectivar a evolução do comércio e dos serviços na área de estudo; e
compreender o papel dos diversos agentes na evolução temporal e espacial das
actividades económicas. A metodologia para a sua realização privilegiou, numa
primeira fase, a análise de bibliografia e legislação sobre loteamentos
clandestinos e AUGI e a reconstituição, através de fontes documentais e
directas, da evolução da Quinta do Conde; numa segunda fase, fez-se um
levantamento funcional de todos os estabelecimentos de comércio e de serviços
da Quinta do Condeii, que permitiu conhecer em pormenor a sua estrutura (uma
vez que nenhuma entidade tinha esta informação recolhida) e articular algumas
características com a origem, natureza e evolução urbanística do aglomerado.
II. DOS LOTEAMENTOS CLANDESTINOS ÀS ÁREAS URBANAS DE GÉNESE ILEGAL (AUGI)
Em meados da década de 40 do século XX, a competência para urbanizar e parcelar
terrenos era exclusiva da administração pública, mas esta não tinha nem
capacidade nem meios para a realizar (Matos, 1990). O direito de loteamento dos
privados só foi contemplado pelo DL 46647, de 29 de Novembro de 1965, mediante
uma licença requerida à Câmara Municipal; caso contrário, o loteamento seria
considerado ilegal, ficando os seus proprietários sujeitos ao pagamento de uma
coima. Ainda que os primeiros bairros clandestinos surgissem na década de 30,
foi entre as décadas de 60 e 80 que tiveram maior repercussão, não tendo o DL
46647 impedido ou mitigado o fenómeno. De acordo com arrabaça (2002), estima-se
que 42% dos fogos construídos em Portugal nesse período tiveram génese ilegal.
Barata Salgueiro (2005: 325) define estes bairros como construções de
alvenaria de tipo e de qualidade muitas vezes semelhante às da construção
legal, sobre solos pertencentes aos ocupantes, adquiridos por estes com o
propósito de construção, através de um processo de loteamento ilegal,
constituindo conjuntos perfeitamente individualizados de construção. Costa
(2008: 3) adverte que um bairro clandestino não é necessariamente um bairro
degradado ou bairro de lata, constituído maioritariamente por barracas de
madeira ou chapa metálica em risco de ruína, com poucas ou nenhumas condições
de higiene e salubridade e sem acesso a água potável ou electricidade. Também
não é necessariamente uma zona de isolamento por diferenciação e/ou
discriminação económica, social, étnica, cultural ou religiosa, vulgo ghetto.
Um bairro clandestino, nomeadamente em Portugal pode, de facto, apresentar
pontualmente algumas características isoladas, encobertas ou diluídas destas
duas últimas definições, mas no caso geral, a realidade no terreno mostra-nos
um cenário bem diferente. Acrescenta o mesmo autor (2008: 80) que as AUGI não
são todas iguais e um número substancial passará inclusive bastante
despercebido ao público em geral, dadas as suas semelhanças com outras zonas
legais.
Os loteamentos clandestinos expandem-se em contextos políticos, sociais e
económicos específicos. Numa primeira fase (até 1974) justificam-se: pelas
limitações das políticas urbanísticas e habitacionais do estado novo que,
devido ao desemprego e inflação, geraram especulação fundiária, contribuíram
para o rápido aumento dos preços das casas, o aparecimento de formas precárias
de habitação (por exemplo bairros de lata) e a sublocação e superlotação de
fogos; pelo acelerado crescimento das áreas metropolitanas e litorais do país,
resultante da concentração de investimentos económicos e processos de
industrialização em áreas urbanas e do êxodo rural que desencadeou; pelo
elevado crescimento natural da população; e pelos baixos salários praticados, o
principal vector do crescimento económico. Após 1974 assistiu-se: ao regresso
de 150 000 famílias das antigas colónias portuguesas; à entrada de população
imigrante oriunda dos PALOP; ao congelamento das rendas em Lisboa e Porto; e à
política de concessão de crédito habitação facilitada, que permitiu a aquisição
de primeira ou segunda residência e, noutros casos, a sua auto-construção
(Matos, 1990; arrabaça, 2002; Costa, 2008).
Para a proliferação de bairros clandestinos contribuíram ainda um conjunto de
aspectos culturais, como a importância de possuir solo, para deixar aos
herdeiros (em geral os filhos); a ideia de que o regime político e a economia
eram instáveis, pelo que a aquisição da habitação era uma salvaguarda das
poupanças individuais e que nalguns casos podia ser potenciada para o
desenvolvimento de actividades económicas (por vezes, a tempo parcial, para
complemento do rendimento); o formato da habitação típica do clandestino
(moradia, em áreas de baixa densidade, com Quintal e garagem); e o desejo dos
estratos sociais mais elevados adquirirem segunda habitação, para fins-de-
semana ou férias. Há, neste contexto, uma combinação entre aspirações de mais
bem-estar no presente e uma ideia de melhor futuro para si e para os filhos
(Matos, 1990; Santos, 2008).
Para tentar pôr fim aos loteamentos ilegais e reconverter as áreas já
existentes foram publicados vários diplomas. O primeiro foi o 275/76, de 13 de
Abril, que representa uma evolução do DL 289/73 (loteamentos urbanos), de 6 de
Junho, que já previa sanções severas, como a posse administrativa e a demolição
do edificado. Todavia, estas medidas revelaram-se ineficazes, devido à
morosidade da execução judicial e à célere dinâmica do fenómeno.
Posteriormente, destacam-se o DL 804/76, de 6 de Novembro, relativo à
recuperação de áreas clandestinas, exigindo às câmaras municipais a
apresentação de todas as áreas Críticas de recuperação e reconversão
Urbanística ao ministério que tutelava o urbanismo, com o objectivo de definir
áreas para a implantação de equipamentos e infra-estruturas, eventuais
correcções do desenho urbano e a repartição das despesas entre os proprietários
e a administração pública); o DL 152/82, de 3 de Maio (alterado pelo DL 210/83,
de 23 de Maio) sobre a criação de áreas de Desenvolvimento Urbano Prioritário,
as quais deveriam suportar o desenvolvimento urbano por um período máximo de 5
anos (incluindo todas as componentes urbanísticas indispensáveis para a sua
qualidade) e colocar no mercado, a preço justo, os terrenos que os
proprietários não pretendiam urbanizar; o DL 400/84, de 31 de Dezembro que
estabelece o novo regime de Loteamentos, tentando controlar os loteamentos
ilegais, através de medidas como a criação de obstáculos à venda de
propriedades em avos, sanções pecuniárias e prisionais mais severas para novos
loteamentos ilegais e a possibilidade de qualquer interessado obter previamente
informações sobre a legalidade de eventuais construções; e, finalmente, a Lei
91/95, de 2 de Setembro, relativa à reconversão das AUGI, definindo os trâmites
processuais e exigindo aos proprietários ou comproprietários dos lotes
clandestinos que suportassem os encargos com a infra-estruturação. Este foi o
diploma legal que se revelou mais eficaz na mitigação do fenómeno e na
consciencialização dos proprietários quanto às suas obrigações no processo de
legalização e reconversão das AUGI (quadro_I).
Estes bairros, ao surgirem sem intervenção do estado, apresentavam graves
problemas urbanos, como a falta ou insuficiência de infra-estruturas, de
espaços públicos, de áreas para equipamentos, de transportes públicos, assim
como arruamentos precários desorganizados e deficiências nos sistemas de
recolha do lixo, saneamento e fornecimento de água e energia. Existiam
aglomerados que se localizavam junto de postes de alta tensão, em áreas muito
declivosas ou inundáveis ou, ainda, em zonas non aedificandis, como aconteceu
nos concelhos de Loures e Odivelas (Barata Salgueiro, 1977; Arrabaça, 2002;
Costa, 2008).
A expansão destes aglomerados populacionais favoreceu o aparecimento de
actividades económicas locais, com destaque para o comércio e os serviços de
proximidade. Como refere Cachinho (2002: 108), o comércio faz parte da razão
de ser dos aglomerados urbanos; viabiliza a sua existência, explica a sua
organização interna e justifica muito do movimento e animação que nestes
acontece. Barata Salgueiro (1989: 153) já defendia esta ideia e salientava que
o comércio promove o convívio entre as pessoas e a animação dos lugares, para
além de ser um elemento decisivo na estruturação do espaço. ( ) [a] função
permanece mesmo quando mudam as formas ou as características dos
estabelecimentos. Assim, importa analisar como a génese ilegal de um
aglomerado populacional influenciou a estruturação e organização da oferta de
comércio e serviços.
III. COMÉRCIO E SERVIÇOS EM ESPAÇOS SUBURBANOS
Nas últimas décadas, o comércio e os serviços sofreram profundas mutações, a um
ritmo cada vez mais célere e com uma crescente complexidade. Estas mudanças,
fortemente impulsionadas pela integração na CEE/UE, ocorreram a vários níveis:
organização da distribuição (maior concentração de insígnias por grupos
económicos, adopção de novas técnicas de logística e distribuição e novos
padrões geográficos dos estabelecimentos comerciais em função da sua dimensão e
graus de especialização) e perfis dos consumidores (variações do poder de
compra, novas formas de família, aumento do grau de escolarização, feminização
do mercado de trabalho, envelhecimento da população, imigração, redução e
diversificação dos horários de trabalho, revolução do frio doméstico, atitudes
consumistas versus consumeristasiii, o que origina novos e diversificados
perfis de consumidor). Em paralelo, as cidades organizam-se segundo um modelo
centrífugo e multipolar, modificando as suas relações no sistema urbano, em
reflexo dos investimentos em infra-estruturas de transporte e do concomitante
aumento do uso do transporte individual motorizado. Nas áreas metropolitanas as
dinâmicas territoriais têm favorecido a expansão das periferias e das
actividades de comércio e serviços que nelas se desenvolvem, pelos motivos
sintetizados no quadro_II.
A evolução da mancha urbana e dos espaços de comércio e serviços passou por
diversas fases, que vão desde a hegemonia do centro de cidadeiv tradicional até
aos modelos multipolares complexos (fig._1).
Se aplicarmos este modelo à área metropolitana de Lisboa, na fase 1 (até 1980),
o comércio e os serviços localizavam-se no centro da cidade, exercendo um forte
poder de atracção sobre os consumidores. Com a expansão da residência e do
comércio na periferia, vão surgindo novos territórios, que lhe retiram a
hegemonia. Na fase 2 (1980-1995) há uma relação de complementaridade entre o
centro e a periferia, para a qual contribuiu a abertura de hipermercados
(isolados ou com pequenas galerias comerciais), em locais periféricos, com
elevada acessibilidade e amplas áreas de influência. Note-se que muitas áreas
urbanas periféricas nesta época não tinham organização interna suportada num
centro de comércio e serviços. A fase 3 (desde meados dos anos 90) caracteriza-
se pela perda de importância relativa do centro da cidade, que experimenta a
competição directa da oferta, ancorada em grandes centros comerciais
localizados nas áreas suburbanas e que contribuíram para a emergência de um
modelo urbano multipolar. Nos últimos anos, reflexo da crise económica, da
saturação do modelo consumista ancorado em centros comerciais e em grandes
superfícies e da afirmação de novos valores (consumo consciente,
sustentabilidade, etc.), o retorno ao centro, a cidade compacta e a compra de
proximidade parecem estar a ganhar peso.
Merenne-Schoumaker (2003) sintetiza a evolução do comércio em contexto
metropolitano (quadro_III). é ao nível suburbano que as características
referidas para a segunda coroa melhor se adequam à área em estudo (Quinta do
Conde).
Nas periferias urbanas estamos perante um sistema de comércio e serviços
complexo, em que coexistem diversos formatos (pequenos estabelecimentos de
comércio e serviços, feiras, supermercados, hipermercados, discount, galerias
comerciais, centros comerciais, retail parks, outlet factories e franchising,
entre outros; dentro destes formatos podemos ainda considerar um vasto leque de
subformatos), todos eles com a sua segmentação e posicionamento no mercado,
respectiva política de preços, localização e modus operandis bem definidos
(quadro_IV). No caso português, a complexidade do sistema resultou também do
início mais tardio das mudanças no comércio e distribuição e da consequente
emergência simultânea de formatos que noutros países europeus ocorreu de forma
mais diferida no tempo.
O célere crescimento urbano da Quinta do Conde e as profundas mutações que
ocorreram nas últimas quatro décadas na oferta e na procura do comércio e dos
serviços justificam a caracterização e a distribuição espacial destas
actividades, considerando ainda os impactos (passados, presentes e futuros) da
génese ilegal do aglomerado na sua evolução.
IV. QUINTA DO CONDE: EVOLUÇÃO DEMOGRÁFICA E URBANA
A Quinta do Conde (14,4 km2) é uma das três freguesias do concelho de Sesimbra
(194,98 km2) e ocupa uma posição central na Península de Setúbal, fazendo
fronteira com os municípios do Seixal, Barreiro e Setúbal. O loteamento ilegal
da Quinta do Conde ocorreu em 1971 por iniciativa de António Xavier de Lima,
que arrasou a vegetação existente e abriu cerca de 100 km de arruamentos,
segundo uma extensa malha reticular. Com uma área média de 300 m2 por lote, o
promotor inicial colocou no mercado 9 225 lotes, contemplando alguns espaços
para equipamentos colectivos (por exemplo, escolas), ainda que não tivesse
qualquer responsabilidade na sua construção.
Para o rápido crescimento da Quinta do Conde contribuíram, além dos aspectos
referidos, a sua localização, próximo da estrada nacional 10, dos principais
pólos empregadores, das praias e de Lisboa (abertura da ponte sobre o tejo, em
1966), o modus operandisdo loteador inicial (o preço era atractivo, por
comparação com as áreas congéneres), a facilidade de construir as habitações
faseadamente, de acordo com a disponibilidade económica de cada um e a
existência de um conflito entre as autarquias de Sesimbra e do Barreiro
referente à definição dos limites administrativos, que beneficiou o crescimento
exponencial das construções clandestinas, sem fiscalização.
A Quinta do Conde foi a freguesia do país que mais cresceu percentualmente no
período intercensitário 1991-2001v (108%), e embora o ritmo tenha abrandado
entre 2001-2011 (53%), continuou a registar-se aumento do número de famílias,
edifícios e alojamentos (quadro_V). A estrutura etária dos residentes na
freguesia evidencia um efectivo populacional jovem, com um saldo natural
positivo. Note-se ainda que, nestes vintes anos, para os indicadores
apresentados, a Quinta do Conde tem ganho importância relativa face ao conjunto
do concelho de Sesimbra.
Para estas dinâmicas mais recentes contribuíram, além dos factores referidos, a
melhoria da acessibilidade rodoviária a Lisboa (via Ponte 25 de Abril e Ponte
Vasco da Gama) e intra-regional (como a A33), bem como a ligação ferroviária
entre Lisboa e Setúbal (fertagus) e a reconversão urbanística encetada em 1982
pela Câmara Municipal de Sesimbra (CMS), com a aplicação do Plano Parcial da
Urbanização da Quinta do Conde (PPUQC). Este plano visava reabilitar as áreas
de construção ilegal e dotar a Quinta do Conde com a infra-estruturação básica,
adaptando-se à malha urbana existente. Todavia, de acordo com rosado (1997,
citado em David, 2002: 41-2), a decisão política era de minimizar os estragos
e acrescenta que o PPUQC foi a ferramenta possível dentro de uma vontade
política para legalizar, organizar e ordenar o que já existia. ( ) Talvez
pudesse ter sido feito de outra maneira se a filosofia que lhe estivesse
subjacente fosse outra.
O PPUQC permitiu, contudo, minimizar os principais problemas do aglomerado,
ainda que tenha evidenciado um défice de concretização nos domínios da
morfologia urbana e da qualidade do espaço público. Esta última ideia é
corrorada por Gaspar, Simões e Barroso (2006), que a sustentam na
impossibilidade de identificar os proprietários, uma vez que existiam apenas
contratos-promessa de compra e venda, facilmente adulteráveis. Desta forma, a
CMS optou por indemnizar grande parte dos proprietários dos lotes destinados a
equipamentos colectivos e a espaços verdes.
Estas dinâmicas territoriais e demográficas permitiram, de acordo com os dados
apresentados por Tomé (2011), que o valor médio de um lote de terreno com 300m2
na Quinta do Conde aumentasse de 250 em 1980 para 5 000 em 1990 e 90 000 em
2000. Mais recentemente, em 2010, o valor diminuiu para cerca de 75 000. Não
admira, por isso, que a tipologia dos edifícios esteja a mudar da moradia
unifamiliar para a moradia bi-familiar e para o bloco de apartamentos com 3 ou
mais andares. Com mais de 25 000 habitantes, o reforço da densidade
populacional, a perspectiva de crescimento e as boas acessibilidades, diversos
estabelecimentos de comércio e serviços ' de diferentes tipologias ' têm-se
implantado recentemente na Quinta do Conde.
V. EVOLUÇÃO DO COMÉRCIO E DOS SERVIÇOS NA QUINTA DO CONDE
Os primeiros estabelecimentos de comércio e serviços surgiram por volta de
1973, em torno dos principais acessos rodoviários à Quinta do Conde, como a
en10 e a avenida Principal, por vezes exercendo a actividade na própria
residência (na garagem ou mesmo num dos compartimentos da habitação). A oferta
comercial era pouco especializada e dominada pelos bens banais (produtos
alimentares e utilidades para o lar), materiais de construção civil e serviços
pessoais (cabeleireiro). Não raro, estes negócios eram geridos pelas mulheres,
que conjugavam as lides domésticas com estas actividades, garantindo um
complemento ao rendimento do marido, quase sempre operário na indústria ou na
construção civil. Com a consolidação do aglomerado e a desindustrialização da
Margem sul (anos 80), a estrutura do negócio mudou, passando as empresas a ter
uma índole familiar, trabalhando nela os dois elementos do casal e, por vezes,
os filhos. Também se registaram então alterações nos edifícios, passando a ser
mais frequentes as moradias isoladas com dois pisos, em que o inferior se
destinava ao comércio ou serviços. Por essa altura, instalaram-se as primeiras
instituições bancárias na avenida Principal, a qual assume, desde a génese do
aglomerado, particular importância no contexto urbano, por concentrar grande
parte do pequeno e médio comércio, bem como variados serviços, numa zona com
tecido urbano já bastante consolidado [e] espera-se que de futuro este espaço
veja reforçada a vocação desde sempre assumida, como pólo de atracção do
conjunto urbano (David, 2002: 84).
Em 1985, surgiu o Centro Comercial europa 3 (CCE), a primeira forma
organizada de comércio na Quinta do Conde. Apesar da sua localização na
principal avenida da vila e próximo do comércio alimentar, o CCE começou a
perder a influência na primeira metade da década seguinte devido: à pouca
diversidade da oferta; ao aumento da concorrência (interna e externa à Quinta
do Conde); à evolução do conceito de centro comercial, que o CCE não acompanhou
(deficiente concepção e estrutura física interna; incapacidade de gestão); às
mudanças socioeconómicas (maior poder de compra e aumento do parque automóvel
da população residente). Na realidade, embora o CCE seja designado de centro
comercial, é um condomínio comercial, sem os atributos necessários para
enfrentar a concorrência.
Aquando da abertura do CCE, já existiam o Mercado Municipal e o Mercado de
Levante, que operavam juntos no Largo do Mercado. Numa fase inicial, fruto do
reforço da oferta comercial, o mercado expandiu-se pelas ruas contíguas,
dominando a oferta alimentar no Largo do Mercado (norte), e a não alimentar
ocupava o Largo do Mercado (sul) e as ruas adjacentes. A dinâmica destes
mercados permitiu consolidar uma estrutura comercial na área envolvente
(padaria, cafés e pastelarias, lojas de utilidades para o lar) que, com a
relocalização dos mercados em 2000, foram perdendo importância e, nalguns
casos, encerraram ou mudaram de actividade.
A inauguração do novo Mercado Municipal dotou a Quinta do Conde de uma infra-
estrutura equipada com 48 bancas, com melhores condições de higiene e
conservação alimentar e uma galeria comercial com 25 lojas (interiores e
exteriores). Se aquando da abertura do mercado as lojas interiores apresentavam
uma oferta pouco qualificada e com concorrência relativamente próxima, o que
inviabilizou a consolidação deste espaço comercial, hoje apresentam maior
dinamismo e especialização (agência de viagens e sapateiro, entre outros). Os
estabelecimentos exteriores funcionam como complemento da oferta do mercado
(caso dos talhos e utilidades para o lar), mas exercem também outras funções
que ajudaram a consolidar este espaço comercial (como papelaria, cabeleireiro,
centro de estética e serviços municipais). Já o mercado de levante tem perdido
relevância, visível pela redução do seu perímetro e, mais recentemente, pela
sua suspensão até à aprovação do Plano de Ordenamento da venda ambulante. A
relocalização dos mercados permitiu a requalificação do tecido urbano e a
emergência de uma área comercial com mais qualidade ' a Baixa da Quinta do
Conde. Dada a importância estratégica desta área, a CMS fez uma intervenção
urbanística, em 2000, visando organizar a circulação automóvel, ampliar o
estacionamento, qualificar a circulação pedonal e criar um espaço público
aberto, com uma estrutura polivalente de apoio ao comércio e serviços e
acolhimento de actividades socioculturais.
A partir de meados dos anos 90, em virtude do reforço da população, da mudança
do perfil demográfico e da melhoria das acessibilidades, começaram a surgir
lojas das cadeias de distribuição. A primeira insígnia foi o Minipreço (1994),
implantando-se no espaço urbano consolidado da avenida Principal, próximo do
cliente e com fácil acesso. Anos mais tarde, surgiram os primeiros
supermercados ' Modelo (em 2000 complementado com a Modalfa e a Worten), Plus
(2001), Lidl (2007), feira nova (2007; com a get e a New Code) e Aldi (2011),
privilegiando uma lógica de proximidade entre si e de fácil acesso à EN 10. O
impacto da abertura das primeiras superfícies comerciais foi grande, com
reflexos na perda de vendas do comércio tradicional e no encerramento de alguns
estabelecimentos. Outros mantêm-se em funcionamento, com menos pessoal e
diversificando a oferta. As actividades relacionadas com a alimentação,
tecnologia e pronto-a-vestir foram as mais afectadas (Tomé, 2011). Já as
unidades que abriram depois de 2007 não tiveram impactos relevantes no pequeno
e médio comércio, concorrendo sobretudo com as estruturas similares. Do ponto
de vista urbanístico, a implantação destas superfícies ' sobretudo das
primeiras ' permitiu requalificar a Urbanização Cova dos Vidros, originando uma
nova centralidade urbanavi beneficiada, mais tarde, com a construção do Parque
da Vila, cujos custos financeiros foram suportados por uma das insígnias.
Nos últimos quinze anos têm-se destacado ainda outros eixos comerciais, em
função dos percursos/paragens dos autocarros da sulfertagus, que fazem a
ligação à estação de Coina: a avenida da Liberdade, onde já havia algum
comércio desde o loteamento inicial; e as ruas Manuel de Arriaga (próxima do
actual Mercado Municipal) e Serra da Arrábida, onde se desenvolveu a construção
em altura (3/4 pisos), destinando-se o piso térreo ao comércio e serviços. Na
primeira rua destaca-se a oferta de utilidades para o lar, artigos de papelaria
e escolares e cuidados pessoais e na segunda, cafés, pastelaria, padaria,
minimercado, talhos e charcutaria (Tomé, 2011). Ou seja, na área de maior
densidade populacional e oferta comercial começa a esboçar-se uma tendência de
especialização por eixos.
O levantamento funcional realizado na área de estudo, em Janeiro de 2011,
permitiu contabilizar 989 espaços destinados ao comércio e serviços,
distribuídos por 147 ruas (12 das quais reúnem 51% dos estabelecimentos e 37
ruas concentram 75%). A Quinta do Conde 1 é a área que concentra mais
estabelecimentos (29,9%), ao invés da Quinta do Conde 4 (7,2%) (fig._2). Do
total de espaços de comércio e serviços, 198 (20,0%) estavam sem ocupação, dos
quais 140 (14,2%) se encontravam para venda ou aluguer (Tomé, 2011).
Atendendo à função principal dos estabelecimentos de comércio e serviços,
agrupada de acordo com uma classificação adaptada de Barata Salgueiro (1996),
constata-se que as actividades dominantes na Quinta do Conde são o alojamento e
a restauração, os serviços à colectividade e os serviços pessoais (quadro_VI).
A partir da observação do quadro podemos concluir que há uma predominância dos
serviços face ao comércio, o que reflecte não só a importância assumida pela
restauração (cafés, pastelarias, etc.), mas também mudanças no comportamento
dos consumidores, que adquirem cada vez mais bens e serviços que implicam uma
personalização/acréscimo de valor; aplicando a ideia expressa anteriormente ao
sector da alimentação, houve uma crescente procura por refeições prontas (em
restaurantes ou para levar para casa), resultado da entrada da mulher no mundo
do trabalho, da diversidade de tipo de famílias e do carácter de dormitório que
a Quinta do Conde tem assumido na última fase de expansão; e as unidades de
produtos alimentares (supermercados de cadeias de distribuição) ocupam, em
termos relativos, um lugar modesto, mas serão, porventura, as que mais facturam
e as que têm maior área de influência.
Em suma, pode afirmar-se que nas últimas duas décadas houve uma profunda
mutação na estrutura do comércio e serviços da Quinta do Conde, traduzida no
reforço da oferta, no predomínio dos serviços sobre o comércio e na presença de
insígnias da distribuição alimentar e não alimentar. Em paralelo, assistiu-se à
diminuição do número de estabelecimentos de produtos alimentares, artigos
pessoais e equipamento para o lar, incapazes de se modernizarem para fazer
frente à concorrência. Os comerciantes, já idosos e pouco receptivos às
mudanças, aproveitaram o novo contexto comercial para se aposentarem. Acresce
que a influência dos centros comerciais mais próximos e de algumas insígnias
especializadas que se têm instalado na sua envolvência, fazem com que diversos
ramos de actividade não consigam vingar na Quinta do Conde, como é o caso do
pronto-a-vestir, sapatarias, lojas de informática e telecomunicações, tendo já
encerrado alguns dos mais antigos (Tomé, 2011).
Com a mudança de paradigma na construção civil na Quinta do Conde (passagem da
auto-construção de moradias unifamiliares para a construção de edifícios
bifamiliares e plurifamiliares por empresas especializadas) houve também uma
redução do número de empresas de materiais de construção; ao invés, assistiu-se
à abertura de várias agências imobiliárias (uma das actividades com maior
sucesso na década de 90), uma vez que o mercado de venda e aluguer de imóveis
se mantém dinâmico.
Os estabelecimentos de comércio e serviços da Quinta do Conde apresentam
algumas singularidades de inserção urbana, em função da evolução do aglomerado.
A maioria das funções são exercidas em edifícios destinados a habitações uni,
bi ou plurifamiliares. O número de edifícios com uso exclusivo de comércio e
serviços ronda os 16,5%. No que concerne à repartição por pisos, 90,1% dos
espaços ocupam o piso térreo e 6,3% o primeiro andar. Cerca de 0,7% das
actividades estão implantadas em caves e as restantes (2,5%), sobretudo
serviços, entre os pisos 2 e 5 (Tomé, 2011).
Importa ainda referir que a Quinta do Conde tem fraca capacidade de atracção
para além do próprio aglomerado, exceptuando duas funções: os laboratórios de
análises clínicas e o Cartório notarial. Os supermercados da Quinta do Conde
também têm aumentado a área de influência, levando alguns moradores de azeitão
e Fernão Ferro a fazer aí compras. Ainda assim, muitos desses consumidores
fazem-no por opção, uma vez que têm outras alternativas nas suas áreas de
residência (Tomé, 2011).
VI. CONCLUSÃO
Os espaços suburbanos são hoje áreas multifuncionais e multipolares, onde
existe uma diversidade de actividades de comércio e de serviços, fragmentando o
espaço urbano e dificultando a sua delimitação geográfica. Estes espaços ' sem
cultura, história e identidade ' foram construídos em torno da cidade central
(a cidade velha, com história e grande pólo dinamizador da região) e dos
múltiplos pólos dispersos pelo vasto território e com funções distintas
(residência, emprego, equipamentos colectivos e espaços de recreio e lazer),
permitidas pelo transporte individual motorizado. Para esta situação também
contribuíram as AUGI, que, apesar de todos os aspectos negativos associados,
foram uma resposta para o problema da habitação que existia em Portugal
evitando maior proliferação de formas de habitação precárias como os bairros de
barracas, facilitando a adaptação de um novo modo de vida com formas
complementares de rendimento.
Atendendo à época e ao contexto histórico em que surgiu, o loteamento ilegal da
Quinta do Conde apresentava diversas características que facilitaram a sua
reconversão como a estruturação e hierarquização do sistema urbano e viário,
com um traçado ortogonal; a evolução da ocupação do território, gerida nas
primeiras décadas por António Xavier de Lima e a afectação de áreas para a
construção de equipamentos colectivos. Contudo, importa não esquecer, por
exemplo, que a hierarquização do sistema urbano se revelou deficiente, os
arruamentos demasiados estreitos e os lotes com áreas insuficientes, sobretudo,
os que se destinavam aos espaços e equipamentos públicos, o que condicionou, e
ainda condiciona, o desenvolvimento do comércio e dos serviços. Neste sentido,
urge ultrapassar ou, pelo menos, tentar minorar alguns destes problemas,
designadamente: (i) a rede viária, reorganizada no início desta década com o
objectivo de fluir melhor o trânsito, mas que ainda é problemática nalguns
pontos da vila; (ii) a insuficiência de bolsas de estacionamento; (iii) a
integração deficitária entre espaços pedonais e espaços de comércio e de
serviços; (iv) a não articulação entre espaços de recreio e lazer e os espaços
afectos a usos terciários; (v) a criação excessiva de espaços destinados ao
comércio e serviços na década de 90, para os quais não há procura e, por isso,
estão (e estarão) sem ocupação; e (vi) a ausência de capital para investir e de
visão estratégica dos empresários locais.
Os resultados desta investigação podem não ser generalizáveis a outras AUGI,
uma vez que as realidades são muito diversas. Por conseguinte, cada AUGI deve
ser analisada sem preconceitos ou estigmas sociais, visto que a falta de
qualidade do espaço urbano não depende apenas da origem clandestina do
aglomerado; muitos loteamentos legais apresentam igualmente um défice de
qualidade. Contudo, esta investigação teve como mais-valia: estudar as AUGI por
prismas menos convencionais, o que deve ser incentivado; sintetizar as
dinâmicas do comércio e serviços em espaços suburbanos específicos, em
detrimento da tradicional visão dicotómica centro/periferia; e contribuir para
a difusão de produção científica sobre estas temáticas e, em particular sobre a
Quinta do Conde, uma vez que ela ainda é diminuta.