António Gama ou uma “certa tradição geográfica”
NOTÍCIA
António Gama ou uma “certa tradição geográfica”
Jorge Gaspar1
1Centro de estudos geográficos do instituto de geografia e Ordenamento do
território da Universidade de Lisboa, Universidade de Lisboa
Estava aqui em Alvito a iniciar uma nota sobre os Colóquios ibéricos de
geografia e a recordar amigos a partir dos meus encontros com Horácio Capel,
quando a Ana me veio comunicar o telefonema da Isabel Boura… o António Gama
falecera há pouco mais de um quarto de hora. O Gama foi precisamente um dos
mais entusiásticos e valiosos iniciadores dos Colóquios Ibéricos, nesses já
longínquos e utópicos anos 70.
Este 2014 que ainda não acabou, foi o annus horribilis, marco negro a assinalar
desgraçadamente o inverno de uma vida cujo mapa procurei desenhar com rigor,
mas que nesta etapa deu tantas voltas que tenho dificuldade em reencontrar o
norte. Por isso me quedo tantas horas de tantos dias a procurar no labirinto da
memória onde poderei encontrar os que se foram, os meus bem amados irmãos Vítor
e António, outros amigos tão próximos, e agora também o António Gama, nosso
companheiro de muitas experiências geográficas que visito tantas vezes no meu
mapa de memórias.
Deixou-nos um dos mais prometedores geógrafos da geração imediatamente a seguir
à minha: o António Gama Mendes. Culto, dotado de uma inesgotável curiosidade
científica, crente numa geografia grandiosa, sem um perímetro bem delimitado.
Recordo-o, acima de tudo, como companheiro de tertúlias e colega de excursões,
sempre muito empenhado nas tarefas do trabalho de campo, em que era excelente;
sem dúvida dos melhores discípulos do nosso mestre Alfredo Fernandes Martins, a
que todos carinhosamente tratávamos por Fred, como depois, com a passagem dos
anos, fomos também acarinhando o António, com o terno tratamento de Gama.
Creio que comigo, muitos são os amigos e colegas que sofremos com o facto do
Gama não se ter afirmado na vida académica como teria merecido e a Universidade
também. Por isso, quero lembrá-lo já e espero que outros o façam
reiteradamente: geógrafos e colegas de outros saberes, sucessivas gerações dos
seus estudantes e docentes ficaram a dever-lhe muito. O Gama esteve sempre
pronto a ajudar no aprofundamento de um conceito, nos caminhos possíveis para
uma pesquisa, na facilitação do acesso às bibliografias, mesmo quando isso
significava o gasto do seu tempo que tanta falta lhe fazia, como a diminuição
da eficácia nas suas tarefas de docente e investigador, ou seja, a “carreira”.
O António Gama deixou-nos excelentes textos, exaltantes discussões, críticas
rigorosas. Antes de mais, era um grande leitor, lia muito e bem, e dessas
leituras nunca deixava de nos dar conta. Espero que em breve sejam reunidos os
trabalhos científicos de António Gama, os publicados e, se possível, os
inéditos, inclusive os que de há anos vinha desenvolvendo para apresentar como
dissertação de doutoramento. Enquanto mentor desse projecto, lamento que ele
não o tenha “fechado” num momento adequado… mas o Gama era assim, queria sempre
ir mais longe, actualizar a bibliografia, conferir as últimas estatísticas,
discutir hipóteses alternativas.
Entretanto, não podemos nem devemos esquecer que António Gama publicou um
conjunto de ensaios muito valiosos, nalguns casos pioneiros, nomeadamente nos
domínios da geografia e da sociologia dos tempos livres e do lazer, bem como
reflexões de grande actualidade sobre os fenómenos sociais vinculados ao
território, à urbanização difusa e ao uso do tempo.
António Gama mantinha em permanente tensão a teoria e a prática, a abordagem de
gabinete e o trabalho de campo, a ciência da natureza e a ciência social, que
se articulam na geografia. Assim, poderia ser tão fascinante a discorrer sobre
o pensamento fundacional da geografia Humana francesa, de Jean Brunhes e Vidal
de la Blache a Yves Lacoste e a Jacques Levy, como a aprofundar as dimensões
mais crípticas do processo criativo em Walter Christaller ou Alfred Weber. Sem
esquecer o entusiasmo, por vezes voluptuoso, com que apresentava a diferentes
audiências, os seus pensadores de estimação: Gaston Bachelard, Gilles Deleuze,
Jean Baudrillard, Jacques Derrida, ou … e estes entusiasmos aconteciam muitas
vezes num comentário a propósito de um texto ou afirmação de um ou de outro
colega, mais novo ou mais velho, numa verdadeira demonstração de contributo-
dádiva desinteressada.
Em contraponto, mas sempre no mesmo registo de intelectual-cientista em plena
pureza, ocorriam as demonstrações performativas perante uma paisagem campestre
ou num encadeado aparentemente insolúvel de complexas estruturas
geomorfológicas. Então, talvez sem se dar bem conta disso, era um continuador
do seu mestre Fernandes Martins, mas também de outros desvendadores das formas
de relevo da nossa meseta, Orlando e António Ribeiro ou António de Brum
Ferreira, cujas performances sugeriam a convocação de grandes artistas das
formas visuais e auditivas.
Tenho bem presente a última vez em que o presenciei numa dessas “demonstrações
performativas”, há dois anos, nas Portas de Ródão, no contexto da produção de
uma evocação fílmica de Orlando Ribeiro: o discurso surpreendente de António
Gama transportou-me para outros gloriosos momentos vividos ao longo de décadas
naquele território mítico do “Atlas de Portugal” que se estende entre o
Mondego e o Tejo. Ouvindo e observando António Gama recordava, como se
estivessem ali presentes, alguns dos meus mestres da Geografia de Portugal.
Além dos múltiplos momentos de deleite intelectual que tive a sorte de viver (e
de poder recordar) com o António Gama, que nos ajudava a ver mais além nas
leituras comuns ou quando nos apresentava as novidades da geografia e das
Ciências sociais, quero também lembrar o amigo festivo, dos passeios, das
brincadeiras, dos percursos e descobertas de comeres e beberes.
Durante anos, na companhia de Rui Jacinto, Isabel Boura e de outros amigos,
batíamos, amiúde, Coimbra e arredores, a visitar tascas, restaurantes e
retiros, a provar novidades e a revisitar clássicos. Um sem número de memórias
palatais, que me vão acompanhar na celebração da amizade que intercambiámos ao
longo de quase 40 anos.
E agora que regresso a esses bons momentos do passado não me sai da ideia um
longo fim de tarde na Serra da Estrela, quase a entrar no serão, na aldeia do
sabugueiro, onde, em gulosa tertúlia, íamos despejando sucessivas travessinhas
de pastéis de bacalhau (quase tão bons como os da minha mãe) que saíam da bem
cheirosa cozinha. Recordo bem a quentura, o aconchego do interior… cá fora era
inverno e, talvez por isso, não me consigo lembrar como saímos de lá.
Releio agora o que naquele último e triste dia do ano escrevinhei sobre o Gama.
Foi assim que, no momento, recordei o meu amigo e não sei também como agora vou
sair daqui!...
Esta é a memória que guardo de António Gama, um académico utópico que sonhava
com um estudo geral, aberto às gentes e aos territórios, livre de correrias,
burocracias e carreiras. Mas hoje não quero nem é já tempo para me queixar da
Universidade. Hoje é só uma melancólica tristeza que me encaminha para a
resignação e, acima de tudo, o desejo de silêncio para enaltecer o legado de
um Camarada e amigo.
Alvito, 31 de Dezembro de 2014 e Lisboa, 1 de Março de 2015