António Gama: um geógrafo peculiar
NOTÍCIA
António Gama: um geógrafo peculiar
João Ferrão1
1Instituto de Ciências sociais, Universidade de Lisboa. E-mail:
joao.ferrao@ics.ulisboa.pt
Não sei se António Gama alguma vez plantou uma árvore. Sei que não escreveu “o”
livro (a tese de doutoramento) e que não teve filhos. Mas isso não o impediu de
ter influenciado sucessivas gerações de alunos e colegas, nas aulas ou em
longas tertúlias, e de ter maravilhado inúmeras crianças, com os bonecos
feitos de miolo de pão que surgiam das suas mãos, quase que por milagre,
durante os almoços e jantares de grupo.
António Gama faz parte de uma geração de charneira. Filhos do maio de 68,
bafejados pela Primavera Marcelista e protagonistas do período pós-25 de Abril,
muitos dessa geração contribuíram, de modo voluntarioso e empenhado, para abrir
a ciência, então vista como necessariamente neutra, à política, bem como a
academia, ainda por muitos encarada como uma torre de marfim, à sociedade. A
geografia, uma ciência humana de base naturalista, e Coimbra, uma cidade
universitária rigidamente segmentada entre estudantes e futricas, tornavam
essa tarefa particularmente imperiosa.
É nesse contexto social e histórico que nasce na geografia a primeira geração
de pensamento múltiplo: formada de acordo com as perspectivas tradicionais já
em declínio noutros países mas ainda dominantes em Portugal, influenciada pelas
correntes neopositivistas de origem anglo-saxónica então emergentes em todo o
mundo ocidental mas crítica, a partir de referenciais teóricos e ideológicos
distintos, tanto das primeiras como das segundas. É uma geração ecléctica e
contraditória, que compensa a fragilidade de muitas das suas posições com o
entusiasmo com que as defende e as procura colocar em prática na Universidade,
nos departamentos de geografia e nas aulas. E é, também, a geração que fecha o
ciclo das escolas científicas regionais ou nacionais, com precursores,
fundadores e patronos bem identificados, para se envolver na construção de
conhecimento científico numa óptica transnacional, para alguns talvez mesmo
universal.
António Gama é um dos últimos representantes da escola de geografia de Coimbra
e um dos primeiros a romper explicitamente com ela. Francófono e francófilo, é
sobretudo a autores de língua francesa, ou de diferentes nacionalidades mas com
períodos de exílio em frança (como Milton santos), que recorre no seu esforço
de estender a geografia às ciências sociais, trazendo as teorias sociais para a
geografia e levando as questões do espaço para as ciências sociais, e de
entender a evolução da disciplina à luz da história e da filosofia do
pensamento científico. Ao contrário de outros geógrafos da sua geração, mais
focados no mundo anglo-saxónico e em autores do domínio da geografia, António
Gama enceta um percurso relativamente singular, beneficiando, sem dúvida, dos
contactos e debates com amigos e colegas do Centro de estudos sociais.
Mas a preocupação pela teoria e pela filosofia, sempre presente nas aulas e nas
conversas infindáveis que se prolongavam noite fora numa tasca, na casa de um
amigo ou simplesmente de pé no passeio de uma qualquer rua, dava lugar a
análises pormenorizadas e descritivas, recheadas de factos, datas, nomes e
outras referências empíricas quando percorríamos uma cidade, atravessávamos um
vale, visitávamos lugares mais ou menos recônditos, ou subíamos a um morro para
observar a paisagem. Com os olhos brilhantes de entusiasmo, as suas explicações
mostravam que a velha geografia dos Mestres estava mais viva do que julgávamos
e que era bem mais interessante do que os debates teóricos e filosóficos que
tivéramos meia hora antes deixavam antever.
António Gama amava os livros e a leitura, a reflexão e a controvérsia. Tinha
relações de amor-ódio com figuras que considerava como sendo de referência –
desde o jornalista francisco sousa tavares, então cronista do vespertino a
Capital, ao geógrafo Paul Claval, tantas vezes por ele citado nas aulas –
exactamente porque os admirava e, por isso, o incomodava que não
correspondessem às suas expectativas, que não partilhassem as suas
perspectivas, que não lhe indicassem caminhos que ele gostaria de ter
descoberto.
Generoso e convivial, António Gama gostava mais de tratar dos outros do que de
si próprio. Na verdade, não era um tribuno eloquente nem um escritor profícuo.
Cultivava, com orgulho e eficiência, uma oralidade de proximidade: apoiar os
alunos e ex-alunos, divulgar junto dos colegas o último artigo que tinha lido
ou o livro acabado de comprar, comentar com os amigos acontecimentos recentes,
enquadrando-os e problematizando-os. A sua influência era capilar, por vezes
quase subliminar: sim, foi o Gama que indicou, que leu, que disse, que
explicou. Uma partilha serena e horizontal, sem tiques de autoritarismo
professoral ou de superioridade de quem leu mais, de quem sabe mais. A sua
relação com os outros baseava-se, em grande medida, nesse tipo de partilha
permanente. Nunca me pareceu aspirar a ser Mestre, o novo Mestre, da Geografia
da Universidade de Coimbra. Gostava, isso sim, de ser reconhecido como uma
fonte credível onde quem quisesse poderia beber com proveito. A iluminá-lo, a
imensidão de livros amontoados que em sua casa o cercavam literalmente, mesmo
nas divisões mais improváveis.
Distraído e desorganizado, apaixonado e crédulo, António Gama deixou-se enredar
pela vida – ou ele próprio a enredou – em momentos decisivos do seu percurso
pessoal e profissional. Podia ter sido o líder natural da geração de geógrafos
portugueses do pós-25 de Abril. Não foi, talvez porque esse objectivo não fazia
parte das suas ambições. Afinal, o seu registo sempre foi o da proximidade e da
interacção pessoal. António Gama também podia ter sido o embrião de uma nova
escola de geografia de Coimbra, ecléctica e cosmopolita mas agarrada ao
terreno, calcorreável, tal como os velhos Mestres da geografia a ensinavam e
praticavam. Terá chegado cedo demais?
Munidos das mais sofisticadas técnicas bibliométricas, os estudiosos da ciência
da segunda metade do século xxi terão dificuldade em encontrar António Gama num
vasto firmamento repleto de estrelas científicas. Mas António Gama não é uma
estrela, é um cometa. E os cometas, quando passam, iluminam-nos de tal forma
que colocam em segundo plano qualquer estrela, mesmo a mais brilhante.
Em 31 de Dezembro de 2014, um dia depois de ter feito 66 anos, António Gama
faleceu em Coimbra, a sua cidade, uma cidade que conhecia e amava como poucos.
Partiu um cometa invulgar, peculiar, com destino desconhecido mas, estou certo,
com um período de retorno curto. Esse retorno é, afinal, uma tarefa dos que, da
geografia ou de outras áreas do saber, gostam de valorizar, na academia ou fora
dela, pessoas e ideias que deixam rasto, que marcam uma época e lugares
específicos, e que, por isso, merecem ser recordadas, debatidas e celebradas.