Mulheres nas margens: a violência doméstica e as mulheres imigrantes
Introdução
A violência nas relações de intimidade permanece, na atualidade, como uma
relevante fonte de exclusão social. Com uma crescente visibilidade na esfera
pública, traduzida num claro aumento das denúncias, a violência nas relações
íntimas tem sido objeto de diversas políticas dirigidas à prevenção dessa
violência, à sua criminalização e ao apoio às vítimas (Gelles, 1993).
Os diversos estudos sobre a violência nas relações de intimidade evidenciam,
claramente, que esta é perpetrada, na sua grande maioria, por homens sobre
mulheres (Lisboa 2009; Dias, 2004; Silva, 1985). As causas desta violência são
atribuídas a uma construção social de género desigual e a uma estrutura social
assente em conceções patriarcais (Dias, 2007). Esta ótica de análise rompe com
uma série de visões tradicionais e modelos psicológicos que catalogam a
violência doméstica como uma questão exclusivamente familiar ou como um
problema do foro psicológico entre duas pessoas. A violência doméstica sobre
mulheres não deve, contudo, para um cada vez maior número de autores/as, ser
analisada tendo em conta somente a categoria género, nem a luta contra o
patriarcado. Não está em questão a menor relevância destes aspetos ' em última
análise, a mulher é vítima de violência por ser mulher ', mas apenas se
contesta a sua exclusividade. Partindo da teoria de interseccionalidade
(Crenshaw, 1991), o argumento base desta corrente, na qual se inserem várias
autoras feministas pós-coloniais, é o de que as mulheres vítimas de violência
experienciam, simultaneamente, diferentes formas de opressão e de controlo
social, uma vez que estão imersas em contextos sociais onde se cruzam
diferentes sistemas de poder (como a raça, a etnia, a classe social, o género e
a orientação sexual). Esta perspetiva veio romper com uma conceção feminista
mainstream da violência contra as mulheres e, em especial, da violência
doméstica. É assim que, por exemplo, diversos estudos têm vindo a demonstrar
que as mulheres negras sofrem violência por parte dos seus companheiros por
serem mulheres e por parte do sistema por serem negras (e.g. Allard, 1991).
Na verdade, as situações de violência nas relações de intimidade podem ser
agravadas por fatores como o estatuto legal, a classe social, a cultura ou a
etnicidade, entre outros. Para além disso, a pouca familiaridade com a língua,
o difícil acesso a empregos adequados, o conhecimento insuficiente dos seus
direitos, o isolamento da comunidade imigrante e o distanciamento das redes
sociais e familiares de apoio também contribuem para reduzir a capacidade das
mulheres imigrantes se protegerem contra situações de violência e abuso
(Steibelt, 2009). Estes fatores contribuem para que estas mulheres se encontrem
num lado ainda mais obscuro da vida familiar.
Neste artigo procuramos refletir sobre o facto de algumas mulheres se
encontrarem nas margens da ajuda dada às mulheres em situação de violência nas
suas relações de intimidade. Em particular, abordamos a invisibilidade e os
obstáculos que as mulheres imigrantes em Portugal enfrentam quando se encontram
numa situação de violência doméstica4 .
1. Mulheres imigrantes: da invisibilidade à demonização
Uma das mais interessantes alterações nas migrações transnacionais consiste na
sua feminização. Com a expressão feminização das migrações não se pretende,
apenas, dizer que o número de mulheres nos fluxos migratórios tem vindo a
aumentar exponencialmente, mas também, e sobretudo, que é necessário uma
análise qualitativa dessas estratégias migratórias. Contudo, e apesar de hoje,
nos fluxos Sul-Norte, encontrarmos números equiparáveis de mulheres e de
homens, o viés de género nas migrações não está presente nas políticas de
migração, nem tão pouco nos programas de apoio aos/às imigrantes. Para tal
contribui a ausência das mulheres na história das migrações, quer porque as
suas estratégias migratórias passavam, principalmente, por reunificações
familiares ou estavam dependentes da migração masculina, quer porque elas eram
tidas apenas como acompanhantes do seu pai, marido, familiar e, frequentemente,
não lhes era pedido sequer o passaporte, pelo que a história das migrações é
history e não herstory (Engle, 2004:8). Deste modo, e como refere Françoise
Gaspard (1998), embora as mulheres venham, desde há muito tempo, se assumindo,
progressivamente, como sujeitos ativos de estratégias migratórias e não apenas
como os suportes que as viabilizam, no Norte, sobretudo na Europa Ocidental, o
rosto do migrante persiste em ser o rosto de um operário e, portanto, de um
homem.
Nos últimos anos, tem sido maior a visibilidade das mulheres imigrantes, desde
logo pelo aumento da migração feminina autónoma. Mas, também, a mutilação
genital feminina, o uso do véu nas escolas francesas e a poligamia invadiram o
discurso político de muitos países Ocidentais, revelando, de uma forma
polémica, a presença das mulheres migrantes, em especial as de cultura
muçulmana5 . Estas questões, longe de servirem de base a uma reflexão profunda
sobre a integração das mulheres migrantes ou sobre o multiculturalismo, foram
utilizadas como pretexto para se visualizar, uma vez mais, os elementos
culturais e religiosos dos imigrantes como perturbadores. De invisíveis, as
mulheres migrantes passaram, pois, a diabolizadas (Gaspard, 1998). Neste
processo, emerge uma rhetoric of othering (Riggins, 1997), isto é, um discurso
sobre o outro, neste caso sobre a outra mulher, marcado pela
orientalização dos outros, pela suspeita ou pelo desenvolvimento de um
medo face a ele/a. A construção deste discurso e a fixação do outro, numa
imagem à qual fica preso, tem consequências no que se refere à análise das
situações de violência a que estas mulheres são sujeitas, em especial nos
países de destino do Ocidente. Facilmente, são criados e disseminados
estereótipos acerca das mulheres imigrantes, que se reproduzem em determinados
meios fundamentais, como, por exemplo, nos tribunais, nas polícias ou nos
serviços de atendimento. Os estereótipos sobre estas mulheres assentam,
maioritariamente, em três pressupostos: elas são seres passivos, submissos e
incapazes de tomar conta de si mesmas; podem ser assimiladas pela cultura
ocidental; vêm de culturas marcadamente patriarcais e violentas (e.g. Kapur,
2005; Okin, 1999). Tais pressupostos comportam vários perigos. Um primeiro
perigo é o de camuflar os problemas que afetam essas mulheres e que não têm
origem numa comunidade individual onde aquela mulher está inserida, ou
porventura nem no seu país, mas que são mais globais e que são, também, fruto
da globalização económica neoliberal, de legados coloniais, de racismo, etc. Um
segundo perigo consiste em negligenciar-se outros problemas que afetam a vida
destas mulheres e que não são culturais, mas sociais e económicos, como o
emprego, a habitação e a saúde. O enfoque em questões culturais facilmente pode
conduzir a uma desresponsabilização do Estado do país recetor, em termos de
necessidade de ampliação e efetivação das suas políticas sociais. Um terceiro
risco é o de se perpetuar uma visão das mulheres do Sul como vítimas, colando-
as a uma passividade que teima em não compreender que também estas mulheres são
capazes de lógicas emancipatórias e de agir contra o patriarcado (Spivak,
1994). Finalmente, um último aspeto é que esta sobreatenção com as práticas
culturais destas mulheres potencia uma hierarquização e um essencialismo
cultural que tende a imputar a violência contra as mulheres às culturas não
ocidentais, ao mesmo tempo que menoriza a violência que ocorre nas sociedades
ocidentais, perpetrada por cidadãos nacionais.
As comunidades imigrantes ficam, obviamente, fragilizadas com estas assunções,
porque a outra mulher é fixada numa imagem de culturas violentas. Isto tem
consequências práticas graves no que se refere à violência doméstica. Veja-se,
como exemplo, o acórdão de uma juíza alemã, de 2007, em Frankfurt, que teve de
tomar uma decisão num caso de uma jovem marroquina muçulmana que queria o
divórcio antes do prazo mínimo previsto pela legislação alemã, argumentando que
o marido a agredia e ameaçava. A juíza decidiu não aceitar o pedido da mulher,
baseando-se, para tal, no Corão6 , argumentando que ela devia saber que o
marido tinha sido criado num país islâmico, o que lhe dava o direito,
garantido pela sua religião, de a castigar. Esta é uma compreensão que perde
de vista o primado da proteção dos direitos humanos da mulher e que a coloca
numa situação mais vulnerável, por ter uma outra religião e por ser de outra
nacionalidade. Ou seja, quer a invisibilidade, quer a demonização das mulheres
imigrantes têm como consequência uma maior desproteção destas em situação de
violência. Se a violência nas relações de intimidade é, por si só, uma
obscuridade da vida familiar, é nossa hipótese que tal obscurantismo é ainda
mais marcante quando falamos nas outras mulheres, as não brancas, as
imigrantes, as irregulares.
2. Violência e mulheres imigrantes: problemas que persistem
As entrevistas que temos vindo a realizar7 sugerem um conjunto de problemas que
as mulheres imigrantes enfrentam quando se encontram numa situação de violência
doméstica. Longe de esgotarmos a enumeração e a complexidade de tais problemas,
pretendemos aqui, somente, enunciar aqueles que, no cômputo geral das
entrevistas realizadas a mulheres, a ativistas, a técnicos/as, a órgãos de
polícia criminal, a magistrados/ as, entre outros/as, foram mais referidos.
O trajeto percorrido pelas mulheres vítimas de violência é, muitas vezes, um
trajeto longo e solitário. O receio de represálias, o sentimento de vergonha, a
dependência económica, o medo de perder os filhos, entre outros aspetos
igualmente relevantes, contribuem para que a violência permaneça no espaço
familiar e não seja denunciada. No caso das mulheres imigrantes, o caminho
percorrido até à denúncia pode ser ainda mais longo.
Em primeiro lugar, há comunidades imigrantes que se encontram isoladas cultural
e socialmente, o que constrange a mulher na procura de intervenção oficial para
resolver a situação de violência na qual se encontra. Nestes casos, a linguagem
pode ser uma barreira muito significativa na tentativa destas mulheres
procurarem ajuda. A entrevista de Maria, uma mulher russa de 29 anos de idade
é clarificadora a este respeito. Maria veio há cerca de 25 meses para
Portugal, onde casou com um cidadão russo. Não falar português tornou-se um
obstáculo sério para procurar ajuda: Só comecei a falar português quando
cheguei à casa abrigo. Eu vivi 9 meses com o meu marido e a minha sogra, eu
aprendi português nos livros, mas não tive companheiros com quem falar. ( ) Uma
vez, a vizinha chamou a ambulância, mas eu não sabia como comunicar, também não
queria dizer, porque não sabia o que dizer e o que faria depois. O meu marido
sempre me disse: tu aqui não podes fazer nada. Tu aqui não falas, não tens
dinheiro, não tens documentos, não tens nada. Por isso, eu posso fazer o que
quiser contigo'. ( ) A única amiga que tinha também era russa, mas o meu marido
e a minha sogra proibiam-me de estar e falar com ela. Ela foi comigo à polícia,
porque eu não falava português. Foi ela que me ajudou, para falar, para fazer
as queixas. (E1, Maria)
Sublinhe-se que estas situações podem assumir contornos ainda mais gravosos
quando as mulheres não trabalham fora de casa, sendo-lhes difícil estabelecer
laços de sociabilidade para lá da esfera familiar.
O isolamento contribui, ainda, para um desconhecimento dos seus direitos e do
quadro normativo regulador da violência enquanto crime no país de destino: Na
Rússia, quando um homem bate na mulher, a polícia não ajuda e diz não quero
saber, se um homem bate é porque tem razão'. Eu não sabia que aqui havia estas
leis da violência doméstica, que havia ajudas. (E1, Maria)
Um outro problema apontado prende-se com o receio das polícias e das entidades
legais. As imigrantes ilegais estão particularmente vulneráveis, porque evitam
relatar a sua vitimização à polícia com medo de serem deportadas. Assim,
sentem-se coagidas a permanecer em silêncio sobre os crimes cometidos na rua ou
em casa, o que as faz sentir mais amedrontadas e mais cautelosas, limitando as
suas vidas ainda mais severamente (Madriz, 1997). Como consequência, a ajuda é
procurada por estas mulheres em situações já de extrema gravidade: As
agressões sofridas pelas mulheres imigrantes ilegais são gravíssimas. Quando
nos chegam é porque já não lhes foi possível suportar mais, porque enquanto
conseguem, vão suportando. Têm medo da polícia, de serem presas, de serem
obrigadas a voltar para o seu país de origem São situações muito complicadas.
(E2, Instituto Nacional de Medicina Legal)
Note-se, ainda, que, quando o estatuto legal da mulher imigrante está
dependente do seu marido, empregador ou pai, a probabilidade de ela sofrer, em
silêncio, uma situação de violência, por parte de qualquer um deles, é maior.
As repercussões que temem não se restringem à deportação. As mulheres
imigrantes podem não estar dispostas a colaborar em nenhuma estratégia baseada
na criminalização, uma vez que desconfiam do sistema criminal, do qual querem
proteger os respetivos companheiros, não obstante serem agressores. Isto é
particularmente verdade para as mulheres não brancas. De acordo com Levit e
Verchick (2006), estas mulheres enfrentam problemas adicionais porque têm
consciência que, ao procurarem proteção policial, estão a sujeitar o agressor a
um sistema de justiça criminal racialmente preconceituoso. Assim, as mulheres
não brancas enfrentam, simultaneamente, o dilema da falta de policiamento
(underpolicing) e ultra agressividade (overaggressive policing) da polícia.
Outras dificuldades surgem já após a procura de ajuda por parte destas
mulheres. Para além da língua, o estatuto legal é, para muitas mulheres, um
obstáculo quase intransponível. Vários serviços de emergência social encontram-
se disponíveis apenas para cidadãos/ãs nacionais ou cidadãos/ãs estrangeiros/as
com a sua situação regularizada:
Quando se liga para o 1448, a primeira coisa que perguntam é se a pessoa tem
documentos ou não, se está ou não regularizada. Se a pessoa não está
regularizada, normalmente a resposta é que não podem fazer nada. Nas casas
abrigo, se as coisas não mudaram, a Segurança Social não subsidia as vagas das
mulheres que não estão regularizadas. Portanto, a maior parte das instituições
não acolhe mulheres não regularizadas nas casas abrigo. As que acolhem é por
conta e risco delas e financiado por elas. A verdade é que nisto vemos a
diferença entre a sociedade civil e o Estado. (E7, ONG)
De facto, a ausência de autorização de residência é um problema com o qual se
confrontam várias ONG que têm a seu cargo a gestão de casas abrigo, uma vez que
as mulheres têm de estar numa situação regularizada para poderem ser acolhidas.
No entanto, as entrevistas realizadas com algumas ONG permitiram-nos perceber
que, ainda que sem apoio financeiro estatal, as mulheres imigrantes numa
situação de ilegalidade são acolhidas.
Transparece nas entrevistas realizadas uma sensibilização crescente por parte
dos serviços de proteção e das polícias ' do Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras (SEF) e das chamadas polícias de proximidade, Polícia de Segurança
Pública (PSP) e Guarda Nacional Republicana (GNR) ' para o fenómeno da
violência doméstica, quer exercida sobre mulheres em geral, quer sobre mulheres
imigrantes:
A relação dos imigrantes e a polícia é sempre complicada, mas em termos de
violência, aos poucos e poucos, a polícia está a fazer um grande esforço, está
mais próxima dos cidadãos e dos imigrantes, o próprio SEF, que há uns anos era,
de facto, uma polícia de fronteiras pura e simples, agora tem uma abordagem
completamente diferente, tem um call center com medidas interculturais, com
diversas línguas. Por exemplo, um imigrante em situação irregular já não tem o
mínimo receio de entrar num CNAI [Centro Nacional de Apoio ao Imigrante] e nós
temos uma delegação do SEF aqui. O ser regular ou irregular já não é um
obstáculo para recorrer aos serviços; foi feito um grande caminho nesse
sentido. (E3, ACIDI)
Apesar das melhorias, muitas respostas são, ainda, marcadas por uma
significativa discriminação, com base no género, mas também na origem e na
etnia. Vários/as autores/ as têm vindo a demonstrar que, nas respostas do
sistema de justiça, facilmente são identificadas componentes de discriminação
baseadas no género, mas também na etnia, na classe social, na orientação
sexual, entre outras. Como referem Sokoloff e Dupont (2005: 5), a disseminação
de caracterizações negativas das mulheres negras como sendo agressivas,
violentas, resilientes, tem impedido estas mulheres de receber um tratamento
igualitário e atencioso por parte do sistema judicial, em particular
magistrados/as, agentes policiais e funcionários/as dos tribunais. Segundo a
dirigente de uma ONG:
Houve uma mulher negra, que vivia numa zona, num bairro, onde há muitos
africanos e que telefonou várias vezes para a polícia porque estava a ser
agredida pelo marido e a polícia não respondeu ao primeiro nem ao segundo
telefonema. Essa mulher teve de telefonar para nós e fomos nós que telefonámos
à polícia a perguntar o que se passava, porque não tinham ainda ido a casa
daquela mulher, e um dos polícias disse-me que naqueles sítios existiam
situações dessas todos os dias: essa gente é assim'. Acham que no caso delas a
violência é uma coisa cultural. Mas quando foi uma mulher francesa a telefonar
foram logo porque pela pronúncia perceberam que era branca. Portanto, apesar de
esta ser uma situação tendencialmente excecional, ainda acontece. (E4, ONG)
Este essencialismo cultural é visível, também, em algumas decisões judiciais,
nas quais são ainda notórios preconceitos relativamente ao papel social da
mulher. Em 1989, o Supremo Tribunal de Justiça ' pronunciando-se sobre uma
decisão de primeira instância que condenava dois jovens pela violação de duas
estrangeiras, que lhes tinham pedido boleia, ' lavrou um acórdão que ficou
célebre, porque, embora confirmando a condenação, tendeu a desculpabilizar os
dois rapazes:
( ) se é certo que se trata de crimes repugnantes que não têm qualquer
justificação, a verdade é que, no caso concreto, as duas ofendidas muito
contribuíram para a sua realização. Na verdade, não podemos esquecer que as
duas ofendidas, raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para
a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado macho
ibérico'. É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui,
tal como no seu país natal, a atração pelo sexo oposto é um dado indesmentível
e, por vezes, não é fácil dominá-la. Assim, ao meterem-se as duas num automóvel
justamente com dois rapazes, fizeram-no, a nosso ver, conscientes do perigo que
corriam, até mesmo por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde
abundam as turistas estrangeiras habitualmente com comportamento sexual muito
mais liberal e descontraído do que a maioria das nativas ( ).
Como é possível constatar pelo trecho do acórdão citado, neste são tecidas
considerações várias sobre o comportamento das duas mulheres estrangeiras,
nomeadamente sexual. Independentemente do texto da lei, a subjetividade
presente numa decisão judicial, sobretudo por parte de um tribunal de instância
superior, pode ter consequências sérias na definição legal de vítima. Como
mulheres, elas têm de ultrapassar a presunção de que o direito lhes fornece
suficiente proteção. Como mulheres imigrantes, elas têm, ainda, de provar que
merecem tal proteção.
Nos EUA, vários estudos interessantes têm vindo a ser realizados sobre as
decisões judiciais proferidas no âmbito de processos em que a mulher vítima de
violência doméstica acaba por matar o seu agressor para sobreviver. Sharon
Angella Allard (1991) argumenta, não só que mulheres brancas e negras têm um
tratamento diferenciado por parte dos tribunais nestes casos de legítima
defesa, como também que a raça estabelece, estereotipadamente, uma
diferenciação entre as boas e as más vítimas. Segundo a autora, os media e a
disseminação de estereótipos racistas contribuem para uma ideia da mulher
negraque não vai ao encontro da conceção da mulher vítima de violência:
passiva, fraca, submissa, muito emotiva, muito gentil, dependente, receosa,
atemorizada, branca e de classe média.
Grande parte das pessoas entrevistadas alertou, em especial, para a
discriminação que as mulheres brasileiras sofrem na sociedade portuguesa, o que
pode suscitar situações de dupla vitimização ' por parte do agressor e por
parte das instituições ' quando estas se encontram numa situação de violência:
Há um grande preconceito contra as mulheres brasileiras. Houve um caso de uma
mulher brasileira que vivia com um português. Essa mulher era agredida. Em
casa, mas também na rua. Aconteceu essa mulher começar a ser agredida e
insultada pelo marido na rua mesmo antes de chegar a casa, com toda a
vizinhança a assistir e ninguém a socorria ou denunciava porque era
brasileira. (E5, ONG)
Ao estarem veiculadas a uma das nacionalidades predominantes no mercado do
sexo em Portugal (Manuela Ribeiro et al., 2005, 2007), muitas mulheres
brasileiras ficam ligadas a processos de exclusão social e mundos de
precariedade que, naturalmente, poderão, em determinado momento, configurar
situações de violência. Daqui resultam dois riscos. Desde logo, o facto de a
prostituição das mulheres brasileiras ser, esmagadoramente, percebida como uma
opção laboral migratória pode levar a que passem despercebidas situações de
exploração (Santos et al., 2008). Por outro lado, o número de brasileiras na
prostituição também conduz a um processo de passagem do estigma da
prostituição para imigrantes com a mesma nacionalidade. Para tal, não terá sido
indiferente o movimento das Mães de Bragança, e o aproveitamento mediático do
mesmo, que contribuiu para que a sociedade portuguesa despertasse para um
moralismo que se prestou a demonizar as mulheres brasileiras em Portugal9 .
Joana, uma brasileira com 31 anos e que se encontra em Portugal há seis,
contou-nos a sua própria experiência. Joana denunciou o seu companheiro
português à polícia, após vários casos de agressão. Na sequência dessa
denúncia, foi aplicada ao agressor uma medida de coação de afastamento, medida
que, de acordo com Joana, não tem sido cumprida. A trajetória percorrida por
esta mulher tem sido marcada, não apenas pela violência do seu agressor, mas
também pela discriminação por parte de algumas entidades: Levei com agressões
verbais do pai e da mãe dele. Ele a tentar tirar-me as chaves e o telemóvel,
porque percebeu que eu estava a gravar, os pais a arrastarem-me pelos cabelos
pelo chão, ele começou a calcar-me a cabeça com os joelhos. A polícia chega, eu
mostro uma carta onde diz que o (companheiro) não se pode aproximar de mim, a
polícia fala com o pai, com a mãe, com o [companheiro] e ninguém faz nada. E
eu: então, eu tenho essa carta, eu sou leiga no assunto, não sou nenhuma
advogada nem estudei para tanto, mas entendo perfeitamente que está escrito
aqui que ele não se pode aproximar de mim. Se ele fizesse isso, ele era sujeito
a ser preso. E vocês não fazem nada?' E eles disseram: mas, a gente não sabe
se o advogado dele entrou com alguma ação para derrubar esse processo', e eu:
mas vocês vão dar a oportunidade de ele continuar a quebrar a minha casa
inteira?' E o polícia virou-se para mim e como já tinha estado lá diversas
vezes por causa das agressões, por causa da casa, diz: isso já virou uma
pouca-vergonha. Eu se fosse a você, arrumava as suas coisas e ia embora. Em vez
de estar a toda a hora a chamar a polícia. Escusa de estar a chamar a polícia,
porque eu aqui não venho mais. Se for a minha vez de vir, eu não venho' ( ).
Eles dizem sempre que o homem brasileiro é ladrão e a mulher é prostituta. Mas
é mesmo assim que eles nos tratam. Até para encontrar emprego, para nós
brasileiros, é mais complicado. O preconceito é muito grande. (E6, Joana)
Joana é igualmente assertiva no que diz respeito à assistente social que tem
lidado com o seu processo, mesmo quando ainda estava com o seu companheiro:
Queria trocar de assistente social. Para mim ela não é boa assistente social.
Ela trata-me com discriminação. Tudo o que eu lhe peço, ela recusa logo, nem é
vou tentar', é acho que não vou conseguir'. Tudo! Foi o tratamento da minha
filha, quis ir ao dentista, ela acho que não vou conseguir'. Na altura fui com
o (companheiro) e a conversa mudou de figura. Era um português que estava
sentado ao meu lado, e ela disse acho que não vai conseguir' (o tratamento dos
dentes) e ele virou-se para ela e disse: porque é que ela não vai conseguir?
Eu sou português e consigo. Ela não está ilegal. A senhora só tem de ver como é
que ela faz'. Bastou ele falar assim com ela, e ela disse logo como tudo
funcionava: tinha de passar em dois dentistas, tinha de passar no IEFP, para
declarar que estava desempregada, só isso mais nada. E levar isso do dentista
até ela. Depois pensavam qual era o melhor orçamento e pronto. Com ele, foi
outra coisa. Sempre que ia sozinha, era o acho que não vou conseguir'. (E6,
Joana)
Joana tem, no entanto, opiniões favoráveis relativamente a outras
instituições, onde sente que foi tratada sem discriminação e com respeito:
Tenho muito boa opinião do SEF. O CNAI é, para mim, como se pedisse ajuda ao
meu próprio país, porque eles é que nos compreendem e fazem tudo para ajudar.
Eu já sou conhecida lá. (E6, Joana)
Nos seus discursos, as mulheres imigrantes entrevistadas têm opiniões e
experiências diferenciadas relativamente às várias pessoas, instituições e
organizações que têm marcado os seus percursos de sobrevivência de uma situação
de violência numa relação de intimidade. Não podemos, pois, fazer
generalizações no que se refere a uma instituição específica. Não obstante essa
cautela, devemos realçar que todas as mulheres relataram, pelo menos, uma
situação em que foram discriminadas ao procurar ajuda.
Reflexões finais: para uma política do reconhecimento
As mulheres imigrantes, tal como as nacionais, estão sujeitas, no país de
acolhimento, a diferentes formas de violência ' como a violência no seio
familiar, o assédio sexual, a violação, entre outras variadas, e não
exclusivas, formas de violência. Os discursos das mulheres imigrantes que
estiveram numa situação de violência doméstica em Portugal por nós
entrevistadas, são demonstrativos de que os trajetos que estas mulheres
percorrem para se libertarem de uma situação de violência assumem
especificidades que não devem ser negligenciadas. Entre essas especificidades,
encontramos o facto de estas mulheres poderem estar numa situação de
ilegalidade, pertencerem a um grupo cultural minoritário, não falarem a língua
nacional e, como vimos, serem alvo de discriminação e de preconceitos,
inclusive por parte de entidades oficiais. Podemos falar, nestes casos, de uma
dupla vitimação: a perpetrada pelo agressor e a cometida pelas instâncias que
deviam assegurar a proteção daquela mulher.
Na verdade, as formas de discriminação das mulheres imigrantes ocorrem a
diferentes níveis. Não raras vezes, as políticas de imigração, de acesso ao
mercado de trabalho ou aos serviços públicos, entre outras, promovem situações
de discriminação das mulheres imigrantes, em particular as oriundas do Sul
Gobal ou as outras mulheres europeias, para usar o termo de Regulska (1998).
Estas mulheres acabam por ter um acesso menos facilitado aos sistemas de
justiça, de saúde, de segurança social, de educação, às políticas de habitação
e a outras oportunidades socioeconómicas. Como consequência, estas mulheres
estão, igualmente, menos protegidas de situações de violência e, como foi
possível verificar em algumas narrativas, mais dependentes do seu agressor.
As mulheres imigrantes são, assim, remetidas para lá de uma linha abissal que
divide o mundo humano do sub-humano. Para lá dessa linha, os princípios de
humanidade não são postos em causa por práticas desumanas. Falamos de um espaço
que é um não-território em termos jurídicos e políticos, um espaço impensável
para o primado da lei e dos direitos humanos (Santos, 2007). Encontramos, no
fundo, pessoas que não existem, nem no plano social, nem no plano legal. São
espaços construídos, por exemplo, na violência com impunidade. As políticas de
apoio às mulheres vítimas de violência devem combater a obscuridade destes não-
espaços.
Em Portugal, nos Planos Nacionais Contra a Violência Doméstica (PNCVD),
encontramos menções às mulheres imigrantes. Por exemplo, no II PNCVD afirma-se
que: ( ) da coexistência de várias comunidades, com valores e referências
culturais tão diferentes resultam problemas novos, nomeadamente na área da
violência doméstica. ( ) Na aplicação de todas as outras medidas deste Plano as
mulheres imigrantes serão consideradas em igualdade de circunstâncias com as de
nacionalidade portuguesa.10
A menção desta especificidade é crucial num documento definidor das linhas de
orientação política nesta matéria. De facto, as mulheres mais pobres necessitam
de habitação segura; as mulheres imigrantes precisam de não ser ameaçadas com a
deportação; as mulheres estrangeiras necessitam de intérpretes; são necessários
serviços adaptados e que compreendam as especificidades que comportam algumas
culturas e religiões. Como vimos nos discursos das mulheres imigrantes
entrevistadas, algo tão simples como a diferença linguística pode perpetuar
situações de violência e opressão. Ou seja, as políticas, os serviços e as
intervenções têm de ter em consideração as diferenças culturais, entre outras,
das mulheres a que se destinam, bem como as condições estruturais e as
necessidades particulares das diferentes comunidades (Sokoloff & Dupont,
2005). A prática, no entanto, parece ficar, como vimos, em alguns aspetos,
aquém daquelas que são as linhas estratégicas de intervenção. Para tal,
contribui a ideia pré-construída e disseminada nos media, e mesmo nas campanhas
contra a violência doméstica, da mulher branca, europeia, vítima de violência.
Imagens como estas, não só colaboram com a invisibilidade de que há outras
mulheres vítimas de violência, como contribuem para estabelecer uma hierarquia
entre aquelas mulheres que merecem mais ajuda: a mulher branca, mãe de família,
que se sujeita a uma violência. O risco é, portanto, o de se obter uma
definição de vítima que estabeleça hierarquias informadas por valores morais,
que acabem por se traduzir em barreiras legais e/ou práticas, na ajuda
oferecida a estas mulheres.
Qualquer política que se destine a capacitar as mulheres imigrantes em situação
de violência pressupõe, na nossa opinião, um conjunto de pressupostos.
As desigualdades de género em diferentes campos e em várias escalas permanecem
nas nossas sociedades, não obstante mudanças políticas e legislativas que
almejam a igualdade (Silva, 2008). Assim, em primeiro lugar, na esteira de
Nancy Fraser (1997), podemos afirmar que tais políticas devem pressupor
redistribuição, empowerment das vítimas, mas também um reconhecimento cultural.
Isto é, as políticas devem assentar no combate à discriminação e à violência
com base no género, assumindo-se, igualmente, como uma componente de combate ao
patriarcado.
Aquilo para o qual a teoria da interseccionalidade aplicada à violência sobre
as mulheres nos alerta, é que essas políticas tendem a ser ineficazes, uma vez
que não é possível intervir separadamente sobre pessoas que sofrem duplas e
triplas experiências de discriminação, assentes numa experiência de opressão
marcada pelo género, pela classe, pela raça ou pela nacionalidade. Estas
mulheres são confrontadas, não apenas com discriminação com base na
desigualdade de género, mas também com barreiras étnicas e racistas da
sociedade de acolhimento. Como consequência, em segundo lugar, são necessárias
políticas de imigração menos restritivas que não forcem as populações migrantes
a refugiar-se na clandestinidade.
Em terceiro lugar, devemos ter em consideração a posição de alguns/mas autores/
as que estudam a questão da violência sobre as mulheres do Sul Global e que
criticam o discurso universal dos direitos humanos. A sua crítica vai no
sentido de que a universalidade imputada à declaração dos direitos humanos mais
não é do que uma perspetiva ocidental sobre os mesmos, sendo que o Sul continua
a não ter uma voz clara sobre os seus problemas próprios e as suas
especificidades relativamente aos problemas comuns (e.g. Santos, 2004; Kapur,
2006). É necessária uma política de reconhecimento cultural. Desde logo,
considera-se que, quando se fala em direitos humanos das mulheres, é
fundamental perceber que essas mulheres são diferentes e provêm de regiões
cultural e socialmente diversas, ou seja, temos de atender às diferenças
culturais evitando leituras universalizantes.
Em síntese, se é fundamental que o género não seja esquecido na violência nas
relações de intimidade, é imprescindível que não se caia num essencialismo que
entenda as mulheres como categoria homogénea. Com isto, não se pretende
condenar a centralidade do género e o esforço num combate das desigualdades de
género que estão na base da violência exercida sobre as mulheres, mas mostrar
como não se pode prescindir de uma intervenção que tome mais questões em linha
de conta.
Parece-nos, por fim, crucial que qualquer política tenha o claro objetivo de
uma ação transformativa dirigida ao fortalecimento da consciência cidadã e
coletiva destas mulheres, contra as diversas formas de opressão que as procuram
subalternizar, não as reduzindo, contudo, à categoria de vítimas passivas, nem
as submetendo a processos de estigmatização e exclusão.
Notas
1 Este artigo resulta do Projeto Trajetórias de Esperança: itinerários
institucionais de mulheres vítimas de violência doméstica, financiado pela
Fundação para a Ciência e a Tecnologia /COMPETE e Comissão para a Cidadania e a
Igualdade de Género e da Dissertação de Doutoramento Para um Direito Sem
Margens: A defesa dos direitos das mulheres contra a violência, de Madalena
Duarte, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
2 Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES UC) (Coimbra,
Portugal). E-mail: madalena@ces.uc.pt
3 Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES UC) (Coimbra,
Portugal). E-mail: anaoliveira@ces.uc.pt
4 A violência doméstica é entendida, neste artigo, como a violência exercida
sobre as mulheres nas relações de intimidade.
5 De referir a polémica que surgiu na Europa na sequência do filme Submissão
(uma referência inequívoca ao Islão), realizado por Hirsi Ali e Theo van Gogh,
em 2004, sobre a situação da mulher nas sociedades islâmicas, abordando temas
como os casamentos arranjados, a violência doméstica ou o incesto.
6 Mais especificamente na Sura 4, vers. 34: Os homens são os protetores das
mulheres, porque Deus dotou uns com mais (força) do que as outras, e pelo seu
sustento do seu pecúlio. As boas esposas são as devotas, que guardam, na
ausência (do marido), o segredo que Deus ordenou que fosse guardado. Quanto
àquelas, de quem suspeitais deslealdade, admoestai as (na primeira vez),
abandonai os seus leitos (na segunda vez) e castigai as (na terceira vez);
porém, se vos obedecerem, não procureis meios contra elas.
7 As entrevistas (a mulheres vítimas de violência doméstica, órgãos de polícia
criminal, ONG, IPSS, magistrados/ as judiciais e do Ministério Público,
advogados/as, Instituto de Segurança Social, profissionais de saúde, entre
outros/ as representantes de entidades estatais e da sociedade civil) têm vindo
a ser realizadas no âmbito do Projeto Trajetórias de Esperança: itinerários
institucionais de mulheres vítimas de violência doméstica e da Dissertação de
Doutoramento Para um Direito Sem Margens: A defesa dos direitos das mulheres
contra a violência. No que, especificamente, diz respeito às mulheres em
situação de violência, foram entrevistadas 30 mulheres, de idades, origem
geográfica e classe social diferenciadas. De entre estas, cinco eram
imigrantes. A análise de conteúdo das entrevistas a estas mulheres, bem como
das ONG que as apoiaram, permitiu apurar as semelhanças e diferenças entre os
seus percursos e aqueles das mulheres de nacionalidade portuguesa.
8 A Linha Nacional de Emergência Social ' Linha 144 ' está em vigor desde o dia
30 de setembro de 2001, funcionando 24 horas por dia e de utilização gratuita.
Este serviço tem como objetivo dar uma resposta imediata em situação de
emergência social, tendo como grupos prioritários, vítimas de violência, sem
abrigo, idosos e crianças abandonadas.
9 Não seria, pois, displicente, que as políticas contra a violência fossem
articuladas com políticas de cidadania, como defendem Silva e Bessa (2010),
orientadas para a não discriminação e a não estigmatização dos modos de vida e
das práticas, incluindo as que se relacionam com a chamada indústria do sexo.
10 Diário da República, I Série B 3871, nº 154 7 de Julho de 2003, 3870-3871.