Dividir para reinar
1. Contexto
Sendo o estabelecimento de fronteiras entre as diferentes ciências uma questão
social e não de princípios, a Sociologia sempre reconheceu os benefícios de
ultrapassar as barreiras entre as diversas ciências sociais, como atesta a
existência da Psicologia Social, da Antropologia Social, etc. No entanto, a
cooperação entre as ciências naturais e as ciências sociais reveste-se de uma
maior controvérsia e desconfiança mútua, e, apenas nas últimas décadas, temos
assistido à consolidação de disciplinas como a Sociobiologia, a Econofísica ou
a Sociofísica. De facto, os compartimentos entre ciências naturais e ciências
sociais nunca foram estanques. Aquando da institucionalização das ciências
sociais enquanto disciplinas académicas, no século XIX, os primeiros estudos
sistemáticos consistiram, em grande parte, em medidas estatísticas de vários
fenómenos sociais. Por sua vez, a surpreendente descoberta de que alguma ordem
colectiva poderia resultar de comportamentos individuais aleatórios foi uma
fonte de inspiração para a Física Estatística3. Uma das primeiras tentativas de
classificação das ciências pertenceu a Comte (Comte, 1982)4, que, salientando a
especificidade do conhecimento científico face a outros modos de conhecimento,
procurou clarificar as fronteiras e os métodos das diferentes ciências,
distinguidas segundo os seus objectos de estudo. Comte advogava uma unidade
hierárquica, no sentido de que cada ciência deveria abarcar os métodos da
anterior, mas ir um passo mais além, num caminho cujo último destino seria o
estabelecimento de uma Sociologia capaz de coordenar a totalidade do
conhecimento e o utilizar para promover o progresso social. Entre as ciências,
duas salientavam-se por assinalar a transição para um modo de conhecimento mais
perfeito: a Astronomia, enquanto a primeira ciência livre de contaminações
metafísicas, e a Biologia, enquanto preocupada com um todo orgânico, tal como a
Sociologia deveria estar. Quase 200 anos passados desde a proposta de Comte, a
distinção entre as ciências é, ainda, feita segundo os seus objectos de estudo,
e as fronteiras encontram-se garantidas por curricula e graus oficiais, escolas
e revistas especializadas. No entanto, estas fronteiras escondem uma
diversidade interna. Nomeadamente, dentro de cada ciência coexistem diferentes
correntes, que variam na importância relativa que conferem aos padrões globais
ou às interações individuais que lhes dão origem. No caso da Sociologia, o
problema das relações entre os níveis micro e macro ' como é que uma estrutura
macroscópica pode emergir através de interações individuais de pessoas com
interesses, ideias e motivações diferentes? ' continua a ocupar um lugar
central no pensamento sociológico5, tocando em temas como o livre-arbítrio, a
capacidade de os seres humanos construírem as estruturas sociais em que se
inserem e de incorporarem, na sua ação, as teorias que são construídas a seu
próprio respeito. Ainda que, em ciências naturais, os elementos individuais dos
sistemas sejam em geral mais simples, o problema das relações entre os níveis
micro e macro é transversal às diferentes ciências. Fenómenos como a construção
de complexas colónias de formigas ou o cintilar sincronizado de pirilampos em
florestas da Austrália (Strogatz, 2004) são exemplos de comportamentos
colectivos que resultam, não-trivialmente, de regras simples, a um nível
individual. A tentativa de abarcar, numa interpretação unificada, o
comportamento destes sistemas ditos complexos6, despoletou o aparecimento de
um conjunto de ideias oriundas de diversas disciplinas ' cibernética,
sinergética, teoria de jogos, teoria de sistemas, ciências computacionais,
sistemas dinâmicos não lineares, teoria do caos, entre outras. Nos sistemas
complexos, os padrões globais que surgem de interações elementares podem
afectar essas interações, diluindo a distinção entre causas e efeitos, já que
os efeitos realimentam as causas, o que sugere uma aplicação a sistemas
sociais. Mas a diversidade de origens confere às ciências da complexidade um
carácter vago, próprio de uma disciplina ainda em desenvolvimento, e um exemplo
claro dessa heterogeneidade encontra-se na maneira como a complexidade surge
nos estudos de fenómenos sociais7. Fazendo parte do vasto mosaico de ciências
da complexidade, a Sociofísica8 ' que será o objecto desta apresentação '
pretende combinar teorias vindas das ciências sociais e das ciências naturais,
em particular da Física. Pelo seu carácter concreto e pela sua inspiração em
modelos da Física Estatística, a Sociofísica é um contraponto a abordagens mais
gerais ou abstractas como a teoria de Luhmann (2002). Uma das áreas mais
prolíficas da sociofísica, que abordaremos em seguida, consiste na formulação
de modelos de opinião, ou modelos baseados em agentes.
2. Modelos de formação de opinião
Os modelos baseados em agentes recorrem a técnicas computacionais e analíticas
para estudar a maneira como a opinião social evolui a partir das interações
entre agentes9. A construção de um modelo de opinião requer a definição das
características dos agentes, da sua rede de interações e do resultado de uma
interação. No caso mais simples, a única característica de um agente é a sua
opinião, sendo comum agrupar os modelos em duas grandes famílias, conforme
considerem que uma opinião pode tomar um conjunto restrito de valores, ou
qualquer valor, dentro de um intervalo (Lorenz, 2007). Como exemplos de modelos
contínuos, podemos citar os modelos de Deffuant et al. (2000) e de Hegselmann-
Krause (2002), e como exemplo de modelos discretos, lembramos o modelo de
Sznajd (2000) e diversas variações de modelos tipo Ising (1925)10, um modelo
originalmente proposto em Física Estatística para explicar alguns aspectos do
ferromagnetismo. A opinião dos agentes evolui quando eles interagem entre si e,
por isso, o segundo passo na construção do modelo consiste em definir uma rede
de interações. Há também, aqui, duas opções básicas (e a sua combinação). A
formação de uma interação significativa pode depender das opiniões em
confronto, sendo muito comum em Sociofísica pressupor ' baseado nalguma
experiência da Psicologia Social ou do senso comum ' que existe uma preferência
para interagir com aqueles com quem nos assemelhamos. Uma outra alternativa é
estudar a influência da rede de interações na evolução das opiniões, um tópico
que, desde cedo, mereceu a atenção das ciências sociais, com os estudos de
George Simmel ou de Sociometria (Moreno, 1951), bem como as experiências de
Milgram (1967)11. Em finais dos anos 90 (Dorogovtsev & Mendes, 2003;
Newman, 2010), a Física renovou o campo do estudo das redes, dando-lhe uma
dimensão dinâmica, ao preocupar-se pela formação e evolução temporal de
diferentes tipos de redes. Por detrás da explosão do interesse neste campo está
o aproveitamento especialmente bem sucedido de três formas de fazer ciência: a
formalização matemática, a exploração das características das redes reais e as
simulações computacionais. Recuperando ideias da teoria matemática de grafos e
da Física Estatística, foram-se deduzindo os princípios gerais a que a
estrutura e as propriedades das redes obedecem, independentemente de aplicações
particulares. Por sua vez, a investigação de redes reais conduziu à descoberta
de novas propriedades. Verificando-se que, em geral, a estrutura das redes
reais não é, nem regular, nem puramente aleatória, a essas redes chamou-se
redes complexas. Dois tipos de redes tiveram um papel importante no aumento
exponencial do interesse nos estudos de redes (Watts & Strogatz, 1998;
Barabási & Albert, 1999). O primeiro ' as redes de pequeno mundo '
explicaria os resultados de Milgram: se numa rede regular substituirmos algumas
ligações por ligações aleatórias, a distância entre dois nodos diminui
drasticamente: assim, é na rede de actores de Hollywood ou no sistema neuronal
de C. Elegans, um verme. Já o segundo tipo de rede ' livre de escala ' pode-se
formar por um mecanismo de ligação preferencial, conduzindo a uma distribuição
assimétrica do número de ligações de cada agente. Estas últimas são redes
especialmente resistentes a ataques acidentais, mas altamente vulneráveis a
ataques dirigidos, capazes de provocar falhas em grande escala; saber isto é
relevante, quer pensemos em mercados financeiros ou na Internet, quer pensemos
em redes de proteínas, onde encontramos exemplos de redes livres de escala.
Finalmente, as simulações computacionais formam a terceira via entre dedução e
indução: aproximam-se da dedução quando não é possível obter resultados
analíticos, ao propôr modelos gerais a partir de regras simples e universais;
e, por outro lado, a simulação e teste de várias regras e parâmetros revela
novos comportamentos, a partir dos quais se pode induzir as características
chave do tipo de rede subjacente. Por último, a construção de um modelo requer
uma decisão acerca do resultado da interação: será que as opiniões divergem ou
convergem como resultado da interação? Em que medida ou situações?
Seguidamente, iremos ilustrar a abordagem da Sociofísica através de dois
exemplos concretos, que vamos denominar de modelo discreto e contínuo. No
primeiro, consideramos uma população de indivíduos que podem apenas ter uma de
duas opiniões (acordo/desacordo com um determinado tema), enquanto, no segundo,
se permitem vários graus de acordo. No primeiro modelo, os agentes mudam de
opinião para adoptar a posição maioritária desde que a maioria seja
suficientemente grande, enquanto no segundo, os agentes apenas interagem entre
si desde que as suas opiniões sejam suficientemente próximas. Quer num modelo
quer noutro, vamos considerar o poder de influência de uma mensagem externa na
população. Os resultados que iremos ver foram obtidos com recurso a ferramentas
amplamente utilizadas em Sociofísica: simulações computacionais e equações
derivadas de Física Estatística.
3. Modelo discreto
Um modelo minimalista de formação de opinião (Kuperman & Zanette, 2002),
inspirado em modelos de sistemas magnéticos, admite, apenas, duas opiniões
possíveis: os indivíduos estão ou não de acordo com um determinado tema. As
opiniões iniciais evoluem como resultado da interação: um indivíduo muda de
opinião desde que a maior parte dos seus vizinhos tenha a opinião contrária. No
caso de todos os membros da sociedade interagirem entre si, o único resultado
possível destas regras é um consenso absoluto, cujo valor (acordo/não acordo)
depende das condições iniciais aleatórias. No entanto, as pessoas não obedecem
a um mecanismo de pressão social tão estrito e os autores permitem que os
agentes possam mudar aleatoriamente de opinião, segundo uma determinada
probabilidade. Com isto, pretende-se ter em conta emoções inconstantes, livre
arbítrio ou algum outro fator desconhecido. Ou seja, introduzir ruído no
modelo, já que, em Física, se chama ruído (Bachelier, 1900; Pearson, 1905;
Einstein, 1905)12 à presença de variações aleatórias que, sendo demasiado
rápidas, complicadas ou de origem desconhecida, apenas podem ser formuladas em
termos probabilísticos. O ruído era, tradicionalmente, considerado como uma
limitação ao conhecimento ou ao funcionamento dos dispositivos, mas esta
percepção negativa mudou em 1981, com a descoberta do fenómeno de ressonância
estocástica (Benzi, Sutera & Vulpiani, 1981; Nicolis & Nicolis,
1981)13. De acordo com este efeito, a resposta coerente de um sistema a um
estímulo externo pode ser optimizada pela presença de um nível intermédio de
ruído. Tendo sido proposta num contexto de climatologia, não é de estranhar que
o seu âmbito de aplicação se tenha generalizado às mais variadas áreas, dada a
ubiquidade do ruído e a generalidade do problema de optimização de uma
resposta. Assim, e voltando ao modelo de formação de opinião, os autores não só
introduziram ruído no modelo, como decidiram investigar a sua influência na
adopção de uma mensagem externa, considerada como uma opinião ou propaganda
que influencia toda a gente ao mesmo tempo. Descobriram que, também neste
modelo social, se verifica o fenómeno da ressonância estocástica: uma sociedade
que era incapaz de adoptar, consensualmente, uma mensagem externa transmitida
pela propaganda é, no entanto, capaz de o fazer quando existe uma probabilidade
de mudar aleatoriamente de opinião. E a resposta é máxima para um valor
determinado dessa probabilidade. Inspirada nos estudos sobre a influência do
ruído, a ideia de que a presença de desordem pode melhorar a transmissão da
propaganda foi confirmada através de estudos onde se investigou a influência da
diversidade (Tessone & Toral, 2009), assumindo que uma sociedade se pode
caracterizar por diversos graus de dispersão dos valores da resistência
individual à mudança. Do mesmo modo que, no caso da ressonância estocástica,
aqui a transmissão óptima coincide com um grau intermédio de diversidade.
Analogamente, às transições de fase observadas em sistemas magnéticos, este
valor intermédio assinala uma transição entre dois tipos de sociedade: uma em
que a diversidade é tão pequena que se atinge um consenso global na ausência de
qualquer propaganda, e outra em que, na ausência de propaganda, existem, em
média, tantas opiniões contrárias, como a favor do tema em apreço. Na região
intermédia de diversidade existe um consenso somente parcial, e é apenas nessa
região que um consenso global em redor da propaganda pode ser atingido. Cabe
perguntar se isto é válido para qualquer tipo de desordem, em particular no
caso de a quebra de consenso resultar da possibilidade de as opiniões
divergirem após uma interação. De facto, o pressuposto de que, quando os
indivíduos interagem, as suas opiniões tendem, obrigatoriamente, a convergir,
nem tem muito apoio nas teorias sociológicas clássicas (Bourdieu, 1979)14, nem
é universalmente adoptado em Sociofísica. As opiniões podem divergir quando
indivíduos com opiniões bastante distintas interagem15, por intermédio de um
fenómeno de dissonância cognitiva (Huet, Deffuant & Jager, 2008), como
resultado de uma discussão racional ou do desejo de definição de um estatuto
diferenciado dentro de uma hierarquia social, entre várias outras razões. Para
exprimir o facto de que a possibilidade de divergir como resultado da interação
pode ter diversas origens, as quais não nos interessam, considera-se uma
probabilidade aleatória isso acontecer. Podemos, então, modificar o modelo
inicial dizendo que a interação de cada agente com os seus vizinhos pode
resultar, quer numa aproximação, quer num afastamento das suas opiniões,
segundo uma determinada probabilidade. Verificamos que há um máximo da
amplificação da resposta global da sociedade, para um valor intermédio dessa
probabilidade, que corresponde ao valor para o qual, na ausência de mensagem
externa, a sociedade atinge um consenso apenas parcial, m resultado semelhante
ao que encontramos quando o consenso era quebrado pela diversidade (Vaz
Martins, Toral e Santos, 2009).
Adicionalmente, observa-se que esta probabilidade depende de factores como o
número de indivíduos ou a topologia da rede de interação (Albert &
Barabási, 2002; Jackson, 2008)16, que define quem são os vizinhos a ter em
conta, independentemente das opiniões. Uma outra opção é que o próprio
estabelecimento de uma ligação dependa das opiniões em confronto, tal como
acontece no modelo que vamos ver em seguida.
4. Modelo contínuo
No modelo de Deffuant et al. (2000)17, as opiniões podem exprimir diversos
graus de acordo ou de rejeição relativamente a um tema, tomando qualquer valor
dentro de um determinado intervalo. Num dado momento, dois indivíduos são
escolhidos ao acaso e interagem, desde que a sua diferença inicial de opiniões
não seja maior que um determinado valor, a que os autores chamam o limite de
confiança. Este parâmetro18 exprime a compatibilidade recíproca entre opiniões
ou o grau de confiança que uma pessoa tem na sua própria opinião. A um nível
mais geral, podemos supor que o seu valor distingue uma sociedade de
mentalidade fechada de uma sociedade de mentalidade aberta. Como resultado da
interação, os agentes convergem a uma opinião comum. O resultado principal do
modelo é que existe um determinado valor para o limite de confiança que separa
uma sociedade que pode atingir um estado de consenso global de uma outra ' que
aparece quando o limite de confiança é baixo ', em que se assiste a uma
fragmentação em vários grupos com opiniões distintas. Nesta situação, os vários
grupos estão, não só fora do alcance de interação mútua, como também fora do
alcance de uma mensagem exterior (Carletti, Fanelli, Grolli & Guarino,
2006), que, assim, não consegue propagar-se à sociedade inteira. É nesta
sociedade fechada que experimentámos (Vaz Martins, Pineda e Toral, 2010),
também, introduzir uma probabilidade de as opiniões divergirem como resultado
da interação, e observamos que, tal como no caso do modelo discreto, existe uma
probabilidade intermédia que conduz a uma propagação óptima da mensagem
externa. No entanto, aqui, o desejo de discordar da opinião do vizinho não
serve para quebrar um estado de consenso asfixiante, mas sim para desbloquear a
possibilidade de interação entre grupos distantes com opiniões distintas: se
uma pessoa repara que pertence a um grupo que inclui pessoas com quem não gosta
de ter uma opinião em comum, afasta-se desse grupo, aproximando-se da zona de
influência de outros grupos e, em particular, da propaganda. Deste modo, quando
a vontade de consenso resulta em divergência e a vontade de divergir resulta em
consenso, pode-se chegar a uma aceitação generalizada de mensagens que, à
partida, não teriam capacidade de propagação. Este resultado permite
compreender, por exemplo, como a adopção de determinadas políticas laterais
pode ser o resultado de disputas entre políticos de diferentes denominações que
não se interessam pelo assunto em questão, e sim por marcar uma posição
distinta. Mais especulativamente, alerta-nos para o que pode acontecer se
sociólogos e sociofísicos mantiverem posições antagónicas na defesa das
fronteiras disciplinares, deixando o espaço público livre para que agentes
exteriores construam ou inventem discursos científicos à volta dos fenómenos
sociais. Recorda a ideia comum de que uma sociedade conflituosa é susceptível a
influências externas, ou mesmo a ficar sob a influência de ditaduras. Esta é
uma ideia antiga e tem um nome antigo ' Dividir para reinar. Mas, no nosso
caso, não falamos de um estado de conflito generalizado que aumenta a
vulnerabilidade a influências externas; é, sim, um determinado estado
intermédio ' em que ainda é desejável que os indivíduos prefiram estabelecer
relações positivas com a maior parte dos seus vizinhos ' e o interesse da
Sociofísica está em analisar qual o valor óptimo desse equilíbrio e de que
parâmetros do sistema depende.
5. Futuro?
Para finalizar, devemos notar que a Sociofísica ainda não deu provas
suficientes em termos de verificação empírica (Sobkowicz, 2009), e que o seu
desenvolvimento deverá passar pela colaboração com sociólogos. Actualmente, a
área da formulação de modelos de opinião mantém um carácter exploratório, em
que a previsão ou confronto com dados empíricos raras vezes tem sido o
objectivo da investigação, prevalecendo modelos dificilmente testáveis,
baseados em vagas analogias com fenómenos sociais. No pior dos casos, a suposta
relevância social do modelo assenta numa descrição de factos sociais, baseada
em preconceitos do senso comum ou em experiências da Psicologia Social
descontextualizadas ou desactualizadas. Estes problemas decorrem,
fundamentalmente, de uma falta de colaboração entre físicos e cientistas
sociais, quer a nível de elaboração de modelos, quer a nível da sua avaliação e
publicação19. Mas há dois grandes motivos para que os sociólogos devam estar
atentos à Sociofísica, um negativo e um positivo. O primeiro motivo
relaciona-se com a responsabilidade dos sociólogos, enquanto garantes da
veracidade dos discursos científicos sobre os factos sociais ' em nossa
opinião, essa responsabilidade deve existir. Ora, quando nos debruçamos sobre a
literatura20 sociofísica, vemos que não é invulgar um deslizamento no discurso
entre provar analítica ou computacionalmente uns determinados resultados
formais e provar a solidez dos pressupostos sociais em que esses resultados
assentam. Este deslizamento é partilhado pelo senso comum, segundo o qual a
Física é uma ciência exacta que prova o que diz e a Sociologia uma espécie de
filosofia que apenas sugere. À medida que a Sociofísica começa a penetrar no
espaço público, a intervenção dos cientistas sociais torna-se desejável. A
contribuição da Sociologia pode resumir-se à legitimação/refutamento dos
parâmetros sociofísicos, em termos de teorias sociais tradicionais, ou ao
fornecimento de dados empíricos. Mas, mais do que isso, os sociólogos podem ser
actores desta disciplina, e o segundo motivo que, em nossa opinião, deveria
guiar o interesse dos sociólogos relaciona-se com a potencialidade da
sociofísica. Mais do que afirmar a validez de determinados pressupostos, a
especialidade dos sociofísicos é explorar as consequências quando se parte
desses pressupostos, que têm implícitas determinadas teorias acerca das
relações humanas, cuja validade os físicos são, em geral, incompetentes para
determinar. Deste modo, é possível jogar com as diversas opções implícitas nas
construções de um modelo de formação de opinião, e pareceria trivial construir
uma grande variedade de modelos (e é, de facto, grande o número de modelos
propostos). No entanto, a especificidade das ciências da complexidade é saber
que resultados inesperados a um nível colectivo não se reduzem, trivialmente,
às características individuais dos elementos. O contributo da Física reside na
sua experiência nesta área, permitindo identificar e descartar detalhes
irrelevantes, e fazer as melhores opções na construção de um modelo,
recorrendo, por exemplo, a variações de modelos magnéticos estudados em Física
Estatística21. Distingue-se da sociologia computacional tradicional pela
preferência por modelos minimalistas, que, embora possam ser menos realistas,
têm a vantagem de permitir obter resultados generalizáveis e, também, de
revelar a origem de fenómenos como transições de fase ou sincronização, que
poderiam ficar ocultos debaixo de demasiados detalhes. Mas o facto de um
particular comportamento complexo poder, teoricamente, resultar de
comportamentos simples não significa que resulte e só a investigação da génese
do fenómeno social em causa o pode averiguar. É possível que, no futuro, as
fronteiras entre ciências sejam estabelecidas pelos seus métodos e não pelos
tradicionais objectos de pesquisa (Bornholdt, Jensen & Sneppen, 2011)22. O
futuro da Sociofísica depende da direção tomada, podendo vir a ser um ramo da
Sociologia, quando esta incorporar estas novas metodologias, ou da ciência da
complexidade ' usando esta os seus métodos para abarcar os objectos sociais.
Pode, também, vir a estabelecer-se como uma nova especialidade, à semelhança da
Bioquímica. Mas, por vezes, as ideias mais criativas surgem aquando da
colaboração entre cientistas de diversas áreas, que, ignorando fronteiras
disciplinares arbitrárias, permitem ir mais além de uma simples acumulação
linear de conhecimentos. Mais do que quantificar a Sociologia ou, simplesmente,
aplicar teorias físicas a fenómenos sociais, a ambição da Sociofísica é
aproveitar a generalidade de determinados fenómenos colectivos para encontrar
novos conceitos, o que requer a constituição de equipas interdisciplinares (San
Miguel, 2011).
Notas
1 Licenciada em Sociologia (1999), pela Faculdade de Letras da Universidade do
Porto (FLUP) e em Física (2004), pela Faculdade de Ciências da Universidade do
Porto (FCUP) (Porto, Portugal). Doutorada em Física (2010), pelo Instituto de
Física Interdisciplinar e Sistemas Complexos (IFISC, UIB CSIC), Universidade
das Ilhas Baleares (Palma de Maiorca, Espanha). E-mail: teresa@ifisc.uibcsic.es
2 Professor Catedrático da Universidade das Ilhas Baleares. Departamento de
Física e Instituto de Física Interdisciplinar e Sistemas Complexos (IFISC, UIB
CSIC), Campus UIB, E 07122 Palma de Mallorca (Palma de Maiorca, Espanha). E-
mail: raul@ifisc.uibcsic.es
3 Como se pode ver em Ball (2002) e Stigler (1986).
4 Salientando a unidade do conhecimento científico e a sua aparição histórica a
seguir ao estado metafísico, as diferentes ciências eram denominadas como
variações da Física, entendida segundo o seu sentido etimológico: Physis =
Natureza. Assim, o que hoje chamamos Física seria a Física da Terra, e o que
chamamos Sociologia seria a Física Social. Este facto é, vulgarmente,
salientado por sociofísicos para legitimar historicamente (e um pouco fora do
contexto) o estudo de fenómenos sociais, por parte de físicos.
5 Contributos para a resolução desta questão podem se encontrar em Bourdieu
(1979), Giddens (2006) e Habermas (1984).
6 Para uma introdução aos temas da complexidade ver, por exemplo, Erdi (2008) e
Mitchell (2009).
7 Para uma revisão ver Castellani & Hafferty (2009).
8 Não existindo uma ciência única da sociofísica, o termo abrange um conjunto
de práticas, temas e conceitos, cujo significado e significância não é ainda
consensual. Este artigo foca a área dos modelos de opinião, mas podemos
referir, a título de exemplo, o estudo e explicação de distribuições
estatísticas em que não existe uma média característica, prevalecentes no mundo
social. A sociofísica é um campo de actividade cuja história está ainda por
fazer. Para uma revisão, pode se ver, por exemplo, Stauffer, Oliveira, Oliveira
e Martins (2006).
9Podemos encontrar revisões de vários modelos em Castellano, Fortunato e Loreto
(2009), Galam (2004) e Stauffer (2005).
10 O modelo de Ising é um dos modelos mais utilizados na Física Estatística.
11 Uma das experiências de Milgram consistiu em averiguar o número de
intermediários necessários para uma carta viajar entre dois desconhecidos
vivendo em cidades afastadas dos Estados Unidos, sabendo que cada intermediário
teria de ser conhecido do intermediário prévio. A sua conclusão de que, em
média, bastavam 6 intermediários encontrou grande divulgação. Embora este
resultado seja duvidoso, a ideia de que vivemos num pequeno mundo inspirou a
procura de outros tipos de redes em que isso, de facto, se verifica.
12 Quando surgiu no discurso científico, em princípios do século XX, o conceito
de ruído unificou as flutuações de preços na Bolsa francesa, os movimentos de
partículas microscópicas na água e o vaguear sem rumo de mosquitos em
florestas, numa mesma descrição.
13 A periodicidade regular do aparecimento das idades de gelo seria causada por
oscilações na órbita terrestre, cujos ténues efeitos seriam amplificados por
vários factores aleatórios, como trovoadas, etc.
14 Pensando, por exemplo, no desejo de distinção ou na reflexividade.
15 Por exemplo, em Salzarulo (2006), Jager & Amblard (2004) e Radillo Díaz,
Pérez & Castillo Mussot (2009).
16 Uma área que tem beneficiado, desde o início, da cooperação entre as
ciências naturais e as sociais são os estudos de redes complexas.
17 Este modelo foi introduzido no contexto de uma proposta sobre como melhorar
políticas agro ambientais na União Europeia.
18 Presente em Axelrod (1997) e McPherson (2001).
19 Colaboração essa que começa a surgir, sendo activamente procurada por
sociofísicos, nomeadamente no IFISC, de onde um dos autores deste artigo, Raúl
Toral, é originário.
20 O endereço http://arxiv.org/list/physics.socph/recent é uma boa fonte para
encontrar as mais recentes contribuições no âmbito da Sociofísica, ainda antes
de serem publicadas ou submetidas ao sistema de revisão de pares.
21 Por exemplo, o modelo de Schelling (Schelling, 1969) de segregação
residencial é matematicamente equivalente ao modelo cinético de Ising com
lacunas.
22 A título de curiosidade, um modelo de evolução de paradigmas científicos
foi, recentemente, proposto numa das revistas mais importantes da física.