Uma proposta multidisciplinar para o entendimento da centralidade urbana como
facto social total
1. A Centralidade Urbana
A centralidade urbana, condição característica dos espaços urbanos centrais,
lugares privilegiados de controle efetivo e simbólico da vida coletiva da
cidade (Rémy e Voyé, 1994: 133) é fruto do processo industrial capitalista,
que alterou, no plano civilizacional e no plano quotidiano, o quadro de vida
dos indivíduos e dos grupos e alterou, irreversivelmente, a forma e a estrutura
da cidade medieval.
De facto, num período histórico relativamente curto, as sociedades europeias
assistiram ao fim da organização social tradicional, através do desenvolvimento
do processo industrial capitalista entre os séculos XVII, XVIII e XIX, que
transformou economias domésticas e corporativas em economias manufatureiras e
industriais, concentrou populações, alargou mercados, separou os trabalhadores
dos seus instrumentos e dos conhecimentos globais do processo de trabalho,
afastou a residência do local de trabalho, desarticulou a família alargada e
institucionalizou a família nuclear, num quadro de crescente divisão técnica do
trabalho e crescente especialização social e funcional destas sociedades.
Esta progressiva dominação do Modo de Produção Capitalista submeteu, assim, a
cidade histórica medieval, a um processo de transformação irreversível. O
acelerado processo de urbanização que, associado à primeira revolução
industrial, exprimia este desenvolvimento acelerado das forças produtivas e o
reforço da mobilidade do capital, determinou uma nova relação com o espaço e
determinou, também, uma nova estruturação da vida social e quotidiana. De
facto, a organização social industrial capitalista origina e exige uma
progressiva separação das atividades sociais: as atividades produtivas
desenvolvem-se em tempos e espaços fixos distintos dos tempos e espaços afetos
a outras atividades sociais, no quadro de uma progressiva separação e divisão
funcional do espaço urbano industrial.
Por isso, através, dos mecanismos de formação dos preços do solo, determinados
pela divisão social e espacial capitalista do trabalho, os rendimentos
fundiários capitalistas urbanos influenciam um desenvolvimento urbano onde a
cidade histórica medieval compacta, plurifuncional e socialmente heterogénea
evoluiu, tornando-se centro alargado de uma realidade urbano-industrial em
expansão, com crescente segregação urbana, através da progressiva valorização
fundiária do espaço central e da valorização fundiária das áreas cada vez mais
especializadas, social e funcionalmente.
A atualidade deste tema decorre da inequívoca importância e visibilidade que os
processos de transformação dos centros tradicionais das cidades assumiram,
traduzidos na alteração do seu perfil funcional, na perca de importância desses
centros enquanto lugares de referência para a leitura simbólica da cidade e
para a sua imagem coletiva e projetada. Esta crise dos centros, crise de
transformação, está, naturalmente, inserida num novo ciclo de mudança e
renovação, no quadro do tempo longo das cidades, que terá que ser cumprido,
para que os centros se possam adaptar às novas condições urbanas emergentes.
Foi neste quadro que, a partir do princípio do século XX e no interior de
diversas ciências sociais, o fenómeno da centralidade urbana foi sendo
promovido ao estatuto de objeto teórico relativamente autónomo no interior
dessas diversas disciplinas cientificamente institucionalizadas. Neste artigo
apresenta-se, por isso, uma proposta téorica para a construção do conceito de
centralidade urbana como facto social total, onde os diversos contributos
teóricos configuram, também, um caráter metodológico multidisciplinar à
construção conceptual desenvolvida.
2. O facto social total
O conceito de facto social total foi construído por Marcel Mauss para análise
do potlatch, prática social observada em determinadas regiões do Mundo, como a
Melanésia, que consiste numa cerimónia festiva durante a qual dois clãs ou dois
chefes de clã se desafiam, distribuindo ou destruindo bens materiais e
obrigando o adversário a distribuir ou a destruir igual quantidade de riqueza
material, sob pena de ficar penalizado na hierarquia de poder e de prestígio
social. Assim, para Marcel Mauss, esta troca e esbanjamento material de bens,
constitui um importante mecanismo de regulação social do prestígio e
consubstancia o que Mauss designa como um tipo de facto social total, isto é,
um facto social que põe em movimento, em certos casos, a totalidade da
sociedade e de suas instituições (potlatch, clãs enfrentados, tribos que se
visitam, etc.) e, em outros casos, somente um grande número de instituições
(Mauss, 1974: 179). Este facto social total é, então, um conceito
totalizante, entendido como realidade complexa, onde cada componente integrante
só é significante face a todas as outras e à realidade que integram, realidade
essa unicamente separável por convenção.
Igualmente para Gurvitch, a dinâmica de relacionamento pluridimensional do
fenómeno social total é uma relação dialética que pode assumir o carácter de
complementaridade, de implicação mútua, de ambiguidade, de polarização ou de
reciprocidade de perspetivas; mas não se trata aqui senão de aspetos diferentes
essenciais do ponto de vista metodológico, da primazia ontológica dos fenómenos
sociais totais, as separações relativas não fazem senão lembrar a trama
complexa da realidade social, que consiste precisamente no drama que se
representa no interior desta e ao qual se acrescentam os conflitos e os
antagonismos entre fenómenos sociais totais do mesmo género (antagonismos de
classes ou de nações, por exemplo). (Gurvitch, 1979: 28).
3. O conceito económico de centralidade
O conceito de centralidade na reflexão urbana, aplicando a perspetiva económica
neo-clássica à análise das relações espaciais, surgiu no princípio do século
XX, nos anos 30, com os trabalhos de Walter Christaller. Tendo em conta que
toda a atividade económica se desenrola no espaço, Walter Christaller procurou
explicar como, na organização económica das sociedades modernas, determinados
bens e services are, as a rule, offered centrally in towns, or at other
central places, because it is most advantageous from an economic standpoint
(Christaller, 1966: 20). Christaller debruça-se sobre a espacialização dos
serviços, integrando, first of all, trade, which is center-oriented almost
exclusively ( ), then banking, many handicraft industries (repair shops), state
administration, cultural and spiritual offerings (church, school, theatre),
professional and business organizations, transportations, and sanitation
(Christaller, 1966: 20).
Este bens e serviços são, portanto, hierarquizáveis de acordo com o critério da
frequência com que são procurados (sendo de ordem mais elevada os bens e
serviços menos frequentemente necessários), o que significa que a ordem de
importância de cada lugar, a medida da sua centralidade, está associada à
ordem de importância e hierarquia dos bens e serviços oferecidos nesse centro.
Os lugares que têm central functions that extend over a larger region, in
which other central places of less importance exist, are called central places
of a higher order. Those which have only local central importance for the
immediate vicinity are called, correspondingly, central places of a lower and
of the lowest order (Christaller, 1966: 17). A hierarquização e medida da
centralidade de um lugar resultam da importância relativa desse lugar face à
região que o rodeia, avaliada pelo grau com que são exercidas funções centrais
ou de maior raridade nesse lugar que, ao desempenhar funções de ordem superior,
assegura, no entanto, simultaneamente, funções de ordem inferior.
Elaborado quando a separação, nomeadamente funcional, entre a cidade e o campo
era muito distinta, com os meios de transporte pouco eficazes e em que cada
cidade se apresentava como uma entidade significativamente delimitada e
separada das restantes, este modelo não incorpora processos endógenos de
mudança, pelo seu caráter fechado e estático. No entanto, apesar das suas
dificuldades de aplicação em situações reais, a teoria dos lugares centrais,
entendida como uma forma de enunciar regularidades e não como enunciadora de
princípios determinísticos relativos à localização, dimensionamento e
distribuição de lugares considerados centrais à escala interurbana, constituiu
um marco na teorização do processo de constituição e distribuição hierarquizada
de lugares (centrais) prestadores de diferentes tipos de comércio e serviços,
no quadro de determinadas opções de compra dos consumidores. Foi, precisamente,
este conceito de lugar central que, generalizando-se, se estendeu, ainda, à
caracterização de todo o lugar com oferta de serviços, capaz de polarizar áreas
e populações à escala intraurbana (central place is not equivalent to town,
because it refers to only one important characterisitc of a settlement, namely,
its possession of a central function ' Christaller, 1966: 139), através da
disponibilização, espacialmente concentrada, de produtos e funções de maior
raridade urbana.
Associada a noção de centralidade urbana à raridade na oferta de bens e
serviços, herdada da teoria dos lugares centrais de Christaller, torna-se,
também, indispensável definir um enquadramento para a compreensão desse
processo de concentração espacial de determinados bens e serviços. Esse
enquadramento vai ser disponibilizado pela teoria económica urbana,
nomeadamente a teoria económica urbana de Alonso, que apresentou um modelo
fundamental para situar, explicitamente, a compreensão dos processos de
localização espacial intraurbana de atividades, em que a ocupação do solo
resulta do desejo de realizar a afetação ótima dos recursos de cada um, em
função da acessibilidade ao centro da cidade.
Neste modelo teórico de Alonso em que a ocupação do solo urbano visa a afetação
ótima dos recursos individuais e empresariais, em função da acessibilidade ao
centro da cidade, a maior proximidade residencial a esse centro, significando
menores custos de transporte, implica, simultaneamente, custos fundiários mais
elevados. Se o indivíduo escolhe habitar no local que lhe oferece a maior
satisfação possível, para as empresas industriais, comerciais ou de serviços,
por sua vez, trata-se de maximizar o lucro, considerando o volume de negócios,
a área ocupada e a distância ao centro.
Para além de pressupostos específicos deste e de outros modelos desenvolvidos
pela economia urbana, importa, finalmente, salientar que todos esses modelos
assentam, genericamente, num pressuposto base: o pressuposto de que as empresas
e os agentes económicos procuram, pelas suas decisões, produzir a um
determinado nível ótimo, no qual o lucro é maximizado pela escolha da melhor
combinação de fatores, em função de determinadas alternativas e possibilidades
técnicas. É, portanto, neste pressuposto-base da teoria económica marginalista
neoclássica segundo o qual a maximização dos lucros ' ou da satisfação, no caso
do consumidor ' resultam da racionalidade económica dos comportamentos dos
agentes (económicos), em contexto concorrencial de livre mercado, que a teoria
económica urbana explica, no quadro das relações entre espaço (urbano) e
atividades económicas, os mecanismos e as estratégias locativas empresariais,
em regime concorrencial de mercado.
Importa, assim, reter, a partir destas perspetivas, a sua virtualidade
explicativa para o fenómeno da centralidade urbana, enquanto contributos que,
articuladamente, permitem compreender as estratégias locativas, num quadro de
determinada acessibilidade e custos fundiários. Esta referida necessidade de
articulação de perspetivas é reforçada, na atualidade, pelo incremento do
protagonismo das componentes da mobilidade e acessibilidades na vida das
cidades. Mas as virtualidades explicativas destas perspetivas em articulação só
reforçam, também, por sua vez, a constatação da necessidade de avançarmos para
um entendimento ainda mais alargado do fenómeno da centralidade, na busca, cada
vez mais atual e necessária, de um conceito transdisciplinar do fenómeno da
centralidade urbana.
4. A perspetiva sociológica da Escola de Chicago
O entendimento do centro das cidades como realidade construída, no quadro de um
processo de competição pelo espaço urbano, foi desenvolvido, no princípio do
século XX, em Chicago (cidade norte-americana, onde, nesse período, o
crescimento industrial e demográfico era mais acentuado), no contexto de uma
escola de pensamento, onde pontificavam os nomes de Park e Burguess, e que
marcou a análise urbana do princípio do século XX.
Considerando uma ordem social que se explica por mecanismos característicos do
mundo vegetal e animal, e concebendo a cidade como um mosaico de comunidades
naturais, na medida em que respondem às necessidades gregárias fundamentais da
espécie humana, a Escola de Chicago vai considerar que, da mesma maneira que
são os animais mais fortes quem consegue apropriar-se dos lugares mais
interessantes, são, também, as atividades e os indivíduos mais poderosos quem
conseguirá ocupar as zonas urbanas mais caras.
Os grupos económicos industriais e comerciais, os grupos mais fortes, apoderam-
se, por isso, da zona (pré-existente) mais valorizada em termos fundiários da
cidade, o CBD (Central Business District na designação anglo-saxónica), num
contexto de competição e de sucessivos processos de ajustamento, em que a cada
zona da cidade acaba por ser definida uma função própria no tecido urbano, numa
organização espacial urbana em anéis concêntricos, a partir do CBD (Central
Business District). Esta diferenciação em natural economic and cultural
groupings gives form and character to the city. For segregation offers the
group, and thereby ( ), a place and a rôle in the total organization of city
life (Park e Burguess, 1984 (1925): 56)
O CBD é, assim, a área da cidade em que os preços do solo afford one of the
most sensitive indexes of mobility. The highest land values in Chicago are at
the point of greatest mobility in the city, ( ). ( ) variations in land values,
( ) offer perhaps the best single measure of mobility (Park e Burguess, 1984
(1925): 61). Por isso, o CBD é o centro económico da cidade, onde se localizam
sedes de grandes empresas, atividades comerciais orientadas para o consumo,
instituições financeiras, teatros e hotéis. No entanto, para atividades
económicas consumidoras de muito solo urbano, o seu poder concorrencial reduz-
se e será para localizações mais afastadas que vão competir locativamente. Só
admitindo, então, a homogeneidade do espaço e a não- diferenciação nas
facilidades de transporte, a organização do espaço urbano pode ser estruturado
com base em anéis concêntricos, definidos pelos pontos de indiferença
determinados pelas curvas de renda de licitação próprias de cada uso.
Quer a teoria dos lugares centrais, quer o modelo radiocêntrico são, assim,
próprios da vida urbana anterior ao incremento da acessibilidade. Com o
desenvolvimento da mobilidade e acessibilidade, a cidade não pode deixar de
crescer segundo as linhas de comunicação que se vão estabelecendo, alterando as
estratégias locativas relativas à ocupação do espaço urbano. É, justamente,
esta constatação que leva Hoyt a considerar uma proposta, segundo a qual
central growth is the result of forms of transportation that tend to be of
approximately equal speed from the center of the city in all directions toward
the periphery. It is not a question of absolute but of relative speed (Hoyt,
1939: 101).
Por isso, a ocupação do solo urbano a partir do centro, ao seguir,
frequentemente, as principais vias de transporte e comunicação, tem como
consequência que the retail shopping center, and not the financial center, is
(...) central (...) in most cities (idem: 17, 19), porque os compradores tend
to go to centers where they can find a large assortment of goods in close
compass, so they can make all their purchases with a minimum expenditure of
time and effort (idem).
Para além da indispensabilidade de contemplar, na análise do processo de
construção da centralidade urbana e de crescimento da cidade, a variável
acessibilidade, outros fatores, enunciados, de resto, na teoria económica
urbana, devem ser considerados, nomeadamente a reorganização funcional de
atividades na busca de sinergias (economias de aglomeração) ou o reagrupamento
residencial na busca de comunidades de interesses para as zonas residenciais.
Por isso, a teoria dos núcleos múltiplos de crescimento de Chauncy Harris e
Edward Ullman veio defender que o crescimento de uma cidade se faz com o
desenvolvimento de padrões de uso à volta de núcleos independentes originais.
As cidades têm, então, uma estrutura essencialmente celular, na qual os
diferentes tipos de utilização do solo se desenvolvem à volta de certos núcleos
de crescimento, situados no interior da área urbana. O agrupamento e a junção
destes núcleos vai-se fazendo debaixo da influência de fatores morfológicos ou
humanos que permitem que certos núcleos se fundam, originando, através deste
mecanismo associativo (vantajoso para determinadas atividades industriais,
enquanto outras atividades se afastam porque se prejudicam mutuamente, como a
indústria e residência), o centro da cidade, nomeadamente o CBD.
A Escola de Chicago permite-nos, assim, incorporar, na compreensão da dinâmica
da centralidade e da estruturação do espaço urbano, a importância dos processos
de competição pela apropriação do espaço, recurso disputado e objeto de intensa
concorrência, particularmente a área administrativa e comercial das
aglomerações urbanas.
A organização espacial urbana será, assim, o resultado de um processo de
concorrência entre pessoas e atividades pela localização (pré-existente) de
maior acessibilidade na cidade (simultaneamente a localização com custos
fundiários mais elevados), medida pela distância ao CBD, ponto de
acessibilidade máxima dentro da cidade. Se admitirmos, então, que os diferentes
usos vão concorrer para a obtenção de solo dotado de certo nível de
acessibilidade, devemos tomar em consideração os preços ou rendas de licitação
(referidas por Alonso) que o comércio a retalho, outras atividades comerciais e
de serviços, a indústria, a habitação em prédio, a habitação em moradia e a
agricultura podem propôr.
Enquanto, na perspetiva da economia, os centros se constroem na base da
concorrência de mercado pelo princípio das economias de aglomeração com
determinada densidade de ocupação urbana (nomeadamente através da concentração
territorial de determinadas funções e atividades), para Christaller, os centros
distribuem-se numa base hierárquica, em que os mais importantes são aqueles
onde há funções de consumo de bens de maior raridade, concentrados em função da
afetação ótima dos recursos e da acessibilidade urbana. Para a sociologia
urbana de Chicago, por sua vez, os centros constroem-se num processo de luta
pela apropriação dos espaços urbanos de maior valorização fundiária.
Todas estas reflexões disciplinares especializadas partem, no entanto, de um
pressuposto: preocupando-se em analisar, com conceitos e metodologias
disciplinares próprias, o desenvolvimento, afirmação e relação dos centros com
as cidades respetivas, todas as reflexões consideram, no entanto, que o centro
é uma realidade urbana estática, adquirida, pré-existente. A explicação da
centralidade urbana, exige, por isso, o contributo de outras perspetivas,
nomeadamente perspetivas relativas à importância da construção coletiva de
determinados fenómenos designáveis de representações sociais que, originários
na interação social quotidiana, contribuem para a construção de realidades
coletivamente significantes, como os centros das cidades.
Com efeito, a conotação significante da cidade é produzida pela ação concreta
dos cidadãos que deixam traços materiais (edifícios, monumentos) e imateriais
(usos e costumes), tanto na sua vivência passada como na sua vivência presente,
apoderando-se, ativamente, do património herdado, interpretando-o e
modificando-o continuamente. Esta interação entre símbolos e referências
urbanas e a ação dos habitantes contribui para a definição de uma identidade da
cidade e para a construção dos seus significados urbanos, integrando
contributos explicativos a desenvolver em pontos seguintes deste capítulo que,
articulando e relacionando estruturas espaciais e sociais, concebam as
sociedades humanas como fenómenos espaciais, no sentido em que é pela sua
realização no espaço que, desde logo, uma sociedade adquire visibilidade.
5. A centralidade urbana como representação social
Foi a partir de princípios dos anos 60, particularmente através dos contributos
de Moscovici, que, progressivamente, se foi construindo o conceito de
representação social, no pressuposto de que os indivíduos são também
construtores de significados, não se limitando a receber informação. Moscovici
superou, assim, nos anos 60 do século XX, o conceito positivista de consciência
coletiva que é, para Durkheim, uma realidade objetiva, exterior e anterior aos
indivíduos, na medida em que os precedeu e os transcende e onde, por isso, a
consciência e a representação coletivas não podem explicar-se por factores
puramente psicológicos, quer dizer, por estados da consciência individual
(...). Com efeito, o que as representações colectivas traduzem é a maneira como
o grupo se pensa nas suas relações com os objectos que o afectam (Durkheim,
1895: 306-307).
O conceito de representação social de Moscovici, articulando na sua
constituição elementos cognitivos, comunicacionais e até afetivos, distancia-
se, por isso, da linha de pensamento positivista, reafirmando grande
importância, na construção das representações sociais, à interatividade entre o
indivíduo e o outro, pela partilha de determinadas imagens na interação
quotidiana.
As representações sociais revestem, assim, a forma de princípios reguladores
dos processos de conhecimento e significação desenvolvidos nas relações sociais
para lá da diversidade de opiniões existentes. Na medida em que é socialmente
elaborado, contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto
social, orientando as práticas quotidianas às quais dá um sentido e a partir
das quais pode ser modificada, porque a vida quotidiana seria impossível se os
indivíduos não deitassem mão de signos pré-estabelecidos, se não
compartilhassem determinadas representações sociais, significados ou regras de
comportamento (Pais, 2002: 132) conformando-se ou não, através das suas
condutas às representações, gerindo ou rejeitando, alimentando, no dia a dia,
a sua vigência (Pais, 2002: 134, 135).
Sendo explicações socialmente partilhadas e construídas pela comunicação
interindividual no quotidiano, nomeadamente no quotidiano de uma cidade,
permitem, então, compreender o processo de construção de significados urbanos,
porque são uma modalidade de conhecimento vocacionado para a prática. Assim, se
a informação que as pessoas têm sobre a cidade é o resultado da sua interação
com essa cidade, e se os significados sociais são uma parte importante da
representação da cidade, a cidade pode, então, ser estudada como uma
representação social.
Ora, nos processos de representação social, há dois mecanismos essenciais: a
objetivação e a ancoragem, em que a ancoragem precede a objetivação, por um
lado, e (...), por outro, se situa na sequência da objetivação (Vala, 2002:
472). A objetivação diz respeito à forma como se organizam os elementos
constituintes da representação (Vala, 2002: 465) para formação de um todo
coerente, através da contextualização do objeto e da constituição de um esquema
organizador dos principais elementos do objeto de representação e sua
naturalização como categorias descritivas: objectification saturates the idea
of unfamiliarity with reality, turns it into the very essence of reality.
Perceived at first in a purely intellectual, remote universe, it then appears
before our eyes, physical and accessible (Moscovici, 2000: 49).
A ancoragem consiste em integrar novas informações em categorias que o sujeito
já possui, fruto de experiências anteriores, atribuindo sentido a
acontecimentos sociais, precedendo, neste caso, a objetivação, na medida em que
se refere ao facto de qualquer construção ou tratamento de informação exigir
pontos de referência (Vala, 2002: 472). Neste processo, a ancoragem associa-se
a um processo de tornar familiar o que não o é. Estabelecida a representação, a
ancoragem, posterior à objetivação, associa-se, também, aos processos em que
funciona como organizador das relações sociais atribuindo, por sua vez, sentido
a acontecimentos e comportamentos. Assim, to anchor is thus to classify and to
name something. ( ). By classifying what is unclassifiable, naming what is
unnameable, we are able to imagine it, to represent it. ( ) In short,
classifying and naming are two aspects of this anchoring of representations
(Moscovici, 2000: 42, 47).
Se considerarmos que a cidade pode ser estudada como uma representação social,
o centro de uma cidade pode, então, por sua vez, ser estudado como âncora da
representação social cidade, elemento fundamental dos processos de objetivação
e ancoragem. Enquanto âncora da representação social cidade, o centro é,
também, anterior e posterior à objetivação da representação social cidade. É
anterior à objetivação da representação social cidade, na medida em que, no
processo de constituição dos centros das cidades industriais, a evolução
histórica urbana criou condições para a construção dos centros enquanto
elementos âncora, através do reforço, espacialmente referenciado, de práticas
sociais, que, como referem Alvarez Mora e Fernando Roch, se concentran en
aquellos lugares contenedores de elementos que generan convocatoria ciudadana
(...) que van desde edificios construidos como las propias entidades
religiosas, civiles, estatales (...) hasta los espacios libres de
construcciones, como calles y plazas) (Alvarez Mora e Roch, 1980: 103).
Neste sentido, estes espaços urbanos vão adquirindo determinado sentido e
natureza pela dinâmica urbana do seu uso coletivo quotidiano, público, livre,
central porque acessível, construída em função, nomeadamente, das
características físicas desse espaço, da qualidade formal do seu desenho e
dos seus materiais. Estabeleceram- se, assim, nas cidades industriais, espaços
que o ambiente físico e as práticas de sociabilidade quotidiana construíram e
institucionalizaram como espaços públicos urbanos. Estes espaços públicos
urbanos, que se tinham construído através da institucionalização do seu valor
de uso pelas práticas sociais quotidianas, acompanhando a industrialização das
sociedades, assumiram, então, em determinados casos, o estatuto urbano de
espaços particularmente vocacionados para essas referidas práticas de
sociabilidade e demais manifestações cívicas.
Esta dinâmica sofre, por sua vez, um processo histórico de reapropriação,
reorientando as tendências existentes para um tipo de consumo comercial. É
precisamente bajo el efecto de estas operaciones (...) que (...) la ciudad
pierde ese valor de uso (...) convirtiéndose en un valor de cambio (...). Toda
atividade de mercado (...) se localiza allí donde previamente existen elementos
com poder de convocatoria ciudadana. Es precisamente el conocimiento de estas
atividades, de carácter extraeconómico, lo que nos ofrecerá una explicación al
hecho de las tendencias coletivas que aglutina el centro de la ciudad (Alvarez
Mora e Roch, 1980: 102, 106).
No entanto, estabelecido o centro da cidade enquanto elemento âncora da
construção da representação social da cidade, este elemento âncora centro
influencia, também, o processo posterior à objetivação dessa representação
social, na medida em que, depois de constituídas, as representações sociais
passam a impregnar a realidade, ultrapassando o estatuto de mera representação
ao induzirem, nos indivíduos, a criação da realidade que valide as explicações
contidas nas suas representações. Podemos, assim, considerar que é,
nomeadamente pela comunicação interindividual no quotidiano urbano, que todos
os indivíduos partilham ideias, conhecimentos, atitudes e explicações
socialmente construídas acerca da cidade. Investindo no seu espaço através do
uso prático e da interação permanente com elementos físicos dessa cidade como
ruas, praças e monumentos, estes elementos são, também, ativa e quotidianamente
apropriados pelos cidadãos através de rituais, celebrações, comportamentos
estandardizados ou discursos sobre a cidade que, reforçando o significado
social desses elementos, contribuem para o ordenamento identitário do espaço
urbano, rotulando determinados lugares como lugares adequados para tais
atividades, que adquirem, assim, os significados associados a essas atividades.
Neste processo, o centro é um lugar urbano em que a capacidade social dos
atores para atribuir e partilhar significações comunica e reproduz, nesse
lugar, um sentido e um significado reforçados: o centro resulta, não só de
atributos físicos e funcionais intrínsecos, mas resulta, também, de qualidades
atribuídas e reforçadas pelos mecanismos do processo de representação social da
cidade. A perceção do centro e a representação da cidade, resultam, então, da
dinâmica de relacionamento e interdependência quotidiana, onde a repetição
sistemática de percursos, usos e apropriações determinadas do espaço urbano
fornecem informações e imprimem sulcos que, acumuladamente, contribuem para
cartografar mentalmente o espaço vivido. Esse mapa mental é a cidade de cada um
territorializada, em que o centro adquire e reforça certas características, de
acordo com os significados e a informação que as pessoas têm e constroem sobre
esse lugar da cidade, no quadro de determinada interação quotidiana assente na
memória das diferentes experiências associadas a esse local e que permite
associar, ao centro, determinados significados sociais urbanos socialmente
construídos e partilhados.
6. Centralidade urbana e produção do espaço
Em Theory of the city as object (Hillier, 2002), a centralidade é apresentada
como um processo que se desenvolve através do impacto e influência da
configuração espacial no desenvolvimento da atratividade para localização de
determinadas atividades funcionais urbanas. Esta contribuição da morfologia
urbana ou padrão do espaço público desenvolve-se através de determinada lógica
de configuração desse espaço que, influenciando a ocupação funcional do
território, contribui para a concentração e densificação espacial de atividades
também produtoras de centralidade. Neste processo de interação, o padrão de
espaço público, construído através da ligação dos edifícios de uma cidade,
origina, então, determinada morfologia do espaço que atrai determinados usos
para locais com elevado movimento e afasta localizações como a atividade
residencial.
Este processo é explicitado pela análise de um mapa axial, entendido como the
least set of longest lines of direct movement that pass through all the public
space of a settlement and make all connections (Hillier, 2002: 153), em que se
calcula, para cada linha ou eixo de via, a mínima quantidade de linhas que
devem ser usadas, no todo ou em parte, para se ir de uma linha até outra, tendo
em conta todas as outras linhas do sistema. Obtém-se, assim, o valor da
integração de cada linha relativamente a todas as outras, traduzido,
quantitativamente, em determinado valor de integração global, medida de
acessibilidade do referido sistema.
A centralidade urbana é, por isso, um fenómeno que resulta destes fatores
espaciais que mediatizam a construção social do espaço urbano num contínuo
processo, em que a vida social e económica urbanas, sofrem, inicialmente, os
efeitos da organização morfológica do espaço e consequente acessibilidade
instalada para, posteriormente, a dinâmica socioeconómica concorrencial
instalada desempenhar um papel decisivo na constituição e na localização das
atividades económicas para, posteriormente, os referidos fatores espaciais
voltarem a desempenhar um novo papel decisivo no desenvolvimento e na
sustentação desta centralidade intraurbana. A centralidade urbana vai-se,
assim, constituindo como um product both of the overall configuration of the
grid, which decides where the centre should be, and the kind of local process
of grid adaptation (Hillier, 1999: 120).
Trata-se de uma perspetiva que reorienta a dinâmica relacional entre o social e
a noção física de espaço, ao identificar o mecanismo através do qual o espaço é
produtor social: a configuração urbana através do seu efeito no movimento. De
facto, como resultado do estímulo inicial provocado pela acessibilidade da
configuração espacial (determinado cruzamento inicial de ruas onde,
posteriormente, se possa desenvolver um mercado), desenvolve-se uma crescente
concentração de usos do solo que, provocando um efeito multiplicador, origina
um determinado padrão de áreas urbanas funcionalmente densificadas.
Este modelo teórico relativo à análise da centralidade urbana enquanto processo
de configuração espacial permite, portanto, abordar o tema da centralidade
urbana a partir de um processo espacial em que a atratividade de cada elemento
do sistema urbano está relacionada com a configuração da rede e com o seu
desenvolvimento correlacionado com determinados usos do solo e atividades
concorrenciais em mercado. A centralidade não é, assim, uma situação estática,
mas um processo em que os elementos interdependentes, sócio-económicos e
espaciais, atraem e produzem, interativamente, o reforço da diferenciação
espacial e da especialização funcional.
Os fatores físicos mediatizam a construção do espaço urbano num contínuo
processo socioespacial em que a configuração morfológica instalada (em regime
de livre concorrência) desempenha, inicialmente, um papel decisivo na
dinamização da constituição e localização dos centros para, posteriormente, os
fatores sócio-económicos concorrenciais desempenharem um papel decisivo no
desenvolvimento e na sustentação do centro intraurbano. É neste quadro de
interação com elementos sócio-económicos que este modelo teórico pode, aliás,
ser adequadamente mobilizado para a análise empírica do fenómeno da
centralidade. Este quadro de múltiplas interações tem, ainda, uma virtualidade:
é através destas dinâmicas de interação múltiplas que o caráter excessivamente
positivista a que esta proposta de Hillier é, por vezes, acusada, se pode
controlar. Este facto social total, concentrando uma dinâmica de
relacionamento entre dimensões mentais e psicológicas, normativas e económicas
da vida social, é um conceito totalizante, entendido como realidade complexa
onde cada componente integrante só é significante face a todas as outras e à
realidade que integram, realidade essa unicamente separável por convenção.
Conclusões
Foi no processo de expansão da cidade em industrialização, e inerente processo
de divisão funcional da ocupação do solo urbano, que nasceu e se desenvolveu
uma dinâmica de centralidade urbana que, enquanto processo de produção dos
centros das cidades, é lugar de articulação dos processos de produção e de
consumo da cidade industrial capitalista e, simultaneamente, produto e produtor
de diversas configurações urbanas. A progressiva separação das atividades
sociais, inerente à organização social industrial capitalista, nomeadamente a
progressiva divisão funcional do espaço urbano, origina a localização, no mesmo
lugar urbano, de atividades complementares em busca de economias de
aglomeração, pela redução dos custos de produção através da utilização das
infraestruturas existentes, que induzem a localização de novas atividades e
específicos serviços urbanos de tipo político, de tipo administrativo ou de
tipo comercial ou cultural.
Este processo de construção e de desenvolvimento da centralidade urbana,
através da concentração e sedimentação de uma certa localização específica de
atividades e serviços urbanos, desenvolve-se, também, na construção social de
determinados significados ao espaço urbano, nomeadamente na construção da
significação social de lugares centrais, pela interação permanente com
determinados espaços, nomeadamente determinados espaços públicos que adquiriram
o referido estatuto de lugares particularmente vocacionados para práticas de
sociabilidade e manifestações cívicas da vida social urbana, através da
contínua e quotidianamente repetida comunicação e partilha de um conjunto de
informações sobre a cidade, que configuram, assim, determinada representação
social do espaço urbano.
Originárias, nomeadamente, na interação social quotidiana urbana, as
representações sociais contribuem, então, para a construção de realidades
coletivamente significantes, como os centros das cidades, no entendimento do
espaço (social) urbano como produtor e produto do próprio espaço, onde a
atividade social e respetiva interação com esse espaço urbano, contribui para
construir, reproduzir e modificar, continuamente, a leitura simbólica e
espacial dessa cidade.
A formação de um conjunto de imagens principais sobre esse lugar, no quadro da
construção das perceções territoriais dos lugares e da nossa relação com eles,
é o resultado de uma produção histórica sempre em transformação e consubstancia
um processo de espacialização social dos significados urbanos. Esta capacidade
social dos indivíduos para se apropriarem de elementos físicos e simbólicos,
atribuindo significações determinadas a lugares determinados, pode conferir a
esses lugares do espaço urbano uma identidade de lugares centrais para a
sociabilidade urbana, que o processo de construção das economias de
aglomeração, através da densificação de atividades e serviços nesses lugares
centrais da sociabilidade urbana, reconverte em determinado padrão de
configuração do espaço.
Este padrão e esta estrutura da rede e da morfologia do espaço urbano assim
construída, ligando os edifícios construídos de uma cidade, suscitam
determinados usos de ocupação funcional do espaço urbano, atraindo,
nomeadamente, atividades concorrenciais em mercado livre. Este processo de
diferenciação espacial e especialização funcional que determinada configuração
e morfologia urbana acentuam, aprofunda-se com o urbanismo corbusiano que,
aplicando, nas suas políticas urbanas monofuncionais, a centralização espacial
da gestão das atividades produtivas e a centralização espacial de certas
atividades de serviços, viabiliza a constituição de uma área administrativa e
comercial nas grandes aglomerações urbanas, que se torna objeto de intensa
disputa territorial, no quadro de determinada dinâmica de ocupação funcional do
espaço urbano e de determinada dinâmica de organização ecológica do espaço
urbano.
Esta área administrativa e comercial, originada pela dinâmica do fenómeno
centralidade urbana, integra um sistema de lugares que, no plano da oferta de
bens e serviços, encontra, na ordem de importância dos bens e serviços
oferecidos nesses centros (em que os lugares de hierarquia mais elevada são os
lugares onde se localizam os bens de maior raridade no ponto de máxima
acessibilidade intraurbana), a medida da sua centralidade. Assim, a
centralidade é um fenómeno social total de incidência urbana, um fenómeno
dinâmico onde se cruzam as diversas dimensões da vida social, é o produto da
ação conjugada de diferentes estruturas numa determinada sociedade e suas
determinações numa determinada época histórica.
No entanto, analisar a centralidade urbana enquanto totalidade não significa
analisar todas as suas dimensões e aspetos relacionais. De facto, só nas
circunstâncias em que as unidades sociais de análise têm dimensões restritas é
possível, como refere Raymond Boudon, ter como ideal atingir a totalidade' da
realidade social, no sentido de inventariar esta realidade de uma maneira
exaustiva (Boudon, s/d: 38), porque existe um conjunto de investigações onde
a ideia de totalidade pode ter um significado relativamente preciso, seja
porque o objeto possa ser considerado como exaustivamente inventariável, seja
por ser concebido como um sistema, mas existem outras onde a ideia de
totalidade não desempenha manifestamente nenhum papel, nem tem utilidade
alguma (Boudon, s/d: 40). A noção de centralidade, enquanto facto social total
num processo de mudança historicamente determinado, constitui, assim, uma
proposta de abordagem deste fenómeno social urbano, que determinada escolha
seletiva de diferentes perspetivas disciplinares permite operacionalizar.
Compreender o processo da centralidade intraurbana nas cidades industriais
capitalistas modernas, implica, então, teoricamente, uma reflexão no contexto
dos contributos provenientes de diversas perspetivas disciplinares
indispensáveis para a compreensão da organização e do ordenamento dos espaços
urbanos e implica, também, num entendimento teórico-metodológico racionalista
da investigação científica, o desenvolvimento de procedimentos de caráter
multidisciplinar, através da sobreposição dessa heterogeneidade de perspetivas
(que mantêm a sua especificidade e as suas próprias conclusões) sobre o mesmo
objeto de estudo: a centralidade urbana definida, enquanto fenómeno social
total, pela diversidade e densidade das relações sociais e pela aglomeração de
recursos culturais, políticos ou do conhecimento da cidade moderna.
Apesar da significativa diversidade da dinâmica da centralidade, em termos da
natureza concreta dos processos de constituição e de afirmação dos centros e
dos específicos momentos temporais em que esses processos ocorreram, foi,
essencialmente, no quadro dos processos de construção das modernas cidades
industriais que essas realidades urbanas se constituíram, nomeadamente ao longo
do século XIX. Era o período do capitalismo liberal de concorrência, com um
regime de acumulação extensivo até sensivelmente meados do século XIX, que
correspondeu ao grande desenvolvimento da indústria têxtil e da energia a
vapor, que alterou radicalmente a fisionomia tradicional dos territórios e que
construiu a cidade industrial moderna, pela destruição da cidade pré-
industrial, plurifuncional e socialmente heterogénea.
Posteriormente, na transição do século XIX para o século XX e com a
substituição do capitalismo industrial pelo capitalismo financeiro, assiste-se
a um outro ciclo de desenvolvimento. De facto, se na estratégia de localização
de atividades da época fordista assumiam particular importância as economias de
escala (vantagens derivadas das reduções de custo ligadas à ampla dimensão das
unidades produtivas) e as economias de aglomeração (vantagens dependentes da
vizinhança espacial de uma multiplicidade de atividades), no pós-fordismo
perdem importância as economias de escala, porque as estratégias de localização
se apoiam numa nova realidade, as economias de diversificação: vantagens que
decorrem da capacidade de uma empresa produzir uma gama diversificada de bens e
serviços ou da capacidade de coordenar a sua produção de forma eficaz,
independentemente da localização das unidades produtivas ' situação própria das
multinacionais, capazes de definir, à escala internacional, a localização das
suas empresas.
Enquanto na época fordista assistimos, por isso, a uma tendência geral para a
concentração das atividades produtivas em grandes polos urbanos, no período
pós- fordista assistimos, não só a tendências centrípetas, mas também à
manifestação de acentuadas tendências centrífugas. Estas tendências centrífugas
referem-se, nomeadamente, ao desenvolvimento de atividades de produção
industrial de bens de largo consumo, em unidades mais pequenas, que,
preferencialmente localizadas no exterior das áreas metropolitanas, buscam aí
custos de produção inferiores, nomeadamente em termos dos custos fundiários do
solo urbano. Este processo de desindustrialização urbana viabilizou, no
entanto, por outro lado, uma certa reafirmação das economias de aglomeração com
a deslocação, para esses subúrbios, de empregos de caráter terciário,
nomeadamente grandes superfícies comerciais viabilizadoras de novos
quotidianos, com novas vivências culturais e urbanas.
As tendências centrípetas, por sua vez, referem-se, sobretudo, às atividades
designáveis de processamento de informação, atividades terciárias mais
qualificadas: serviços financeiros, serviços de consultadoria, atividades de
pesquisa, atividades culturais. Para estas atividades, a localização nos
centros direcionais das cidades e das metrópoles apresenta-se determinante,
pela proximidade dos centros de decisão política e dos centros de pesquisa
tecnológica.
Assim, sobretudo ao longo da segunda metade do século XX, os subúrbios
metropolitanos foram sendo, progressivamente, transformados, obrigando a uma
reconceptualização do fenómeno metropolitano (agora transformado em pós-
metropolitano) e, também, a uma reconceptualização (Soja, 2000) do anterior
fenómeno suburbano, para traduzir o princípio do fim do ciclo urbano associado
a uma organização particular do habitathumano, a metrópole moderna fordista.
Encerrar-se-ia, assim, desta forma, a partir de princípios dos anos 70, o ciclo
do desenvolvimento da produção e consumo de massas e o ciclo do desenvolvimento
urbano moderno de tipo fordista-corbusiano, representado pelo modelo
monocêntrico em que a cidade original, consolidada, se constituía como
referência identitária para a maioria dos cidadãos, dominando económica e
culturalmente toda a área urbana, que integrava, também, os seus arredores
suburbanos e periféricos. No seu lugar, vai surgindo uma nova entidade that is
still difficult to grasp and that as been variously defined ( ) an open network
with no central places, or with a plurality of nodes', not necessarily
arranged in a clear hierarchical order. (...) For the sake of classificatory
completeness we can call this new metropolis, ( ), the third generation (or
late) metropolis (Martinotti, 1994: 7, 9 e 11).
Recentemente, a evolução na dinâmica da centralidade no período de fim de
século confronta-nos com a afirmação de uma policentralidade urbana em
desenvolvimento através do protagonismo das grandes cadeias de distribuição e
através da difusão de novas práticas de consumo e de lazer, indissociáveis da
acessibilidade automóvel familiar e individual. O aparecimento de novos centros
de comércio e serviços fornece aos consumidores, não só alguns serviços e
produtos de raridade que se podem encontrar no centro tradicional, mas também
espaços de consumo mais adaptados à concorrência setorial, às estratégias do
capital internacional e à evolução das técnicas de marketing, bem como à
evolução da acessibilidade automóvel como modo dominante da mobilidade urbana.
Emergindo novas centralidades e novas acessibilidades no conjunto do espaço
urbano, os Centros tradicionais das cidades perdem importância como lugar de
referência para a leitura e vivência cívica da cidade, e deixam de ser,
justamente, o lugar mais facilmente acessível da cidade e o único espaço
integrador das funções comercial, financeira, político-administrativa e de
lazer.
No Porto, o processo de (re)estruturação urbana, nomeadamente ao longo dos anos
80, configurou uma aglomeração urbana complexa, que assenta num processo de
terciarização em que, se por um lado, acompanha o evoluir da retícula urbana do
modelo difuso de urbanização e industrialização, por outro, acentua o efeito
aglomerativo do núcleo duro da AMP e, em especial, da Boavista e do centro
tradicional. Igualmente relevante neste período iniciado com os anos 80, para o
movimento de descentralização metropolitana do terciário, é a deslocação e a
rápida expansão, para a periferia imediata do Porto, de estruturas comerciais
de grandes dimensões, os hipermercados.
Estes centros comerciais suburbanos, substituindo as áreas comerciais dos
centros tradicionais e constituindo-se como centros de atividade comercial,
constituíram-se, também, como centros de atividade social, embora segregada. O
centro comercial vai-se tornando, por isso, central, com tendência a
secundarizar a cidade real, ao propor-se como referência ideal do espaço
público urbano.
Tendo surgido para imitar as ruas reais da cidade real, reestruturando,
constantemente, os produtos e as mercadorias, o centro comercial garante uma
eficiente circulação de um grande número de bens, induzindo, no comprador,
novas necessidades, distintas das necessidades reais determinadas
objetivamente, mas necessidades que, articulando os aspetos materiais e
simbólicos da vida social humana, vinculam o consumo e o quotidiano. Na sua
condição de espaços privados e segregados, os centros comerciais substituem,
assim, a sociabilidade no espaço público da rua e da praça tradicionais.
No caso da cidade do Porto, com a afirmação da nova centralidade de ocupação do
solo na Boavista e com a afirmação de outras centralidades na ocupação
extensiva do solo em espaços periféricos, instala-se uma dinâmica de
centralidade nova, uma dinâmica de centralidade partilhada. O modelo
tradicional vai, assim, dando lugar a vários centros e várias periferias, no
contexto de uma área urbana inserida num espaço regional difusamente
industrializado, em tensão entre a desestruturação e a policentralidade, e em
que a nova dinâmica de centralidade, desenvolvida na ocupação extensiva do solo
periférico, é, também, consequência de novas dinâmicas de sociabilidade urbana
instaladas, nomeadamente nos novos hipermercados que vieram substituir
parcialmente (trata-se de espaços de consumo monofuncionais, igualmente
importantes para o lazer e o encontro urbanos, embora segregadores, pelo
caráter privado do seu estatuto jurídico), o protagonismo do espaço público do
centro tradicional.
A confirmação, nas últimas décadas do século XX, da constituição de uma
realidade urbana integrando o Porto e os concelhos limítrofes, onde coexistem
fenómenos de metropolinização e de progressiva interdependência urbana,
confrontou, assim, os investigadores e os decisores, com novas condições
urbanas emergentes, indissociáveis de novas práticas de vivência urbana e de
consumo, através das novas modalidades de acessibilidade individual e familiar
e com a necessidade de definir, para o centro tradicional do Porto, um novo
protagonismo no quadro de uma policentralidade urbana supramunicipal, para que
este tempo de crise, de transformação, inserido no tempo longo das cidades,
pudesse ser, historicamente, cumprido.