Incerteza e redefinições do trabalho médico: um estudo de caso sobre o
aconselhamento genético no cancro hereditário
Introdução
O desenvolvimento científico e tecnológico em medicina tem sido marcado, e
frequentemente celebrado, pelo aumento das capacidades de avaliação e
intervenção em áreas como o diagnóstico e a terapêutica e pela resolução eficaz
de vários problemas. Paradoxalmente, no entanto, não têm deixado de surgir
novas áreas de incerteza através da sua ação, devido ou às limitações do
conhecimento médico, ou a problemas que resultam da incapacidade de dominar
completamente o conhecimento disponível, nomeadamente quanto aos benefícios,
perigos e limitações de novas abordagens, técnicas ou medicamentos.
Considerando que a incerteza é constitutiva da medicina (Fox, 1959, 2003), esta
questão adquire uma acuidade redobrada numa altura em que vai sendo cada vez
mais notória a amplitude e a natureza das reorganizações suscitadas pela
importância e pelo impacto das inovações tecnológicas no quadro da atual
biomedicina (Clarke et al.,2003). Trata-se, com efeito, de um novo perfil que
é, em si mesmo, revelador de uma dinâmica de crescente interpenetração das
práticas médicas com as ciências da vida, em particular ao nível dos seus
conhecimentos, práticas, instrumentos e formas de regulação. Daqui resulta,
portanto, que as inovações contemporâneas não estão simplesmente a estender o
repertório médico, mas estão a transformar a própria medicina. Estas inovações
estão a mudar a nossa compreensão da doença e da saúde, redefinindo os
conceitos de doença, de medicina e de corpo.
Com efeito, muitas das atuais tecnologias médicas, sobretudo as que se
encontram ligadas aos desenvolvimentos da genética e da biologia molecular, têm
estado na base de novos entendimentos sobre a imensa variedade e complexidade
das múltiplas interrelações que interferem na organização dos fenómenos
biológicos. De resto, as próprias promessas inauguradas pela medicina genómica,
que durante algum tempo alimentaram fortes esperanças e expetativas em torno
das possibilidades de conhecimento e controlo das doenças, deram, efetivamente,
lugar à conceção de que, ao contrário do que preconizava a abordagem
reducionista do programa genético (a premissa one gene, one protein), não há,
afinal, um genoma normal, no sentido em que a variação é a norma; todos temos
múltiplas variações moleculares que, em diferentes circunstâncias, podem
conduzir à expressão de doenças ou condições patológicas. A constatação de que
não existe o ser humano geneticamente normal, dado que todos somos portadores
de genes imperfeitos, conduz ao esvaziamento da noção de normalidade, na
medida em que todos estamos em risco de alguma condição (Rose, 2010).
Neste sentido, portanto, têm emergido novas categorias e quadros explicativos
que se ancoram em noções como desordensou síndromas, o que significa que as
tradicionais classificações biomédicas de doença ' baseadas em modelos de cariz
cartesiano ' são substituídas por síndromas de etiologia incerta. Estas doenças
pós- modernas, como as designa Clayton (2002), desafiam as categorias médicas
ao mostrarem que dificilmente se confinam a lógicas dicotómicas e a enfoques
redutores e organicistas. O quadro de referência organicista entra, assim, em
falência, dado que a visão mecânica da saúde e da doença se torna insuficiente
face à crescente indistinção entre o normal e o patológico (Rose, 2010).
Neste quadro de novos paradoxos e incertezas torna-se, então, relevante avaliar
e compreender que reconfigurações ocorrem no âmbito do conhecimento médico e
das suas práticas profissionais, desde logo porque passam a estar efetivamente
em causa diferentes quadros explicativos sobre a doença e um novo perfil
preditivo e de gestão do risco em função do conhecimento de predisposições
genéticas providenciado por novas tecnologias, como, nomeadamente, os testes de
diagnóstico genético.
Assim, e tendo como ponto de partida uma investigação qualitativa-intensiva
centrada no estudo de uma consulta de risco familiar (CRF) numa unidade
hospitalar especializada em oncologia, pretende-se neste artigo analisar as
dimensões de incerteza que decorrem do perfil de um novo tipo de contexto
clínico, em que as formas de conhecimento e o tipo de intervenção profissional
se inscrevem em abordagens que assentam em lógicas explicativas tributárias da
genética e da biologia molecular. Através do estudo de uma consulta que
desenvolve um trabalho de aconselhamento genético na área do cancro gástrico
para indivíduos com história familiar desta patologia, procura-se mapear e
discutir a natureza das várias redefinições ao nível das práticas de trabalho e
das formas de julgamento clínico, sobretudo quando os médicos se confrontam, em
muitas circunstâncias, com doenças que são poligénicas e multifatoriais. Ou
seja, doenças cuja extrema complexidade biológica inviabiliza perspetivas
simplificadas e deterministas, donde resulta que a escala da incerteza médica
se amplia substancialmente.
No âmbito do estudo de caso que aqui se desenvolve, são, portanto, as
expressões dessa incerteza que constituem o enfoque principal da discussão, na
medida em que permitem caraterizar e compreender melhor a lógica preditva desta
realidade médica. Através de técnicas de investigação como a observação direta
e as entrevistas semiestruturadas e aprofundadas, que foram aplicadas aos
responsáveis desta consulta2, exploram-se duas dimensões de análise principais:
as redefinições das práticas e lógicas de trabalho profissional decorrentes de
um perfil preditivo acerca do risco genético dos indivíduos (e suas respetivas
famílias) que são acompanhados na CRF, e as reconfigurações da conceção de
doença e de medicina; aquilo que aqui se designa como molecularização da doença
e genetização da medicina.
1. Redefinição das práticas e formas de julgamento clínico
Relativamente aos vários tipos de redefinições suscitadas pelo reforço do
perfil marcadamente biomédico da medicina genética, bem como pelo novo quadro
de paradoxos e incertezas que caracterizam este novo tipo de contextos
clínicos, justifica- se salientar algumas das vertentes onde essas mudanças
assumem uma expressão mais notória.
Uma das redefinições que importa sinalizar é de natureza concetual e refere-se
à emergência de um novo quadro explicativo da doença, no sentido em que a
abordagem médica tende a surgir como que colonizada pela perspetiva genética,
em particular no que diz respeito ao entendimento molecular da doença. Trata-
se, na realidade, de um processo que é um reflexo da reconfiguração da própria
investigação oncológica em geral. Essa mudança começou a desenhar-se de forma
mais consistente e consequente a partir da década de 1970, sobretudo nos EUA,
numa altura em que a globalização da investigação sobre o cancro no âmbito da
biologia molecular o redefiniu como doença genética, em detrimento da
investigação do cancro ligadas às agressões ambientais (cf. Kevles, 1993:21;
Nunes, 1996: 13).
De facto, este processo de molecularização do cancro ' cientificamente
alicerçado no conceito de oncogene3 ' permite compreender as razões que estão
na origem da gradual emergência de novos conceitos e abordagens que conduzem a
um entendimento específico desta patologia e, por consequência, a teorias que
têm imposto de forma hegemónica a ideia de que o cancro é uma doença que
resulta dos genes humanos. O advento e a consolidação da investigação
oncológica baseada na teoria dos proto-oncogenes, e respetivas tecnologias
genéticas e moleculares, têm vindo a moldar de forma determinante os principais
eixos de orientação das atuais agendas científicas consagradas ao estudo do
cancro, designadamente através da deslocação de vastos investimentos
financeiros para a área da biologia molecular (Fujimura, 1996).
Efetivamente, este conceito tem-se revelado central no âmbito da investigação
oncológica e tem dado origem a novas formas de representação do cancro que
estão na base de linhas de investigação ancoradas nas tecnologias genéticas e
moleculares que consolidam a já referida reconceptualização da doença e
oferecem esquemas gerais e unitários sobre a compreensão da vida e dos seus
estados patológicos.
Uma outra redefinição importante é a que diz respeito às mudanças das formas de
avaliação e julgamento clínico, sobretudo em contextos clínicos de
aconselhamento genético, pois o que nestas novas realidades médicas se torna
notório é, precisamente, a transformação das formas de avaliação médica face a
um conjunto de categorias paradoxais, nomeadamente a passagem da doença ao
risco da doença e o alargamento desse risco não só a um novo tipo de doente
(pré-doente), mas também a um novo locusdessa doença (do doente individual
para a sua família).
A este propósito é de grande utilidade fazer referência ao estudo de Mendes
(2003, 2006) sobre o quotidiano de risco genético de cancro hereditário, em
particular como o mesmo é percecionado e experienciado pelos indivíduos. Na sua
investigação, a autora faz notar que o universo da medicina preditiva pauta-
se pela ausência das duas categorias que definem e delimitam o quotidiano da
medicina curativa ou paliativa ' a doença e os doentes. De facto, o estar em
risco torna-se numa condição de fronteira resultante da indefinição da ainda
não doença, uma vez que se torna uma tarefa de grande ambiguidade determinar
se serão doentes os indivíduos que se encontram pré- sintomáticos, ou seja,
os que estão probabilisticamente em risco de desenvolver diferentes formas de
patologia.
De facto, em contextos deste tipo, o risco impõe-se como uma das categorias
principais da investigação clínica e acaba, muitas das vezes, por se confundir
com a própria patologia, como se o estar em risco se convertesse numa
condição clínica. Tal é, sem dúvida, revelador de uma transmutação ontológica
da noção de doente e da própria doença enquanto entidade clínica passível de
ser interpretada e configurada pela semiologia e sintomatologia médica (Mendes,
2003). Por isso, e embora a perspetiva de previsão possa sugerir, de um certo
ponto de vista, um ganho importante de eficácia da medicina em atuar
precocemente na manifestação de determinada doença, a verdade é que, em rigor,
nos referimos a uma perspetiva virtual fundada num cálculo de probabilidades
que pode não se concretizar pela ocorrência de uma multiplicidade infinita de
fatores contingenciais não probabilificáveis4.
Por fim, mas não menos importante, é de salientar o facto de que estes
contextos clínicos propiciam novas práticas e lógicas de organização do
trabalho. O aspeto mais expressivo desta realidade reside no facto de a clínica
genética se apoiar, cada vez mais, no desenvolvimento de formas de trabalho
colaborativo (Bourret, 2005) que conduzem à transformação do conteúdo e
organização das atividades médicas e formas de julgamento clínico. Tal
pressupõe um maior desenvolvimento do trabalho multidisciplinar, dado que os
médicos não só se articulam com profissionais de outras áreas de especialização
(médica e técnica), mas também porque mobilizam vários saberes e técnicas, o
que pressupõe que se encontrem em estreita articulação com outras perícias,
nomeadamente com os biólogos dos laboratórios de biologia molecular. Assiste-
se, portanto, não só a uma nova lógica de divisão do trabalho, através de uma
importante redefinição de fronteiras profissionais que acentuam as
interdependências funcionais, mas também a um alargamento e a uma
diversificação dos espaços de atuação dos médicos relativamente ao trabalho de
aconselhamento genético. E isto porque as características do trabalho médico
passam a extravasar o espaço do consultório. Ou seja, os resultados dos testes
de diagnóstico genético tornam-se de tal modo importantes na (re)definição das
avaliações clínicas e na elaboração das estratégias preventivas e preditivas,
que o trabalho de aconselhamento genético, em si mesmo, passa a incluir o
laboratório como um espaço indispensável para a viabilidade e a eficácia das
práticas profissionais subjacentes à clínica genética. Trata-se, portanto, de
um aspeto que confirma e, sobretudo, sublinha o facto de que a decisão médica
não constitui um ato isolado, mas antes um processo inserido e enquadrado pelos
seus contextos profissionais e organizacionais (Serra, 2008).
2. Avaliação clínica em contexto de aconselhamento genético: análise do estudo
de caso
A Consulta de Risco Familiar (CRF) que foi objeto de estudo da investigação que
está na base deste artigo caracteriza-se por ter como principal meta
estratégica seguir famílias com risco aumentado de desenvolvimento de Cancro do
Cólon e Reto (CCR), onde se incluem as famílias com síndromas hereditários de
CCR, e o seu principal objetivo é reduzir a morbilidade e mortalidade por este
tipo de cancro através da identificação de famílias de risco e subsequente
aplicação de programas de rastreio e vigilância.
Relativamente à sua composição, destaca-se o facto de ser constituída por uma
equipa multidisciplinar composta por médicos, enfermeira e secretária clínica.
Conta com a colaboração de especialistas em Biologia Molecular e Anatomia
Patológica, de outros Serviços da Instituição (Serviço de Cirurgia e Bloco
Operatório) e ainda de algumas Organizações do País (alguns Hospitais centrais
e distritais) e do estrangeiro (Centros de Genética de Leidden, Londres e
Newcastel). Quanto ao tipo de trabalho que desenvolve, nomeadamente no que diz
respeito ao estudo das famílias5 às quais é diagnosticado o cancro do cólon a
um dos seus membros, quer numa fase ativa da doença, quer através do acesso a
uma amostra de material biológico do tumor, há uma série de etapas fundamentais
que passam, desde logo, pelo contacto com os diferentes membros da família, no
sentido de os confrontar com a possibilidade de existir cancro hereditário e,
consequentemente, com a necessidade de realizarem os testes genéticos com o
objetivo de saberem se são, ou não, portadores dos genes causadores da doença.
Assim, do ponto de vista médico, a importância de se confirmar a informação de
que os indivíduos são portadores dos genes causadores da doença, tem como
objetivo acionar medidas de prevenção para impedir que o cancro se manifeste.
Se um membro da família for portador da mutação genética que origina a doença,
isto é, se apresentar um teste positivo, é-lhe proposto, a partir desse
momento, que cumpra um protocolo de vigilância específico para os indivíduos em
risco de cancro hereditário do cólon. Deste modo, após a realização da primeira
consulta segue-se um trabalho laborioso, e por vezes longo, de confirmações dos
dados obtidos, nomeadamente através do recurso a certidões de óbito e a pedidos
de informação clínica, bem como a exames histológicos, que são solicitados ao
Registo Oncológico Regional ou a outras Instituições de Saúde.
Numa fase posterior, são marcadas novas consultas não só ao proband6, mas
também a outros membros da família, com o objetivo principal de atualizar a
história familiar e, dessa forma, voltar a aferir o risco familiar. Nessas
consultas também se procede ao esclarecimento dos outros membros da família
acerca do risco de CCR e quais os respetivos programas de rastreio/vigilância.
No caso das famílias com critérios clínicos que possibilitem a sua
classificação como sendo um síndroma hereditário, a indicação é a de que se
proceda ao diagnóstico genético, pelo que, numa dessas consultas, se explica ao
doente em que é que consiste a análise genética e qual a importância que esta
pode ter para a família. Após a assinatura do consentimento informado pelo
doente, procede- se à colheita de sangue que é enviado para o Laboratório de
Patologia Molecular.
É também importante referir ' na sequência do que já foi atrás assinalado ' que
na CRF, o processo clínico não se reporta a um sujeito, mas sim a uma família.
Nele encontra-se reunida a informação sobre todos os membros da família, qual o
seu estatuto de risco e se aderiram, ou não, ao programa de vigilância proposto
nesta consulta. Cada processo, para além dos registos clínicos de cada um dos
elementos da família, tem, também, uma folha de representação gráfica da
história familiar (genograma), feita através de um programa informático próprio
para esse efeito. Pela leitura da história familiar obtem-se informação sobre
as mortes ocorridas na família por CCR (ou por outros tumores), sobre os
elementos que apresentam a doença e sobre os que estão, ou não, em risco de vir
a desenvolvê-la. Através do contacto com esta informação fica-se, também, a
conhecer a componente hereditária da doença, ou seja, a forma como se
manifestou ao longo das diferentes gerações.
Com efeito, e como se compreende pela descrição das etapas e dos procedimentos
que caracterizam o tipo de abordagem médica desenvolvida no âmbito da CRF,
resulta claro que a estratificação do risco é feita em função dos elementos da
história familiar dos indivíduos ' nomeadamente o grau de parentesco, o número
de casos de cancro numa família, os tipos de tumores confirmados, a sua idade
de aparecimento e a própria história clínica ', o que implica um cálculo
probabilístico que estima o risco de um determinado indivíduo desenvolver CCR.
Este trabalho de estratificação do risco em diferentes categorias acaba por
condicionar diretamente a própria definição da abordagem preventiva que se
consubstancia nos programas de rastreio e vigilância.
Todavia, e tendo em conta as incertezas que surgem associadas à complexidade
biológica de algumas síndromas hereditárias de CCR, e às respetivas limitações
do próprio diagnóstico genético, o próprio processo de aferição da
predisposição genética de um indivíduo para determinada doença torna-se
bastante difícil e problemático, dado que nestes procedimentos técnicos aquilo
a que efetivamente se procede é à quantificação dos riscos que enunciam
probabilidades. Tendo em conta a complexidade constitutiva das doenças
poligénicas e multifatoriais, isto significa penetrar num domínio de
significativa imprecisão, uma vez que o risco da doença não se esgota no facto
de um indivíduo ter uma dada alteração num determinado gene, até porque muitas
das predisposições apontadas pelas probabilidades somente se manifestam ' ou
não ' por via da inter-relação complexa de diversos fatores, muitos deles de
natureza exógena, como, por exemplo, os fatores ambientais.
Com efeito, alguns dos aspetos mais salientes que importa enfatizar a propósito
das voláteis e imprecisas fronteiras que acabam por se constituir entre risco e
incerteza em biomedicina, prendem-se com situações complexas que tendem a gerar
erros e incertezas na prática médica, dado que não obstante o tema do risco
assumir uma grande centralidade, refletindo, assim, o próprio esforço de
cientifização que tem vindo a caracterizar estas áreas específicas, o facto é
que emergem de forma cada vez mais nítida problemas e limitações que têm origem
na complexidade dos sistemas biológicos e que se traduzem na grande dificuldade
em lidar com o conceito de incerteza. Dito de modo mais simples, e tendo como
ilustração específica o caso concreto do cancro, tal significa que questões
como a avaliação das lesões pré-cancerosas (lesões percursoras do cancro), que
se supõe terem um potencial de transformação maligna que justifica o
desenvolvimento de estratégias diagnósticas e terapêuticas preventivas; os
erros no diagnóstico e na avaliação prognóstica em áreas como a patologia, com
o caso dos falsos positivos e dos falsos negativos; as dificuldades em avaliar
clinicamente a complexidade dos casos singulares e específicos que são menos
claros e lineares à luz da informação epidemiológica; os chamados casos
borderline que revelam situações de grande incerteza, ou, tal como designados
em patologia tumoral, casos de malignidade incerta (com características tanto
de benignidade, como de malignidade), (cf. Nunes, 2002: 292-302); a existência
de vários tipos de mutações (cf. Lage e Chaves, 1999: 28); as neomutações (cf.
Lage et al., 1998: 14); mutações em genes ainda não identificados (idem: 17);
entre outros, mostram com grande acuidade as múltiplas dificuldades em lidar
com o conceito de incerteza. E isto não só porque as indefinidas relações entre
risco e incerteza tornam dúbias as fronteiras entre estratégias de natureza
mais precaucionária ou preventiva, mas também porque as formas de aferição e
categorização do risco têm implicações na redefinição das abordagens médicas,
sobretudo nas de caráter preventivo, dado que os protocolos de vigilância
médica ' que, não raras vezes, podem ir até formas radicais e agressivas de
tratamento, como as cirurgias profiláticas ' se baseiam em avaliações
probabilísticas e em instrumentos de diagnóstico que determinam as decisões
relativamente aos tratamentos, embora tal não seja isento de dificuldades e
consequências, pois, tal como mostra Nunes, quanto mais precoce for a deteção
de uma patologia, mais incerta será a avaliação prognóstica, e mais
problemática se tornará a decisão sobre o tratamento. ( ) Este paradoxo aparece
com mais força ainda quando as actividades de diagnóstico e de prognóstico
tentam incorporar abordagens que, a partir de um certo momento, prometeram
instrumentos de diagnóstico mais precisos, como a biologia molecular (Nunes,
2002: 302).
No caso concreto dos cancros hereditários do cólon e reto, principalmente o
Síndroma de Lynch7, o recurso aos testes moleculares pode, de facto, remeter
para alguma indeterminação, pois nem sempre os resultados são elucidativos e/ou
conclusivos, o que evidencia as limitações das avaliações clínicas ancoradas em
instrumentos de diagnóstico provenientes da genética e da biologia molecular em
contexto da incerteza associada à complexidade biológica destas patologias.
3. Paradoxos e incertezas da clínica genética
Sem a tecnologia genética não é possível fazer uma classificação
rigorosa das doenças, nem é possível determinar o risco de cada
indivíduo face à predisposição genética que ele possui. Nesse sentido
a translação da genética para a clínica é uma translação óbvia, e não
pode deixar de ser assim porque a genética permite arrumar em gavetas
relativamente rigorosas, estritas, as doenças e o seu prognóstico, e
por outro lado, o laboratório ao classificar o indivíduo
geneticamente, está também a dar aos médicos a expectativa, ou a
perspetiva, da explicação e compreensão da doença, visto que quando
ela está dependente de um defeito genético, nós passamos a perceber
melhor o mecanismo intrínseco da doença e as formas de intervir nele.
Neste aspecto, não acho que a genética seja fundamentalmente
diferente de outras tecnologias .Nesse sentido, a genética não é
muito diferente do que fazer um hemograma ou fazer uma análise
bioquímica. São instrumentos que vão para além dos sentidos dos
médicos. (M1)8
De acordo com estas afirmações, é possível referir que os testes de diagnóstico
genético têm vindo a ser integrados de forma efetiva nas práticas da medicina
moderna, o que é indicativo da consolidação de uma tendência que se traduz na
reorganização do campo médico, no sentido de este se encontrar integrado numa
rede cada vez mais densa e interdependente de perícias. No caso específico da
CRF aqui em estudo, as abordagens e os recursos da biologia molecular são
reconhecidas como estando profundamente integradas na prática clínica, ao ponto
de serem entendidas como um recurso indispensável não só para melhor
compreender os mecanismos de agregação familiar das doenças, mas também para
organizar e estruturar a abordagem clínica que se julga mais coerente com as
avaliações probabilísticas dirigidas aos indivíduos em função da sua história
familiar. É isso que, em grande medida, nos indica a resposta de um dos
entrevistados em relação à importância e ao impacto da biologia molecular neste
campo específico da medicina, quando a este propósito refere:
O conceito de risco familiar surgiu muito antes da biologia
molecular, ou seja, pouco a pouco, sob o ponto de vista clínico, foi-
se reconhecendo que a expressão de certas doenças era maior em
determinadas famílias e foi nascendo o conceito da importância da
história familiar, não só para a doença oncológica, mas também para
outras situações ( ). Portanto, a biologia molecular vem no fundo
explicar uma coisa que já se conhecia bem, mas não se conhecia a base
que explicava o porque é que em certas famílias, certas doenças
tinham uma expressão tão marcada. ( ) Nós tínhamos uma probabilidade
que era global e passámos a poder definir para cada um dos membros da
família qual é a sua probabilidade de ter a doença. Este risco é
modulado por aspectos genéticos e conhecendo os genes que estão
envolvidos no desenvolvimento da doença, podemos separar e codificar
melhor o risco de cada uma das pessoas. (MD)9
Estas considerações reforçam o sentido do que foi argumentado a propósito dos
novos contornos da medicina moderna, porque, efetivamente, o conhecimento
proporcionado pela biologia molecular tem permitido fundar as decisões médicas
na prova experimental, dado que confere uma perspetiva de objetividade e
certeza que parece esvaziar de indeterminação e complexidade o julgamento
clínico sobre os fenómenos da doença. Nesta aceção, os critérios estritamente
clínicos, mais ancorados em faculdades de julgamento próprias de um saber cada
vez mais visto como impreciso, tendem a ser desvalorizados:
Eu defendo que, embora haja critérios clínicos, os critérios
clínicos têm limitações. Nós sabemos que através dos critérios que
existem, classificamos uma família com SL. A probabilidade de,
efectivamente, aquela família ter SL é muito elevada, mas não é certo
que tenha. Nós vamos manejá-la como tal, mas o Gold Standardé nós
identificarmos uma mutação, porque aí temos a certeza absoluta que é
um SL em base genética. O diagnóstico genético permite-nos abordar a
situação de uma forma diferente. Não há incertezas. Não há incertezas
no sentido em que se fizermos o diagnóstico genético para determinada
mutação e o indivíduo não a herdou, ele sabe que não tem um risco
aumentado de vir ter um cancro do intestino, e se não a herdou não há
o risco de a ter transmitido à sua descendência. ( ) Eu acho que o
diagnóstico genético é um complemento para a clínica extremamente
importante e vantajoso, devido a todas estas implicações, porque nos
permite ter uma abordagem mais adequada e com um grau de certeza
maior em relação aquilo que nós estamos a preconizar e a defender.
(M2)
Claro que, vistos sob uma perspetiva mais pragmática, os testes de diagnóstico
genético, como de resto qualquer tecnologia médica, são um meio útil e
importante para o desenvolvimento do trabalho clínico, sobretudo em contexto de
aconselhamento genético. Porém, tal não invalida que se procure reconhecer como
pertinente o facto de os clínicos tenderem a privilegiar e a investir
fortemente em abordagens de natureza experimental e objetivista, relegando para
um plano mais secundário formas de avaliação e julgamento clínico vinculadas a
abordagens qualitativas e contingentes. Este facto torna-se ainda mais
relevante quando se considera que, não obstante o recurso a todas as técnicas
de caráter experimental e quantitativo, as avaliações probabilísticas acerca do
risco de um determinado indivíduo poder vir a desenvolver CCR não se traduzem,
efetivamente, em cenários de certeza e objetividade, dado que a circunstância
de se estar a lidar com doenças poligénicas e multifatoriais que são
intrinsecamente complexas, por um lado, e o facto de se estar a lidar com
probabilidades em que estão ausentes as categorias de doença e doente tal como
são conhecidas, por outro, coloca em evidência o caráter algo paradoxal da
lógica preditiva que está subjacente a este tipo de medicina:
Nós temos que ter a noção que na maior parte dos casos não estamos a
lidar com pessoas com doença efetiva; são pessoas saudáveis. Temos
que perceber que estamos a trabalhar com pessoas saudáveis, que
estamos a trabalhar com probabilidades, porque mesmo que haja uma
doença hereditária, mesmo que a pessoa tenha uma mutação no gene, que
tenha um risco aumentado, nunca é de 100%. No entanto as pessoas
devem ser vigiadas, porque no caso das síndromas hereditárias em que
a penetrância não é completa, não podemos ficar à espera que a pessoa
tenha os 20% de probabilidade de não ter cancro. O facto de ter uma
alteração genética não é igual a ter cancro, mas é igual a ter um
risco aumentado. Isto tem que ser muito bem explicado ás pessoas.
Temos que ter muita preocupação em explicar e em esclarecer as
dúvidas, às vezes mais do que numa consulta. (Enf)10
Relativamente às incertezas que marcam o trabalho desenvolvido pelos clínicos
da CRF, verifica-se que apesar de estes profissionais valorizarem os
guidelinese os contributos provenientes da biologia molecular, os mesmos não
deixam de reconhecer que a complexidade biológica do CCR os confronta com
problemas que limitam, efetivamente, a sua capacidade de conhecer e intervir de
forma eficaz na doença. O facto de se tratar de patologias complexas,
multifatoriais e poligénicas, faz com que haja alguma dificuldade em lidar com
todas as situações, sendo que a maioria desses casos é abordado no âmbito de
estudos investigacionais levados a cabo por estes clínicos, com o apoio e o
envolvimento científico do Laboratório de Patologia Molecular, o que significa
que, não raras vezes, as pessoas que são seguidas na CRF e que pertencem a
famílias atípicas, relativamente ao conhecimento médico existente e às
recomendações protocoladas, são convidadas a participar nesses estudos,
contribuindo, assim, para o avanço do conhecimento médico:
A biologia molecular é um complemento muito importante na abordagem
destas famílias mas não substitui a clínica. Eu considero que a área
do CCR, é a área onde mais avanços se registaram nos últimos anos em
termos do conhecimento dos mecanismos biológicos inerentes ao
desenvolvimento do cancro. Mas por vezes, mesmo naqueles genes que
nós estudamos, há determinadas alterações que nós não sabemos qual é
o seu significado. Por outro lado, há determinados genes que nós
ainda não conhecemos e que, seguramente, serão responsáveis por
formas hereditárias de CCR. Já para não falar dos polimorfismos e
qual o seu impacto, não tanto nos síndromas hereditárias, mas nos
casos de agregação familiar de CCR ( ). Tal como no caso do
conhecimento das síndromas hereditários, que tem aplicação à clínica,
mas que inicialmente também foi uma área de investigação, podemos
fazemos a translação para a parte clínica. Só assim é que a medicina
evolui, só assim é que a medicina progride. No CIPM11 nós temos a
parte genética de rotina (diagnóstico genético nas famílias com
síndroma hereditário), e por outro lado, temos os nossos trabalhos de
investigação que estão a decorrer e que, neste momento, não podem ter
aplicação na clínica, porque estamos a estudar outros genes,
determinadas alterações em genes já conhecidos como estando
envolvidos em determinada doença, mas que não sabemos o significado
das alterações que encontramos. Nessas situações, as pessoas que
estão na nossa consulta são informadas e dão o seu consentimento
informado para participarem nestes estudos de investigação. (M2)
De facto, não deixa de ser relevante fazer notar que a ênfase na abordagem
médica recai, em grande medida, no desenvolvimento dos estudos laboratoriais,
como forma de aprofundar o conhecimento biológico da doença. Deste modo, a
circunstância desses estudos procurarem lidar com a base genética destas
doenças complexas, alimentando a expetativa de que possam ter uma eventual
aplicação na clínica, justifica que, em termos do trabalho de aconselhamento
genético, se valorizem estas formas de abordagem que visam dar resposta aos
problemas relativos à compreensão dos mecanismos biológicos subjacentes à
doença, em detrimento de abordagens mais diretamente orientadas para os
indivíduos. Tal não significa que não fiquem salvaguardadas formas de
vigilância médica baseadas em avaliações de natureza clínica acerca do estatuto
de risco familiar dos indivíduos seguidos na CRF. Assim sendo, e como sugere a
resposta de um outro entrevistado, podemos considerar que a valorização e a
insistência na realização de estudos genéticos mais vastos e aprofundados, se
baseia no pressuposto de que os resultados que vão sendo gradualmente apurados
removerão as dificuldades e as incertezas inerentes à doença:
Nós temos que ser muito restritivos na quantificação das incertezas.
Ao dizer que alguém tem a probabilidade x de ter uma doença, também
estou a dizer a probabilidade de não ter, portanto estamos sempre a
quantificar margens de incerteza. A estatística é a quantificação da
incerteza. ( .) As coisas são complexas até nós as percebermos. Logo
que nós as percebemos e a compreensão se generaliza à sociedade, as
coisas tornam-se mais simples. Uma doença como a PAF, que depende de
uma mutação no gene APC, até perceber que era só isso foi uma grande
complicação, era um mistério com várias hipóteses. Portanto, toda a
narrativa intelectual sobre a doença sofre um colapso a partir do
momento em que se compreende que afinal aquilo é um evento simples e
bem identificável pela genética. (M1)
Relativamente aos modos de lidar com a incerteza, Fox (2003) considera que uma
das principais estratégias ocorre numa fase precoce da formação médica, quando
os estudantes são treinados para a incerteza. Essas estratégias para lidar
com a incerteza passam, principalmente, pela intelectualização dos problemas
sob um ponto de vista científico; pela conversão das incertezas do julgamento
clínico em probabilidades; pelo desprendimento em relação à incerteza,
nomeadamente através de estratégias incorporadas durante a socialização
profissional; pela deslocação da atenção ou por camuflar o problema com o
silêncio; e, por fim, pela ironia face à incerteza, enquanto atitude que
permite ocultar a tensão e a dificuldade de lidar com os problemas dela
decorrentes (Cf. idem: 410-411).
Trata-se de uma leitura que sendo importante, não é, todavia, consensual, na
medida em que, para autores como Atkinson (1984), a incerteza é uma componente
importante no conhecimento e no trabalho médico mas ela coexiste, no entanto,
com a certeza, o que significa que estas são dialeticamente interdependentes e
não apenas dimensões mutuamente exclusivas. Acima de tudo, são dois modos de
relação face ao conhecimento e à ação, o que significa que os saberes
rotineiros e a experiência clínica podem conferir uma orientação prática face
ao conhecimento mais estreitamente articulada com um certo pragmatismo ou até
mesmo com alguma forma de dogmatismo assente em pressupostos de maior certeza e
previsibilidade.
Mas retornando ao caso concreto da CRF aqui em estudo, podemos verificar que a
incerteza é manifestamente assumida pelos clínicos, o que mostra que o
desenvolvimento do seu trabalho contempla esta dimensão e, portanto, não
implica nenhuma estratégia de camuflagem relativamente a este assunto. Aliás,
das várias estratégias referidas por Fox, aquela que, efetivamente, parece
prevalecer é a conversão das incertezas do julgamento clínico em
probabilidades, não deixando os clínicos, todavia, de dar relevância às formas
de abordagem e de comunicação com os indivíduos que frequentam a consulta, dado
que, conforme já foi referido, o trabalho de aconselhamento genético que é
desenvolvido insere-se numa lógica preditiva, o que, neste caso em particular,
significa que a grande maioria dos indivíduos são saudáveis e apenas estão
vinculados à CRF em virtude do seu estatuto de risco. Esta circunstância é
bastante importante e explica, em larga medida, a razão pela qual a incerteza é
comunicada e gerida entre o clínico e as pessoas que são seguidas na Consulta.
A questão da confiança que marca este tipo de relação médica acaba, em suma,
por ter um grande destaque e mostra de que forma subsistem, embora matizados e
relativamente secundarizados, certos princípios que foram tradicionalmente
estruturantes no julgamento clínico, nomeadamente a avaliação qualitativa da
singularidade e da contingência das situações e dos indivíduos concretos:
Os médicos que estão envolvidos nesta consulta estão cientes que no
contacto com as pessoas saudáveis, mais do que com as pessoas
doentes, têm de falar e explicar as coisas de forma muito clara,
muito concisa e muito objetiva e dizer mesmo nós não temos segurança
nenhuma sobre o seu risco. Se é muito, se é pouco. Na dúvida, e
porque podemos pensar que é elevado, deve fazer uma vigilância
apertada' ( ). Fazemos sobretudo vigilância, e não fazemos atuações
profilácticas, porque essas atuações em situações de incerteza não
são adequadas. Temos que dizer isto claramente às pessoas, porque só
assim ganhamos a sua confiança. O conhecimento que nós temos é
limitado e, portanto, têm que partilhar connosco esta incerteza.
(MD)
Conclusão
Olhando panoramicamente para as principais reconfigurações que estão
subjacentes à emergência de novas áreas de incerteza no seio da biomedicina,
verificamos que há alguns desenvolvimentos importantes que merecem uma reflexão
atenta, na medida em que eles são reveladores da heterogeneidade de desafios
que figuram no horizonte da medicina moderna. Um desses novos desenvolvimentos
está relacionado com os exponenciais avanços no campo da genética e o seu
profundo impacto nos quadros conceptuais e cognitivos da medicina,
designadamente através da incorporação de uma visão molecular da vida. Esta
tende a ser geradora de novas incertezas, dado que não obstante se ter vindo a
consolidar uma convicção generalizada quanto às imensas potencialidades que
este novo tipo de conhecimento tem para oferecer, nomeadamente em termos de um
melhor entendimento da etiologia e mecanismos das doenças humanas, têm vindo a
multiplicar-se expetativas demasiado elevadas quanto à eficácia clínica das
terapias génicas, o que denuncia uma visão reducionista e simplificada da
complexidade que são os organismos vivos, não redutíveis apenas aos seus genes
(cf. Fox, 2003: 412-414).
Através da problematização da questão da incerteza, foi possível verificar que
o tipo de trabalho que é desenvolvido pela CRF está fortemente ancorado nos
contributos de outras perícias, em particular da biologia molecular, o que
mostra que as conceções de doença, as abordagens privilegiadas e o tipo de
recursos técnicos a que sistematicamente se recorre estão estreitamente ligadas
a uma visão molecular, que é tida como importante e indispensável para se
conhecer os mecanismos básicos das doenças de base genética. Assim, e apesar de
não haver uma entronização absoluta em torno da importância destes recursos
técnicos para a clínica, não deixa de ser evidente que os critérios e os
julgamentos clínicos acabam por ter um papel relativamente secundário, ao ponto
de só emergirem nas situações em que os contributos destas áreas disciplinares
são limitados ou inexistentes. Esta situação é especialmente visível no caso
das síndromas hereditárias, dado que se procuram conhecer através dos testes
genéticos as mutações que estão na base das patologias.
Também a questão da avaliação clínica em contextos de incerteza, sobretudo a
que decorre das próprias insuficiências e limitações da abordagem e dos
recursos técnicos da genética e da biologia molecular face a patologias que
encerram grande complexidade biológica, revela alguma ambivalência. Como
assinalado, a circunstância de, nesta área da oncologia gástrica, haver
patologias que são multifatoriais e poligénicas, o facto de se desconhecer a
ação dos polimorfismos nas formas de agregação familiar do CCR e nas síndromas
familiares, o facto de não se conhecerem todos os genes envolvidos nalgumas
formas de doença, o facto de, em alguns destes síndromas, a penetrância dos
genes não ser completa (em particular no SL), de ocorrerem neomutações, etc.,
faz com que a prudência dos clínicos seja mais acentuada e que reconheçam as
limitações do seu trabalho face a estas situações complexas e de grande
incerteza. Todavia, é importante notar que subsiste sempre uma forte convicção
de que essas lacunas do conhecimento médico possam ser mitigadas no âmbito de
estudos investigacionais nos quais os indivíduos são convidados a participar.
Enquanto essas investigações de índole laboratorial não produzem conhecimento
efetivo, a incerteza vai sendo gradualmente gerida com os indivíduos e só
nestas circunstâncias é que os critérios clínicos tendem a prevalecer, o que
parece ser claramente denotativo do modo como a experiência clínica acaba por
ter um efeito defensivo de redução da incerteza (Serra, 2008).
Em suma, face à constatação de tanta complexidade biológica, o retorno da
incerteza, por via da emergência de novas dimensões, relembra-nos que esta não
só é constitutiva da própria Medicina, como reatualiza a necessidade de
valorizar o facto de que, na área do cancro genético, o desafio da gestão da
incerteza é permanente, tendo em conta não só o estatuto híbrido e liminar da
doença e do doente, os imperativos de uma nova lógica de trabalho colaborativo
e multidisciplinar, e a própria complexidade biológica das mutações genéticas
associadas às patologias em causa. Estes aspetos implicam, assim, uma
permanente reinterpretação das próprias recomendações e guidelines, o que
significa que o julgamento clínico não se limita a ficar subsumido nas lógicas
normalizadoras das recomendações regulatórias dos guidelinese das provas
epidemiológicas que os sustentam (Bourret, 2005). Há, pelo contrário, um
trabalho de constante gestão da incerteza através da reinterpretação e da
discussão entre os profissionais, o que significa que estes vão reflexivamente
produzindo e adaptando localmente as recomendações que, conjunturalmente,
melhor parecem responder às incertezas concretas do seu domínio específico.
Notas
1Professor Adjunto da Área Científica de Sociologia na Escola Superior de
Tecnologia da Saúde de Lisboa (ESTeSL) (Lisboa, Portugal); investigador do
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Instituto
Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) (Lisboa, Portugal); Doutorando no Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) (Lisboa, Portugal). E-
mail: helder.raposo@estesl.ipl.pt
2A observação direta e a realização das entrevistas semiestruturadas e
aprofundadas concentraram-se, sobretudo, no primeiro semestre de 2006. Para as
entrevistas foram privilegiados os principais intervenientes do contexto de
observação: três médicos (um deles Diretor de Serviço) e uma enfermeira. Os
dados que estão na base deste artigo resultam de uma tese de mestrado
desenvolvida pelo autor (cf. Raposo, 2006).
3De acordo com as perspetivas decorrentes destas linhas de investigação sobre
as origens genéticas do cancro, um oncogene é um gene expresso em células
cancerosas que estão na origem da desregulação da atividade celular.
4A interpretação das incertezas como riscos coloca questões importantes nas
formas de julgamento clínico, porque as probabilidades reportam-se a séries
(apenas podem ser derivadas de estudos de coletividades) e não a eventos
individuais, donde se torna problemática e questionável a ideia do indivíduo
singular como fonte de risco genético (Prior, 2000; Marques, 2002). Esta
conversão das incertezas em probabilidades corresponde, assim, a uma tentativa
de produzir entendimentos que permitam domesticar o aleatório e tornar
cognoscíveis as incertezas (Raposo, 2006).
5Uma atualização feita em fevereiro de 2012 relativamente à recolha do número
de famílias registadas na CRF aquando da realização das entrevistas em junho/
julho de 2006, dá conta de um total de 3367 famílias, das quais 324 são
famílias com Síndroma de Lynch (SL) e 98 com Polipose Adenomatosa Familiar do
Cólon (PAFC). Os restantes casos referem-se a famílias com outros síndromas
familiares, com formas de agregação familiar de cancro gástrico ou situações
pendentes, ou seja, famílias ainda não confirmadas como pertencentes a
síndromas hereditários, mas com um risco acrescido de virem a desenvolver um
carcinoma do cólon ou reto.
6Proband neste contexto significa a pessoa de referência, ou seja, quem deu
início ao estudo da história familiar no âmbito da CRF.
7O Síndroma de Lynch, ou Cancro do Cólon e Reto Hereditário não Associado à
Polipose (CCHNP), é uma doença de transmissão hereditária autossómica
dominante, responsável por cerca de 3% de todos os casos de CCR, condicionando
nos indivíduos afetados um risco elevado (cerca de 80% aos 70 anos de idade) de
desenvolver carcinoma do cólon ou reto (Vasen et al., 1991).
8 M ' Médico
9 MD ' Médico Diretor.
10 Enf ' Enfermeira.
11 Laboratório de Patologia Molecular.