Recensão crítica do livro
Des bons voisins. Enquête dans un quartier de la bourgeoisie progressiste
Sylvie Tissot, socióloga, atualmente professora de ciências políticas na
Universidade Saint-Denis/Paris 8 e membro do CSU-CRESPPA, tem consagrado uma
extensa parte do seu trabalho ao estudo das dimensões sociais, económicas e
políticas que estão na origem dos processos de construção do território, dando,
neste campo de análise, um ênfase particular aos engajamentos militantes e
reformistas de determinados agentes (cf. Tissot et al, 2005; Tissot, 2007;
Tissot, 2010).
Depois de em 2007 ter publicado, em L'État et les quartiers. Genèse d'une
categorie d'action politique, um estudo sobre a génese e a mobilização política
da categoria quartiers sensibles' nas banlieuesfrancesas, Sylvie Tissot nesta
nova obra empenha-se, novamente, na problemática da invenção de novas maneiras
de gerir zonas pobres (p. 48). Em Des bons voisins, um trabalho realizado
entre 2004 e 2010 que teve como palco a zona do South End (SE) em Boston, no
Estado do Massachusetts, nos EUA, a autora vai mostrar de que forma um conjunto
específico de agentes se mobilizou para transformar uma zona mal afamada'
(skid row) habitada por imigrantes, associada à prostituição, ao alcoolismo e à
homossexualidade, num espaço residencial das upper middle classes. Sobretudo
através de um denso trabalho etnográfico, Tissot, seguindo a linha de trabalho
das investigações associadas à gentrification, apresenta um detalhado retrato
sobre a ambivalência, a incoerência, a contradição, a violência e, ao mesmo
tempo, a eficácia social da mixité sociale enquanto ethos celebrada pelas
classes médias superiores, neste trabalho denominadas como progressistas'.
Após um conjunto de conversações preliminares com informantes privilegiados
(alliès) e de, junto destes, ter recolhido um conjunto de informações cruciais
para o desenvolvimento e orientação da pesquisa, Tissot enforma o objetivo
principal desta investigação que, nas suas palavras, corresponde ao estudo da
institucionalização da democracia local e da mixité social, que vêm subtituir
a remodelação voluntarista dos espaços, e a preeminência tomada, na hierarquia
dos espaços desejáveis, pelos alojamentos antigos do centro da cidade em
detrimento da arquitetura moderna das cités (p. 55) Neste livro de cerca de
320 páginas, a autora vai apresentar os resultados deste trabalho através de um
interessante exercício macro/micro, onde a cada manifestação estrutural
apreendida é-lhe associada um caso/sujeito particular tido como exemplar.
Início dos anos 60: os EUA vivem um momento de intensa revolta onde as minorias
étnicas e sexuais reivindicam o fim da exclusão social de que são alvo. Boston,
e em particular o SE não são exceção: aliás, se nesta época no SE encontravam-
se só 5% da população da cidade, era, também, do SE que advinham os 95% dos
problemas dela (p. 59). Aqui os habitantes, sobretudo os negros, num ambiente
amplamente marcado pelo militantismo e pelo associativismo, lutam por melhores
condições de habitação. Igualmente nos anos 60: começam a chegar ao SE alguns
indivíduos da classe média que, a baixo custo, adquirem brownstones(casas de
estilo arquitetónico Vitoriano' ocupadas pela burguesia no século XIX, e
posteriormente ocupadas, na sua maioria, por imigrantes e por classes
populares. Simultaneamente, é proposto pelo Estado um conjunto de programas que
defendem extensas reformas urbanas para Boston. Estavam lançadas as condições
necessárias para se produzirem um conjunto de mudanças no espaço físico e no
espaço social do SE.
Nos anos que se sucedem, o SE continua a contar com a chegada da classe média,
ao mesmo tempo que se constroem torres de alojamento social que vão albergar
grande parte da população que, até aí, reivindicava por melhores condições de
habitação. O SE vai-se valorizando e cada vez se torna mais evidente o
potencial deste espaço. Neste momento foi de extrema importância o papel dos
pioneiros', habitantes intensamente interessados e influentes no processo de
gentrificationdo SE; indivíduos aos quais se juntam uma série de associações
locais (associations de quartier) que vão, igualmente, defender políticas de
reformistas que tomam o SE como alvo. De entre estas associações, S. Tissot
analisa atentamente a Sociedade histórica, uma associação que conta, sobretudo,
com elementos de classes médias superiores, conservadoras, contra o pluralismo
cultural, abertamente associadas ao setor imobiliário, que lutam pela
valorização social e simbólica do SE através da patrimonialização da
arquitetura vitoriana'. O enaltecimento das virtudes do período Vitoriano, a
importância conferida à arquitetura das brownstonescomo marca de uma presença
burguesa passada que pode ser recuperada através de uma homogeneização social
da zona; tudo isto veiculado junto de instâncias políticas e através do Tour,
um passeio cuidadosamente organizado pelo SE para dar a conhecer aquilo que é
um território burguês em potência.
Se, durante os anos 70 e 80, o papel da Sociedade histórica foi central na
valorização do SE e na atração da upper middle class, a partir dos anos 90
ocorrem profundas mudanças no campo associativo, concomitantes às mudanças
sociais e políticas que tiveram lugar nos EUA, que representam uma decisiva
mudança de discurso em relação à valorização do SE, em particular no que diz
respeito à coabitação de diferentes grupos. Neste momento, o SE conta com um
elevado número de condominiums, o que significa um estado de gentrificação
relativamente avançado e, em simultâneo, a emergência de um novo grupo que
domina a cena associativa e que defende a mixité sociale: a burguesia
progressista'. A adoção deste novo discurso que vai marcar a identidade'
territorial e social do SE ocupou o lugar do discurso conservador da Sociedade
histórica que reivindicava a especificidade do SE pela sua arquitetura. Porém
este facto não significou o desaparecimento do discurso conversador, mas a sua
substituição - um exemplo assinável encontra-se nas diferentes tomadas de
posições em relação à mixitésociale' no momento da construção do Pine Inn
Street', um albergue para sem-abrigo.
A leitura deste trabalho de Sylvie Tissot pode-se tornar aliciante quando, com
o apoio do expressionismo tão caro à etnografia, somos levados a refletir sobre
um facto surpreendente: a passagem de uma ética conservadora para uma ética
liberal não representar, em nenhum momento, a passagem de um estado de
desigualdade para um estado de mais equidade social. O discurso da mixité
sociale, progressista, tutor da abertura, da diversidade, da tolerância, é um
poderoso eufemismo, que torna a desigualdade, o fechamento, a produção da
diferença e a intolerância como algo tolerável. E esta tolerância, como mostra
Tissot, é conseguida através da imposição e generalização uma ethosparticular a
um grupo social, como ética legítima, quer dizer, universal, comum a todos
aqueles que a partilham e, mais surpreendente ainda, a todos aqueles que não a
podem partilhar, porque não têm recursos, mas têm de viver nela.
Num registo que recupera e associa um conjunto de temáticas já exploradas pela
sociologia, como a construção de uma moral particular às classes médias
superiores (Lamont, 1992), o fechamento social e territorial particular às
classes burguesas (Pinçon e Pinçon-Charlot, 1989), o reformismo como mecanismo
de invenção de problemas sociais (Topalov, 1999), a demissão do Estado (social)
e a violência social sobre as classes mais pauperizadas (Wacquant, 2005), a
distinçãocomo fundamento da reprodução social (Bourdieu, 1979), Tissot recolhe
um conjunto de dados que permitem recuperar o processo de construção e de
instituição de um sistema de vigilância através da construção e da instituição
de relações amigáveis, colocando-se a questão da mixité sociale nos termos do
interesse pelo desinteresse. Este complexo processo conta com o importante
papel das associações locais, que possuindo grande parte do monopólio do
controlo social e simbólico sobre o SE, têm um importante papel na dominação
das relações sociais, políticas e económicas que aqui têm lugar.
Então, objetivamente, como viver e instituir esta mixité sociale? Antes de
tudo, para se viver nela/dela são necessárias duas atitudes centrais e
inseparáveis: incorporar, enquanto disposição, os mecanismos de tolerância com
o outro' e (de)limitar constantemente quem é o outro', a saber, quem ameaça a
ordem das coisas'.
O processo de exclusão, simultaneamente social e espacial, de quem é
indesejável opera-se sob diferentes formas. Quanto às classes populares, aos
imigrantes, às minorias étnicas, sobretudo aos negros, o distanciamento opera-
se, desde logo, a partir dos preços dos condominiumsque tornam a acessibilidade
duradoura aos espaços impossível. Depois, surge um vasto leque de ações que têm
como objetivo a redução dos efeitos, potencialmente nefastos, da sua presença:
o controlo dos parques por parte das associações, o que implica uma minuciosa
regulamentação sobre condições de frequência; o fechamento sucessivo de bares e
comércio frequentado pelas classes mais desfavorecidas, construindo nesses
locais comércio, restaurantes e bares só acessíveis a classes economicamente
favorecidas; a proibição de fumar e de beber na rua, em certas circunstâncias.
Em resumo, o espaço público é lentamente conquistado pela uppermiddle classe de
forma legítima (capítulo 5). Não terminando aqui o círculo, provavelmente sob o
risco de revolta daqueles que estão sujeitos à exclusão, a burguesia
progressista' põe em prática o que de moralmente melhor pode dar: o
filantropismo, quer dizer, uma compreensão, uma sensibilidade, uma preocupação
partilhada com os problemas que afetam os mais desfavorecidos, como, em
particular, o racismo.
O filantropismo, esse interesse no desinteresse, também passa por questões
sexuais, como a gay friendlness. Como mostra Tissot, apesar de a família
heterossexual continuar a ser o referencial dominante, os homossexuais são
acolhidos com o fervor particular dos defensores da mixité sociale. Porém, esta
gay friendlinesstem de obedecer aos rituais da heterossexualidade (como, por
exemplo, nos bailes das associações locais, os gaysvão, usualmente,
acompanhados por uma amiga lésbica) ou, pelo menos, convém que tudo pareça
heterossexual a nível da forma: são bem-vindos casais homossexuais casados com
filhos adotados. E a heterossexualidade deve dominar em aparência, já que o
flirt, os encontros, entre homossexuais estão espacialmente definidos: o parque
de passeio dos cães, de preferência. E a gay friendliness, esta forma
friendlyde manter sob vigilância tudo aquilo que é gay, existe sob a condição
regulamentar de que quem é gaytem de pertencer à upper middle class.
Mas as marcas exteriores que permitem a distinção, condição básica para poder
haver mixité, não se limitam ao facto de se habitar num condominium,
frequentarem-se os bares da moda ou os restaurantes de cozinha de fusão. E,
aqui, Sylvie Tissot introduz um elemento de análise original e não menos
pertinente: o cão, animal doméstico que, como observa a autora, não pode ser de
uma qualquer raça e não pode ser, de certeza, da raça dos cães que estão
associados às Cités, geralmente violentos. A hexisdo cão é também um modo de
distinção do dono: na altura do passeio pelo parque exclusivamente preparado
para este fim, os donos comentam os comportamentos dos cães uns dos outros,
avaliando assim a educação do cão, que deve ser fonte de investimento por parte
do dono. E, a partir deste apêndice animal distintivo constrói-se toda uma
economia de serviços e comércio que permite manter o cão na sua melhor
vitalidade, o que se repercutirá' na imagem que os outros terão do dono.
Deste trabalho podem-se retirar alguns dos possíveis mecanismos de gestão e de
construção da ideia' de mixité sociale: controlo social e investimento
simbólico, distinção e friendliness. Uma verdadeira ethos, obrigatória a todos
aqueles que querem partilhar a experiência de viver no South End; saber viver
na mistura sem se misturar: a gestão da diversidade não se reduz ao controlo
de habitantes indesejáveis'; ela tem como objetivo fazer com que os novos
habitantes aceitem a presença de outros' (p. 135). E isto requer uma
aprendizagem, que só podemos entender enquanto processo de socialização que tem
como objetivo último criar des bons voisins . Pertencer a uma associação,
participar num baile, num convívio no parque, numa foundraising, tudo rituais
que mais não são do que atos de instituição(Bourdieu, 1982), que têm como
objetivo, mais do que marcar a diferença entre aqueles que moram no SoWa (zona
artística, alvo de uma ampla gentrificação, dando lugar a galerias, comércio e
algumas habitações) e aqueles que moram na zona do Union Park, marcar a
diferença entre aqueles que não podem viver no SE daqueles que lá vivem.
Um texto a explorar detalhadamente, porque em cada problemática que levanta se
encontram argumentos para denunciar a inércia incorporada pelas estruturas
sociais, que não são mais do que estruturas arbitrárias de representação do
mundo social, e que são cuidadosamente (re)produzidas pelos grupos socialmente
dominantes e autorizadas a existir pelos grupos socialmente dominados, que se
apresentam sobre a forma de uma ethosprogressiste', quer dizer, liberal no
sentido social. Mas, se, tal como fez S. Tissot em Des bons voins, se
submeterem à análise científica estas estruturas, que sustentam a ideia' de
mixité sociale, facilmente se rompe com a sua aparência e traz-se à luz formas
altamente dissimuladas de sexismo, de racismo, de conservadorismo em sentido
político, de neo-liberalismo em sentido económico, que vão prevalecendo sob a
forma de folclorização da miséria (p. 217). E porque não é possível uma
anulação radical da conflitualidade de pontos de vista entre os investigadores
e a sua população, Sylvie Tissot, logo no capítulo I, faz o balanço de como não
são eticamente lineares as relações sociais que ocorrem no curso da
investigação.