Condomínios habitacionais fechados: (im)precisões conceptuais. Apontamentos
para um debate sobre urbanidade e autonomia, segregação e qualidade de vida
Introdução
A noção de condomínio habitacional fechado (CHF) carece de contornos
consensuais. Tal como a própria origem destes empreendimentos, esses contornos
constituem motivo de debate entre os investigadores que se dedicam ao estudo do
surgimento e expansão dos CHF. Este último fenómeno assume, de resto, uma
visibilidade marcadamente conflitual. Tanto na esfera pública mais alargada,
como no debate académico, a sua visibilidade é alimentada por conceções que
sobre o mesmo projetam, sobretudo no que respeita aos seus impactes, um
conjunto vasto de perigos e de potencialidades (Martins, 2009: 117).
Sendo certo que CHF corresponde, sobretudo, a uma situação de factoe não de
jure(Raposo, 2002: 57; Low, 2003: 12), o debate é pontuado por invocações e
analogias frequentemente estabelecidas entre CHF e outras formas e paisagens,
não necessariamente associadas a objetos arquitetónicos vocacionados para uma
função habitacional. Uma dessas analogias transporta-nos a uma forma vinda do
imaginário medieval, idade, não raras vezes, apontada como berço do fenómeno: o
gueto. Mas os CHF são também nomeados como extremos socialmente opostos de
áreas de génese ilegal, castigadas pela pobreza e exclusão social. Favelas,
bairros-de-barracasou shanty townssão, não raras vezes, designadas como
condomínios de pobresou guetos involuntáriosde cidades duaise em acentuada
polarização social.
Este artigo persegue, como primeiro objetivo, notar as imprecisões históricas e
conceptuais de que se revestem algumas das analogias e comparações referidas.
Embora metaforicamente poderosas, defende-se, elas podem dificultar a análise
sobre o que está em jogo em cada uma das realidades que mais ou menos
retoricamente se tende a aproximar. O esclarecimento da ancoragem histórica e
conceptual a que nos atemos quando falamos de CHF impõe-se, nesse âmbito, como
ponto inicial no texto. As clarificações históricas e conceptuais articulam-se,
depois, com a apresentação de resultados de investigação realizada na Área
Metropolitana de Lisboa (AML) (2001-2007) sobre o surgimento e expansão dos
CHF. Um procedimento que apoia a concretização de um segundo objetivo, final: a
seleção de alguns pontos significativos e desafiantes para o debate sobre a
explicaçãoe a compreensãodas dinâmicas e impactes subjacentes ao fenómeno2.
1. Condomínios habitacionais fechados. Ancoragens históricas incertas,
reedições modernas
A clausuraformal não é uma originalidade ou traço exclusivo dos CHF. Por aí
parece passar, todavia, a propósito das suas origens longínquas, o paralelo
estabelecido entre estes empreendimentos e a cidade medieval. Esta última
parece distante das remotas procedências históricas dos CHF, inclusivamente
estando ausente no marketingdedicado à sua promoção; a heterogeneidade social
inscrita na configuração interna do espaço e quotidiano nesses aglomerados
seria, ainda, um traço que social e simbolicamente, essencialmente, os afasta
dos empreendimentos presentemente em exame (Raposo, 2002). Também o usufruto de
amenidades não constitui uma originalidade ou especificidade dos CHF.
O princípio que permite situar os antecedentes dos mesmos residirá, sim,
conforme proposto por Maria Rita Raposo, na especificidade da conjugação,
nestes empreendimentos, das dimensões de clausura(impermeabilidade física dos
perímetros e dispositivos/práticas de controlo da acessibilidade/circulação) e
usufruto de amenidades(equipamentos e/ou serviços de uso coletivo) com a
propriedade privada colectiva ou comum (e/ou usufruto) de espaços exteriores
associados à função residencial ( ) indissociável da propriedade privada e
individualizada de fracções ou unidades de habitação autónomas (2002: 55, 59-
60).
Observando tal princípio, o surgimento dos CHF parece corresponder à reedição
de um fenómeno cujos antecedentes reportam às praças residenciais britânicas e,
pouco mais tarde, ao subúrbio romântico planeado anglo-americano (idem: 159-
219). Paisagens indissociáveis do quadro de profundas transformações que, entre
meados do século XVIII e finais do XIX, ditariam o derrube jurídico-
institucional do Antigo Regime ' um tempo de transição, em que a renovação de
barreiras à acessibilidadee comunicabilidadesurge, no que aos modos de habitar
concerne, como via de reequilíbrio de posições e estatutos entre novose
velhosgrupos sociais, relacionados segundo uma nova lógica económica e
cultural, capitalista. Nesta perspetiva, o advento de um habitatburguês
antecede historicamente os atuais CHF, aglutinador dos anseios de segregação
fisicamente consagrada, isolamento doméstico do núcleo familiar, onde a
privatização de espaços abertos recria pequenas parcelas de natureza que
contrastam com o cheiro do enxofre das fábricas e tugúrios urbanos ( ) (assim
como de todas as instalações contaminadas pelas classes perigosas da
modernidade) (idem: 160-161).
Surgido na Califórnia (EUA) em finais da década de 60 do século XX, o atual
advento dos CHF regista, relativamente ao momento primevo, importantes
inovações, manifestando-se em diversos contextos e concretizando-se em maior
número de casos (Raposo, 2002: 225; Nunes, 2001: 31; Low, 2003: 15-16). A
produção deste produto imobiliárioreveste-se, além disso, da complexidade
decorrente do próprio desenvolvimento do sistema institucional de conceção,
construção, comercialização e consumo de espaço residencial.
2. Gueto e condomínio habitacional fechado. Uma analogia histórica e
conceptualmente equívoca
No quadro de transformações conformadoras de uma terceira revolução urbana
moderna, François Ascher destaca a emergência espacialmente inscrita de novas
formas de segregação social (2010 (2001): 72). Estas plasmavam-se, por um
lado, na constituição de guetos de pobres, lugares de reagrupamento por
diferentes mecanismos económicos, sociais e políticos (de) populações excluídas
do desenvolvimento económico (idem: 63). Por outro, na proliferação de guetos
de ricosou bairros privados rodeados por muros, onde a geração de
fragmentação social (e) enclausuramento espacial se presume imanente,
alimentada pela cedência à tentação de ruptura do pacto social e dos laços de
solidariedade locais e nacionais ( idem).
É recorrente, o uso do termo guetopara aludir ao que se considera ser um CHF.
Mas a mesma expressão é convocada para nomear o que alguns apontam como o
reflexo invertidodos CHF. Consubstanciado nas favelas, shanty-townsou bairros-
de-barracas, esses são lugares a que Zygmunt Bauman chama guetos
involuntáriosou forçados, para onde foram empurrados os desclassificados, os
refractários e os imigrantes recentes (2006 (2005): 36, 81).
Antes notado por Loïc Wacquant a propósito do debate sobre os conjuntos
habitacionais degradados das periferias urbanas francesas, o uso mais ou menos
metafórico da palavra gueto para referenciar algumas destas paisagens alia a
confusão conceptual com amnésia histórica (2008 (2006): 10, 86). Tal equívoco
participa, ainda, numa desracializaçãodo conceito de gueto, ancestralmente
associado a um instrumento de dominação etnorracial dotado de uma forma
territorial específica, assente no confinamento espaciale enclausuramento
organizacionalcompulsórios de um grupo subordinado face a outro, subordinante
(idem: 61, 18, 12). Assim sucedera em Veneza, em 1516. Posteriormente difundido
noutros pontos da paisagem medieval europeia, sob o impulso de crescentes
sanções e limitações económicas, o dispositivo operatório de dominação material
e simbólica oferecia ao grupo dominado, contudo, uma espécie de escudo
protector (idem: 85). Nele, assistir-se-ia ao desenvolvimento e à densificação
de redes organizacionais alternativas vocacionadas para a manutenção possível
da sobrevivência física e cultural da categoria social e territorialmente
segregada.
O gueto é um instrumento institucional que se cumpre por meio de uma operação
prática de restrição coerciva, a qual dá corpo ao confinamento espacial e ao
encapsulamento organizacional de um grupo tido como pervertido e perversor
(Wacquant, 2008 (2006): 79). A escolha da palavra institucional reveste-se,
nesta definição, de um sentido preciso. Enquanto fenómeno relacional, o gueto
afigura-se como uma instituiçãono sentido durkheimianodo termo. Ele articula
elementos radicalmente associados a tal noção, tal como preconizada por
Durkheim, nomeadamente, o elevado grau de permanência de um facto social
(Javeau, 1998:113) e os princípios de pré-existência, exterioridade e de
(constrangimento) dos factos sociais relativamente ao indivíduo (Silva e
Pinto, 1999 (1986): 15). De facto, é também (ou precisamente) pela sua natureza
institucional, forjada na combinação entre a origem involuntária da segregação
e o paralelismo organizacional existente no seu cosmos social que o gueto
configura, para o grupo subordinado ' como poderosa máquina de identidade
colectiva ' uma armadilhadifícil de romper (Wacquant, 2008 (2006): 85-88).
Retoricamente poderosa, a imprecisão que fere a analogia estabelecida entre a
noção de gueto e a ideia de CHF ' e entre gueto e favelas, shanty townsou
bairros-de- barracas ' pode dificultar a análise do que está em jogo em cada um
desses fenómenos, em cada contexto específico. A este respeito, retenha-se três
notas importantes, avançadas por Wacquant (2008 (2006): 83-85).
* Primeiro, nem todos os guetos são pobres e nem todas as áreas pobres são
guetos. Alguma heterogeneidade interna em termos de condições objetivas de
vida seria uma realidade por vezes verificada em alguns guetos (sendo a
penúria a marca mais forte verificada nos mesmos). Por outro lado, a pobreza
marcante das áreas deserdadas, economicamente vulneráveis, não corresponde,
necessariamente, a um processo social de deliberada contenção étnica.
* Depois, se todos os guetos são segregados, nem todas as áreas segregadas são
guetos. Os CHF assumem-se, na perspetiva do autor, como ex. paradigmático
disso mesmo. Tais ilhas de privilégio3
configuram paisagens a que subjaz uma segregação reputada como inteiramente
voluntária e electiva e autonomamente manipulável pelo indivíduo que nelas
escolhe residir (Wacquant, 2008 (2006): 85). A autonomia na gestão da
porosidade e ambiguidade das fronteiras (Martins, 2009) é o aspeto sublinhado
por outros autores, quando notam o que fundamentalmente diferencia tipos de
guetos(Bauman, 2001: 36, 116; Raposo, 2002: 312). Bauman explicita, assim, o
que separa os guetos involuntários dos guetos voluntários (de que os CHF são,
a seu ver, perfeito ex.):
Para os que fazem parte do ghettovoluntário, os restantes
ghettossão lugares onde nunca porão os pés. Para os habitantes dos
ghettosinvoluntários, em contrapartida, o território a que estão
confinados (ao verem-se excluídos de todos os outros lugares) é um
espaço do qual se encontram proibidos de sair. ( ) (Os) verdadeiros
ghettos são locais de onde os seus insidersnão podem sair; o
propósito fundamental dos ghettos voluntários, pelo contrário, é
impedir a entrada de outros ' garantindo, no entanto, que os
insiders são livres para sair para onde, quando e como quiserem
Bauman, 2001: 36, 116).
* A terceira nota é, sobretudo, uma clarificação que, mais uma vez, visa
diferenciar o gueto de outras realidades. Algumas das áreas celebrizadas
pelos pioneiros da Escola de Chicago como bairros étnicoseram muito mais
diversas do que o que as designações dos investigadores deixariam antever.
Áreas como a Pequena Irlanda ou a Pequena Itália eram, na realidade, enclaves
poliétnicos, que não reuniam apenas uma minoria da população total daquelas
origens nacionais (Wacquant, 2008 (2006): 18; Hall, 1993 (1988): 372). O
mosaicode mundos sociais descrito por Robert Park (2005 (1936): 69) assentava
na constituição de agregações sobretudo alimentadas pela afinidade cultural
e concentração socioprofissional ' e não pela restrição coerciva, radical e
etnorracial. São diferentes, os fundamentos que sustentam a homogeneidade
social do gueto e dessas áreas. Num caso, etnia; noutro caso, classe. Em
muitos desses bairros a segregação era parcial e porosa (Wacquant, 2008
(2006): 87). Em contraste com a imutável exclusividade racial e com a
alteridade institucional do gueto negro, o sonho americano tornado possível
para os habitantes dessas outras áreas, em muito ganhava corpo no/por meio de
um conjunto de organizações voltadas para fora, que facilitavam a adaptação
ao novo ambiente da metrópole norte-americana (idem: 87-88). Assim, as
analogias que o gueto admite reportam, como tal, a outro tipo de
instituições de confinamento forçado de categorias despossuídas e
estigmatizadas, como reservas indígenas, campos de refugiados e prisões ' e
não a mitos contemporâneoscomo o das cité- gueto, em França ( idem: 13, 19,
86).
3. Gueto dos ricos, uma questão de metodologia?
Clarividente na desmontagem da analogia estabelecida entre gueto e outras
paisagens, Wacquant manifesta, no que aos CHF concerne, a impressão sobre a sua
homogeneidade social interna. Em linha com a sólida proposta de Teresa Caldeira
(2000: 259), aceitando que os CHF são a versão residencial da noção mais ampla
de enclaves fortificados4, o autor descreve-os como uniformes em termos de
riqueza, renda, profissão e mesmo, nalguns casos, na pertença étnica dos
residentes (Wacquant, 2008 (2006): 85).
É uma impressão partilhada por Bauman, para quem o contraste entre a
homogeneidade interna no gueto voluntário e a heterogeneidade dos que
permanecem fora dele é central na sua própria definição. Este autor ilustra a
expansão dos CHF em cidades globaisrecorrendo à imagem de (vedações que
separam) o ghettovoluntário dos ricos e dos poderosos dos inumeráveis
ghettosforçados em que os deserdados vivem (2001: 116, 36).
Semelhante crença pressente-se em fontes várias. Por ex., na preocupação da
Organização das Nações Unidas, inscrita no relatório State of the World's
Cities 2006/07 (UN-Habitat), ante a emergência de uma arquitectura do medo,
na qual os ricos (se refugiam) em enclaves residenciais fortificados ou
comunidades cerradas, atentatórias do crescimento urbano sustentável (El País,
16.06.2006).
Quem vive, pois, nos CHF? Admite-se que o valor imobiliário dos fogos e a sua
localização são indicações fulcrais na imaginação sobre tal população. Que
condomínio fechado (ou privado) é uma marca destinada a favorecer o
posicionamento de um produto imobiliárioparece também indesmentível. Em
experiências pessoais de pesquisa levadas a cabo na AML (Martins, Patrícia,
Pereira e Santos, 2002; Martins, 2006), quem tem possibilidades, os ricosou
franjas minoritáriasda população foram as expressões imediatamente mobilizadas
na generalidade dos discursos de agentes e atores interpelados a este
propósito5.
Contudo, e reportando-nos a tais experiências de pesquisa, a suposta
homogeneidade social do universo dos que residem em CHF fragiliza-se por
classificações que, insinuadas ou peremptoriamente asseveradas, aconselham a
diferenciação entre fontes e recursos de prestígio social (dinheiro
versuscultura), e percursos e modos de acesso a tais fontes e recursos (novos
ricos versusricos). A classificação dos residentes expõe-se, então, em toda a
sua complexidade, nela ressoando uma complexa relação entre capitais,
posicionamentos sociaise um jogo de distinção social(Bourdieu, 1979: 117-118)6.
Na realidade concreta dos estilos de vidae na produção quotidiana das
práticas (Pereira, 2005: 43), o CHF afigura-se como o veículo que permite a
aparência da homogeneidade de estatutos entre residentes que experimentam
fortunas de primeira geração (novos ricos, gente com dinheiro mas sem cultura),
ou que encontram na divisão de custos no acesso a equipamentos e espaços
coletivos, apanágio dos CHF, a possibilidade de preservar práticas e estatutos
tidos como socialmente prestigiantes. Desta forma, sugere-se, optar por um CHF
pode sinalizar trajetórias de mobilidade social de sentidos opostos.
Consonante com a diversificação do produto imobiliário CHF, a distribuição da
heterogeneidade social dos residentes participa também na classificação dos
empreendimentos entre si. Porque o universo dos CHF é arquitetónica, social e
também simbolicamente heterogéneo, há uma escala de apreciação segundo a qual o
estatuto do CHF não se reduz, única e primordialmente, ao preço dos fogos,
evidente critério de segmentação do produto imobiliário. Assim, quanto maior o
número de habitantes, mais denso, tipologicamente mais diverso e mais próximo
(fisicamente mais acessível, por meio de transportes públicos), menos exclusivo
é tendencialmente considerado um CHF (Martins, 2006; Martins, 2009). Não deixa
de ser curioso verificar que, sendo a dimensão, a densidade e a heterogeneidade
social, elementos associados a alguns dos clássicos tipos-ideais de cidade '
nomeadamente, àquele preconizado por Louis Wirth (2001 (1938)) ' os CHF
considerados mais prestigiados são os que mais dele parecem afastar-se
(Martins, 2009: 122).
A verosimilhança da homogeneidade interna, entendida como característica
própria dos CHF, podia, contudo, ser apenas um problema de metodologia de
observação/análise. Uma questão de confronto entre uma lógica metodológica
extensiva, vocacionada para a deteção de padrões, regularidades, categorização
de grandes grupos ' e uma abordagem de pendor intensivo, mais apta a
problematizar o quotidiano e a descodificar a lógica dos atores. Embora
absolutamente complementares, são perspetivas diferentes.
A questão parece extravasar, contudo, o âmbito metodológico. A crença na
homogeneidade interna da população residente em CHF, manifesta em expressões
como gueto dos ricos, tende a andar de par em par com um discurso onde são
marcantes as ideias da cidade globale da polarização social.
4. Condomínios habitacionais fechados ' um fenómeno global, da cidade dual?
Como notado por Peter Marcuse, a ideia da cidade dividida não é certamente
nova (apudHamnett, 2001: 167). A distribuição de concentrações de ricos e
pobres (Hamnett, 2001: 10) e a convivência entre indivíduos experienciando
desiguais condições objetivas de vida são, de resto, temas intensamente
refletidos em múltiplas perspetivas teóricas e políticas de ação e pensamento.
São centrais no próprio desenvolvimento das ciências sociais desde as
pesquisas precursoras de Engels e Le Play (Freitas, 2001: 19), focadas nas
condições de vida da classe operária em cidades que passavam, no século XIX,
por intensos processos de industrialização.
Em sentido lato, a polarizaçãoé um processo em que uma distribuição se está
tornando crescentemente bimodal, cconcentrando-se as observações nos seus
pólos extremos (Hamnett, 2001: 165). E polarização social é, de facto, um tema
que emerge por relação a uma preocupação crescente com o chamado meio em
desaparecimento (the so-called disappearing middle) (idem: 165, 169). Sucede
que, na opinião de Chris Hamnett, que optamos por transcrever no original, o
termo polarizaçãosuscita alguma ambiguidade teórica:
We need to specify whether we are speaking of employment, occupation
or income, and whether (it) is relative or absolute. ( ) (Because)
polarization may be occurring in certain respects but not in others,
and the causes may be quite different (Hamnett, 2001: 169).
Para Saskia Sassen, a tese da crescente polarização social reporta sobretudo às
transformações ocorrentes na estrutura do emprego, intrinsecamente relacionada
com a ascensão do capitalismo financeiro em detrimento da produção industrial.
Tal polarização, é descrita por Hamnett como geradora de novos alinhamentos de
classe (a new class alignment) que, sendo particularmente marcantes nas
designadas cidades globais, decorreriam do aumento do número (ou proporção) de
highly skilled and low- skilled (workers), em contraste com o decréscimo do
número (ou proporção) dos middle groups (2001: 165, 170).
Para Hamnett, contudo, importa recusar a sinonímia entre polarização e
desigualdade (inequality), não apenas porque a desigualdade pode também
manifestar- se sob várias formas e decorrer de várias fontes, mas porque parece
igualmente possível conceber a existência de maior desigualdade sem
necessariamente se registar uma maior polarização ocupacional (idem: 169).
Considera ainda questionável que a polarização ocupacional seja característica
de todas as cidades globais (idem: 170), sublinhando que, também pelas
especificidades locais de cada contexto de análise (prevalência do Estado-
Providência, por ex.), polarização ocupacional e polarização de rendimentos
auferidos podem não coexistir. Em alguns contextos, assistir-se-á mesmo à
combinação entre uma despolarização ocupacional, e uma polarização de
rendimentos auferidos, situação que não parece totalmente estranha à realidade
portuguesa.
Mito ou poderosa metáfora retórica ' talvez mais adequada à crítica social do
que teoria social, conforme sugerido por Mollenkopf e Castells ( apudHamnett,
2001) ' a tese da cidade dual, polarizada, confronta-se com uma realidade mais
complexa:
(Peter) Marcuse argues that although the patterns have a spatial
dimension, and their spatial characteristics influence their
substance, they are not rigid spatial patterns in the old sense in
which Burgess and Park tried to describe city structure'. ( ) Nor, in
my view should polarization be used to refer to increasing
residential segregation by class, race, gender, etc., though this may
be certainly related to growing social polarization at the city
level. ( ) we already have a perfectly good term for this
segregation', and we would then need to differentiate between social
and spatial polarization which need not to take place
simultaneously. (Hamnett, 2001: 166-167, 169).
Embora a questão da polarização não constitua, em Portugal, o principal mote
nas contendas geradas a propósito da implantação concreta de CHF, estes últimos
são, não raras vezes, apresentados como pólos socialmente opostos aos
designados bairros sociais. Este paralelo é contestável, olhando quer às
géneses de uns e de outros espaços, quer à subjacente consideração de que se
trata de pólos extremos da desigualdade social. Os mais ricos não vivem
necessariamente em CHF, assim como os mais pobres, não vivem (sempre) nos
designados bairros sociais(Martins, 2006; Martins, 2009).
A ideia de condomínios de pobrestende a confundir o que é um produto
imobiliário (CHF) com processos frequentemente informais, feridos de
ilegalidade, nos quais se geram favelas, bairros de barracas, shanty-towns. A
natureza institucional de todos estes fenómenos é importante para perceber o
que neles está em causa e para discutir em que termospodem (ou não) ser
comparados. Mesmo que, no final, possa concluir-se, tomando à letra a analogia,
que o que leva determinada pessoa a residir num CHF é o mesmo que leva outra a
apoiar e a participar num movimento de defesa de levantamento de barreiras
físicas numa determinada área de residência degradada. Algo que merece
investigação mais aturada, em contextos diversos7.
A propalada natureza globaldo fenómeno CHF, seu surgimento e expansão,
articula, em todo o caso, três elementos: (1) a semelhança entre formas
arquitetónicas mapeáveis na totalidade dos continentes; (2) a crença na
sobreposição entre homogeneidade social dos residentes e homogeneidade do
próprio produto imobiliário; e (3) a semelhança das lógicas subjacentes à
emergência do fenómeno em contextos díspares em termos de crescimento económico
e desenvolvimento humano.
Porém, valerá a pena notar a opinião de Setha Low (2003: 16), para quem, em
diferentes locais, os CHF parecem servir diferentes propósitos e (expressar)
distintos significados culturais:
(Neles se) alojam trabalhadores expatriados na Arábia Saudita,
replicam os complexos datchasocialistas em Moscovo, providenciam/
proporcionam um estilo de vida seguro em face da extrema pobreza no
Sudeste Asiático, protegem os residentes na África do Sul, criam
enclaves exclusivos para as elites emergentes na Bulgária e na China,
e oferecem opções de segundas casas exclusivas (...) na Europa
Ocidental. (Low, 2003: 16).
Na investigação que é produzida sobre o fenómeno há fatores que são, em regra,
considerados eficientes para explicar a emergência dos CHF. Todavia, são
distintas as ponderações conferidas aos mesmos, quando a propósito de vários
casos se apuram aqueles considerados mais eficientes. O medo do crime domina o
discurso produzido a propósito dos CHF na América do Sul ou em países como a
África do Sul. Na Arábia Saudita ou no Líbano, a sensação de continuidade na
experiência do habitar e a manutenção de determinados estilos de vida tidos
como socialmente desviantes é destacada na relação entre quadros hipermóveis e
a primeira emergência de CHF. Neste último país, em que os CHF surgem num
contexto de guerra civil, a proteção da integridade física de pessoas e bens ou
o acesso ao abastecimento de água e eletricidade são fatores importantes na
estruturação dessa procura. Como adianta Maria Paula Nunes (2001: 56), mais
tarde, no Líbano, ganha terreno, junto das classes médias altas, entretanto
desenvolvidas com a recuperação económica do país ( ) alguma sedução por um
estilo de vida ocidental, que se pretende importar por ser considerado moderno
e (de) prestígio. Nestes casos, à procura, e sobretudo às motivações para
procurar CHF, é dada primazia explicativa.
Em contextos em recente transição de regime político, ganha terreno a
associação analiticamente estabelecida entre tal mudança, a conturbação
económica e a ascensão de novas elites sociais (e) dirigentes, que serão quem
primeiro adere aos CHF (Bartetzky e Schalenberg, 2009). Reforça-se, assim, o
nexo entre CHF e a reinvenção social das fronteiras entre grupos aproximados
pela natureza extensiva das crises económicas e pelo aprofundamento dos
processos democráticos (Caldeira, 2000).
No que respeita a Portugal, para a generalidade dos residentes entrevistados
nas experiências pessoais de pesquisa atrás referenciadas, viver num CHF não
foi uma opção deliberada (Duro, Martins, Patrício e Pereira, 2001; Martins,
Patrício, Pereira e Santos, 2002; Martins, 2006; Raposo, Cotta e Martins,
2012). À decisão de saída da casa anterior e à subsequente procura de casa, não
presidiu uma intenção prévia de residir num CHF. Resultados em linha com dados
produzidos sobre o caso Argentino (Elguezabal, 2009) ' resultados contrastantes
com dados sobre a situação no Brasil (Caldeira, 2000).
Curiosamente, também, naquelas pesquisas, o medo do crime é desvalorizado como
motivo mais eficiente para explicar, tanto a escolha de determinado
empreendimento, como o próprio desenvolvimento do fenómeno em Portugal.
Estes contrastes permitem pensar em que medida a propalada dimensão global do
fenómeno CHF advém sobretudo das dinâmicas de produção e oferta de produtos
imobiliários de vocação predominantemente residencial ' e menos das lógicas que
estruturam a procura pelos mesmos. Algo que só a troca de mais experiências
concretas, assentes em trabalho de terreno, pode ajudar a iluminar. Pensamos,
sobretudo, na necessidade de questionar a noção de segurança ' termo
aglutinador de diferentes sentidos associados às ideias de medo, privacidade e
controlo sobre a incerteza. Frequentemente, esses sentidos perdem visibilidade
própria em prol do acentuar do medo do crime. Porque neste termo, segurança,
tanto cabem receios fundados em múltiplos desconfortos, como interesses
estratégicos e modos de exercício de um ascendente que se ganha sobre a
vizinhança próxima, percebida como espaço que passa a poder influenciar-se mais
diretamente.
Notas para debate e conclusão
A reflexão sobre o percurso empírico e analítico referenciado permite destacar
quatro notas finais.
A propalada falta de qualidade da cidade atualmente existente. O surgimento e a
expansão dos CHF suscitam um debate particularmente aceso. Contudo, por entre
as discordâncias que separam confessos adeptos e assumidos oponentes aos CHF,
deteta-se interessantes compreensões mútuas. Sublinhe-se, nomeadamente, o
consenso sobre a razão considerada mais eficiente para compreender a decisão de
residir, na AML, nestes empreendimentos: a fuga à falta de qualidade da cidade
atualmente existente. A qual se deve sobretudo, segundo os entrevistados
(Martins, 2006; Raposo, Cotta e Martins, 2012), ao mau desempenho dos poderes
públicos na gestão e na manutenção da coisa e do espaço públicos.Ausência da
centralidade do tema da casa-fogo. A pesquisa empírica revela, pela análise dos
discursos dos agentes e atores entrevistados, este curioso facto. Tal (quase)
ausência verifica-se na apreciação das qualidades que distinguem os CHF da
habitação dita corrente (Martins, 2006). E manifesta-se também, no caso dos
residentes em CHF entrevistados, tanto nas motivações subjacentes a tal
decisão, como nos fatores que constroem positivamente a sua atual satisfação
residencial. Globalmente, o que sobressai é a importância da vizinhança próxima
na expressão das qualidades materiais e simbólicas que, segundo residentes e
não residentes, distinguem positivamente os CHF da habitação convencional. O
ascendente da vizinhança próxima. Contemporaneamente, a persistência de
debilidades estruturais coexiste, em Portugal, com um quadro inquestionável de
veloz mudança social. Num contexto em que a pobreza, a privação e a
precariedade são incontornáveis, a melhoria das condições de habitabilidade é
recorrentemente apontada, na esfera pública, como um dado consonante com a
leitura do copo meio cheio ' presumindo-se mitigados os défices quantitativos
(referentes ao acesso à habitação) e qualitativos (relativos ao gozo de
condições e equipamentos de conforto, no fogo habitacional). A casa foi, para
muitos, uma conquista alcançada com enorme esforço. A monitorização de
tendências de opinião demonstra que o sentido desta mudança é também
tendencialmente percebido como positivo entre a população8. A propalada falta
de qualidade da cidade atualmente existente ' que no discurso dos
entrevistados, residentes e não residentes em CHF torna compreensível a
decisão, na AML, de morar num CHF (Martins, 2006; Martins, 2009) ' assenta em
frustrações e reivindicações, em grande medida, socialmente construídas sob uma
memória mistificadora da cidade e do espaço público de antes. Contudo, a tais
elencos subjaz uma exigência de qualidade de vida indissociável de desejos
expressos quanto às qualidades do espaço próximo, fora de casa9. Estarão os
anseios focados na vizinhança próxima a ganhar um ascendente sobre a casa no
balanço que estrutura a perceção da qualidade habitacional (Martins, 2009: 125-
126)? Atendendo ao percurso nacional, em que medida tal reflete o trânsito
entre aspirações e necessidades, as quais passam a ser discutidas na esfera dos
direitos, reivindicados com base em recursos de poder mais partilhados?
Adensa-se o sentido da interrogação quando se presumem desatualizados alguns
dos pressupostos socioantropológicos subjacentes à unidade de vizinhança como
categoria operatória no planeamento (Nunes, 2007: 118-119). De facto, os
resultados da pesquisa (Martins, 2006; Martins, 2009: 125-126) inspiram um
aparente paradoxo. A autonomização de práticas relativamente ao contexto
residencial (a perda de centralidade da vizinhança próxima, neste sentido),
convive com a adesão a elencos de carências percebidas e desejos ideais
(necessidades e aspirações, neste sentido) que conferem às características da
mesma vizinhança próxima ' precisamente ' um lugar central na valoração do
contexto residencial, sobre ela projetando necessidades e imagens sobre o que
faz um habitat ideal, a qualidade de vida e a boa vizinhança. A hipótese da
secessão. Frequentemente, assiste-se à seguinte denúncia: os residentes em CHF
são indivíduos em défice dos sentidos de cidadania e urbanidade. Para Bauman, o
CHF é como um eremitério, materialmente situado na cidade, mas social e
espiritualmente fora dela (Bauman, 2006 (2005): 35). E adianta:
Por isolamento, entende-se a separação das pessoas consideradas
inferiores do ponto de vista social. ( ) Os residentes dos
condomínios isolam-se, por meio da sua vedação, do caos e da dureza
que tornam a vida urbana desconcertante, desagradável e vagamente
ameaçadora, e ficam reclusos num oásis de calma e segurança ( )
(abandonando) os outros às mesmas ruas sórdidas e miseráveis de que
fugiram sem olhar a despesas (idem: 36).
Sendo certo que a alteridade organizacional não constitui (por enquanto) uma
marca da generalidade dos CHF, importa explorar esta imagem de cidade e testar
a hipótese que supõe como essencialmente subjacente à decisão de residir num
CHF, os referidos défices de cidadania e urbanidade. Em que aspetos outros se
concretiza tal isolamento? Como observá-lo enquanto atitude e prática de
distanciamento, sendo que tal averiguação convida ao estabelecimento de grupos
de controlo, representativos da população que não reside (porque não quer ou
não pode) em CHF?
Conclusão. A análise das razões subjacentes à emergência e expansão dos CHF não
pode ignorar outras lógicas que, além daquelas sedeadas na procura, sustentam a
dinâmica mais vasta do consumo de espaço residencial. Tais lógicas reportam à
totalidade de um campo estruturado também pelos interesses e estratégias afetas
à produção e à oferta de espaço residencial, bem como à mútua adaptação dos
dois mercados. Este é um vetor em que a ação do Estado é particularmente
chamada à colação. Importa refletir sobre os princípios de atuação que norteiam
a intervenção dos poderes públicos. Que dinâmicas de recomposição dos tecidos
social e edificado escolhem privilegiar? Qual o seu real poder de negociação
com os privados na organização do espaço (Távora, 1999: 14), entre a incerteza
da mudança e a aparente certeza a mais do Planeamento (Secchi, s.d.: 276) ?
Os resultados das investigações realizadas apelam, também, a uma análise mais
fina dos padrões de segregação sócioespacial, que vá além de uma análise
exclusivamente baseada numa interpretação mecanicista das dinâmicas de
distinção social. Descrever e explicar a segregação é importante. Mas
compreender as dinâmicas que a estruturam gera oportunidades de encontrar,
tanto o que separa grupos sociais, como os elencos de anseios, desejos,
exigências e recusas que podem, eventualmente, aproximá-los. Perante a
multiplicação das procuras legítimas (Bourdin, 2011 (2010):110), o
favorecimento da coesão social depende (também) da arte da negociação de novos
compromissos (Ascher, 2010) que operem novas formas de regulação entre esses
elencos, interesses coletivos e o julgamento político sobre o bem-comum.
Notas
1 Socióloga. Bolseira de Investigação/ FCT ' Fundação para a Ciência e a
Tecnologia. Doutoranda em Arquitetura ' Dinâmicas e Formas Urbanas na FAUP '
Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (Porto, Portugal).
Investigadora do CEAU ' Centro de Estudos em Arquitetura e Urbanismo da FAUP
(Porto, Portugal) ' e do DINÂMIA'CET-IUL ' Centro de Estudos sobre a Mudança
Socioeconómica e o Território do ISCTE-IUL (Lisboa, Portugal). Endereço de
correspondência: Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo - Faculdade de
Arquitectura da Universidade do Porto, Rua do Gólgota, 215, 4150-755 Porto |
Portugal. E-mail: martamartins78@gmail.com
2 Salvaguardando-se a total responsabilidade da autora pelo conteúdo final do
mesmo, este artigo beneficiou da leitura atenta de João Pedro Silva Nunes, a
quem muito agradeço os preciosos comentários, críticas e sugestões. Aos
refereesda Revista Sociologia, agradeço a cuidadosa leitura do texto, a qual
permitiu nele introduzir aperfeiçoamentos úteis. A reflexão aqui inscrita nasce
de um conjunto de trabalhos realizados, entre 2001 e 2007, sobre o surgimento e
a expansão dos CHF em Portugal. Entre eles, uma investigação desenvolvida entre
2005 e 2006 deu corpo a uma dissertação de licenciatura em Sociologia pelo
ISCTE, realizada sob a atenta e paciente orientação de Marluci Menezes (NESO-
LNEC) e Maria Isabel Duarte (ISCTE). A sua concretização contou com o
fundamental apoio do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, instituição que,
através do seu Núcleo de Ecologia Social, proporcionou um estágio dedicado ao
desenvolvimento do projeto. Parte do restante percurso foi partilhado com
outros colegas, em momentos de aprendizagem e reflexão inesquecíveis. Tiago
Pereira, Sandra Patrício, Inês Duro, Joana Santos, Maria Rita Raposo, Diogo
Cotta, a todos agradeço.
3Sublinha, os CHF gozam de uma aura positiva de distinção e não (de) um
sentimento de infâmia ou temor; eles servem para aumentar e não diminuir as
chances de vida e para proteger o modo de viver de seus residentes (Wacquant,
2008 (2006): 85).
4 Para Caldeira (2000: 258-259), os enclaves fortificados concentram, em
combinações variáveis, residência, lazer, trabalho e consumo; cultivam a
negação e rutura com o resto da cidade, celebrando, pelo recurso a técnicas
(in)formais de controlo/monitorização personalizada e privada do espaço, o
valor do que é restrito e partilhado entre pares, desvalorizando o que é
público e aberto à heterogeneidade do meio urbano. ( ) tendem a ser ambientes
socialmente homogéneos. Aqueles que escolhem habitar esses espaços valorizam
viver entre pessoas seletas (ou seja, do mesmo grupo social) e longe das
interações indesejadas, movimento, heterogeneidade, perigo e imprevisibilidade
das ruas.
5 Ao longo do texto, serão feitas referências aos trabalhos realizados pela
autora entre 2001 e 2007, ora individualmente ora integrando equipas de
trabalho. Neles, desenvolvemos e colaborámos na prossecução de um conjunto de
pesquisas dedicadas ao surgimento e à expansão dos CHF. A abordagem de
distintos objetos permitiu explorar temas associados, tanto à produção, como à
apropriação social destes modelos habitacionais ' sendo de destacar, também, a
exploração do seu papel enquanto participantes de novas coexistências,
observadas em contextos específicos. Os trabalhos referenciados compreendem a
aplicação de desenhos de pesquisa que articulam e combinam metodologias de
pendor intensivo e extensivo. Globalmente, falamos de um acervo de cerca de 45
eentrevistas a residentes em CHF (Duro, Martins, Patrício e Pereira, 2001;
Martins, Patrício, Pereira e Santos, 2002; Martins, 2006; Raposo, Cotta e
Martins, 2012), 2 inquéritos por questionário a residentes em CHF (Duro,
Martins, Patrício e Pereira, 2001; Martins, 2006) e entrevistas a agentes
associados à oferta e à mediação de espaço residencial, investigadores e
decisores políticos (Martins, Patrício, Pereira e Santos, 2002; Martins, 2006).
6 Tal complexidade encontra sentido no postulado segundo o qual, como defendido
por Bourdieu (1979:117-118), a classe social não é redutível a uma propriedade,
nem ao somatório de determinadas propriedades ' nem se define, também, por uma
cadeia de propriedades, todas ordenadas a partir de uma propriedade fundamental
( ) numa relação de causa efeito, de condicionante a condicionada, mas sim pela
estrutura das relações entre todas as propriedades (contextualmente)
pertinentes (sexo, idade, origem social ou étnica, por ex.), que confere a cada
uma delas e aos efeitos que exerce sobre as práticas, o seu próprio valor. A
desigualdade social é também, neste sentido, a diversidade lida à luz de como o
prestígio estrategicamente disputado e socialmente conferido a determinadas
propriedades incorporadas (disposições) ou objetivadas (bens económicos e
culturais) (idem: 127) se traduz, ao longo do tempo biográfico e coletivo, num
ascendente exercitável como poder.
7 É útil, também, distinguir entre CHF e co-housing, modalidade de apropriação
coletiva de espaços para fins residenciais emergente nos anos 60/70 do século
XX na Dinamarca. Os CHF diferenciam-se, desde logo, pela natureza impessoalda
reunião efetuada no acesso a estes últimos, produtos imobiliários.
8 Em 2004, 80% dos portugueses inquiridos pelo Eurobarómetro (declaravam)
sentir-se satisfeitos com as suas condições de habitação, ainda que essa
percentagem se distanciasse em 8 pontos percentuais da média dos 27 países
europeus (Pappámikail, Pereira e Marques, 2010: 116).
9A investigação produzida sobre a satisfação residencial vem demonstrando,
também, que a perceção do cenário residencial extravasa a realidade da casa,
tanto na sua configuração material, como simbólica (Freitas, 2001).