Panoramas umbrais da modernidade: autoidentidade e o dissensu matrimonial em
Anthony Giddens
No sentido de uma teoria social e de um diagnóstico de cultura, o conceito de
sociedade de risco designa um estágio da modernidade em que começam a tomar
corpo às ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial
(Beck, 1997: 17).
Anthony Giddens traz para o campo da teoria sociológica a produção e reprodução
da vida social ' eis aqui o seu escopo orientador, o seu grande tema. Assim, o
autor trabalha com a síntese entre ação e estrutura, liberdade e ordem e aceita
as responsabilidades que o projeto da interrelação entre micro e macro acarreta
no programa mais amplo de elaborar uma reorientação abrangente da agenda
teórica da Sociologia.
Giddens considera as capacidades transformativas, proteicas e multiformes dos
agentes sociais de reproduzir e transformar as suas próprias circunstâncias
históricas. Desse modo, na conceção do teórico, a ação social depende
unicamente da capacidade dos atores de fazer a diferença na produção de
resultados definidos, quer pretendam ou não que tais resultados ocorram.
Giddens (2002) sublinha que a reformulação das premissas básicas da análise
sociológica traz consigo a consequência inerente de repensar sobre a natureza
da modernidade.
Um dos traços distintivos da modernidade é a recorrente interrelação entre dois
extremos: o da intencionalidade e o da extensão (disposições pessoais, num
pólo, e influências globalizantes, em outro). O termo modernidade exprime os
modos de comportamento e as instituições sociais estabelecidas no continente
europeu após o feudalismo; porém, no século XX, tornaram-se globais em seus
impactos e consequências.
Giddens assinala que a modernidade constrói determinadas formas sociais
distintas, dentre as quais a que possui uma relevância capital é o Estado-
nação. Os Estados-nações são caracterizados, por vezes, na literatura sobre
relações internacionais, como atores numa escala geopolítica. Os Estados
modernos são sistemas reflexivamente controlados e se apresentam como um
exemplo maior do aspeto característico mais geral da modernidade: a ascensão e
o desenvolvimento da organização. Assim, o panorama social moderno tem certas
descontinuidades latentes com as instituições, modos de vida e culturas pré-
modernas. A descontinuidade mais pronunciada das instituições modernas ' e,
talvez, a mais óbvia ' é a inexistência da inércia e o seu extremo dinamismo. O
mundo moderno é um universo permeado por transcendências, movência e por um
ritmo de mudança social mais rápido que em qualquer sistema precedente, assim
como a profundidade e amplitude com que a modernidade afeta os cursos da ação e
práticas sociais têm maiores dimensões. Para Giddens, esse aspeto dinâmico da
vida coletiva moderna é explicado por três elementos principais, que estão
imbricados: a separação de tempo e espaço, os mecanismos de desencaixe das
instituições sociais e a reflexividade institucional.
Toda cultura possui algum tipo peculiar de marcador espacial padronizado que
exprime e designa uma consciência especial de lugar. No âmbito pré-moderno, o
espaço e o tempo relacionavam-se por meio da situacionalidade do lugar. No
entanto, a dinamicidade das instituições modernas efetiva-se no
distanciamento de tempo e espaço que envolve, sobretudo, a formulação de uma
dimensão vazia de tempo ' subjaz a esse agir como um acicate que também
separou o espaço do lugar. O esvaziamento de espaço e tempo na modernidade não
se assenta em um processo de desenvolvimento linear, mas parte de uma operação
dialética. Os aspetos umbrais do referido distanciamento entre tempo e espaço
é o advento de formas mais extensas do sistema social. Essa separação fornece o
próprio alicerce de sua recombinação das maneiras que coordenam a organização
social humana, sem essencialmente fazer referência às singularidades do lugar '
no que difere profundamente das eras pré- modernas. O mundo moderno é
caracterizado por um sistema de tempo universal, o que pressupõe a construção
de um passado padronizado e de um futuro universalmente aplicável. Assim,
as sociedades pré-modernas ou tradicionais estão encaixadas na noção de tempo e
espaço na história, porém a modernidade traz os mecanismos de desencaixe.
O desencaixe ou descolamento das atividades sociais dos contextos locais e
sua recombinação e rearticulação por meio de fragmentos indeterminados do
tempo- espaço é o ponto crucial da aceleração do distanciamento entre tempo e
espaço gerados pela modernidade. Giddens salienta que existem dois tipos de
mecanismos de desencaixe, são eles: as fichas simbólicas e os sistemas
especializados ' quando analisados em conjunto, Giddens refere-se a esses
mecanismos como sistemas abstratos. As fichas simbólicas são intercambiáveis
numa pluralidade de contextos específicos; são, antes de tudo, meios de troca
que têm um valor padrão ' o exemplo cabal é o dinheiro. Por sua vez, os
sistemas especializados colocam entre parênteses o espaço e o tempo,
sustentados pelos modos de conhecimento técnico que possuem validade
independente dos profissionais praticantes e dos pacientes e clientes que fazem
uso de tais conhecimentos. Esses sistemas permutam todos os poros da vida
social na era moderna e dependem necessariamente da confiança e do risco. A
confiança pressupõe uma qualidade de fé, um salto de compromisso; já a
cultura do risco caracteriza as instituições modernas. Nas condições modernas,
o futuro é continuamente trazido para o presente por meio da organização
reflexiva dos ambientes de conhecimento (Giddens, 2002: 11). Nesse sentido, a
aferição3 do risco exige a precisão e a quantificação de variáveis, mas o
próprio aferir é repleto de imponderáveis.
Em última instância, a terceira maior influência da modernidade é a
reflexividade. A reflexividade institucional é oriunda da utilização regular de
conhecimento a respeito das circunstâncias e contextos da vida social como
aspeto constitutivo de sua organização e transformação. A suscetibilidade de
grande parte dos aspetos da vida social e a informação que se têm sobre esses
aspetos não é circunstancial, mas, sobretudo, o acervo constitutivo das
instituições modernas.
Isto posto, os processos metamórficos subjacentes a autoidentidade e a
globalização são duas dimensões dialéticas situadas nas condições da alta
modernidade, ou seja, do local e do global. Dito de outra forma, as
transformações da esfera íntima das trajetórias singulares estão extremamente
vinculadas na construção e no estabelecimento de conexões sociais em escala
ampliada. Dessa maneira, a reflexividade não se resume aos ditames
institucionais, mas se estende ao núcleo do eu. Nos tecidos contextuais de um
arranjo pós-tradicional, o eu fundamenta-se num movimento reflexivo com
vistas aos quadros não-experienciados, isto é, em um projeto reflexivo. A
inflexão dos percursos individuais pressupõe uma correspondente organização
psíquica. Porém, nos âmbitos da modernidade, o eu alterado deve ser
constituído e medrado em um processo amplo de encadear mudanças pessoais e
sociais. Portanto, a reflexividade do elemento subjetivo não se limita a
substâncias produzidas nas crises da vida, mas transcende-as. Trata-se de um
traço característico da ordem pós- tradicional, a (re)ordenação psíquica e os
seus correlatos sociais (Giddens, 2002).
Ademais, o conceito de ação para o autor tem um caráter transformativo, assim,
as estruturas sociais não são empecilhos para o processo das ações, haja vista
que fornecem os meios pelos quais os atores sociais agem e são implicados na
ação. São presentes na obra de Giddens (2002) os impactos da alta modernidade
no campo social e individual, nas influências e nas consequências para a
compreensão da autoidentidade. Na ordem pós-tradicional moderna ou reflexiva em
oposição ao pano de fundo de novas experiências mediadas, Giddens analisa a
autoidentidade como um esquema reflexivamente organizado. Segundo o sociólogo
britânico (Giddens, 2002), na vida social moderna, o que se entende por estilo,
forma ou maneira de viver assume um sentido singular, único. Imersos em uma
miscelânea de opções de estilos de vida, em uma dialética do local e global, os
indivíduos, na contramão dos preceitos tradicionais, deparam-se, cada vez mais,
com uma diversidade de itinerários identitários, fundamentais na busca da
autorrealização. Essas potencialidades individuais são definidas como decisões
tomadas e cursos de ação seguidos em condições de severa limitação material
(...) (Giddens, 2002: 13). Em outras palavras, os indivíduos dentro de
determinadas circunstâncias materiais optam por diferentes estilos de vida,
maneiras de viver, consciente ou inconscientemente.
A alta modernidade oferece ao individuo não uma identidade per se, mas mutável,
efêmera e alterável, sobretudo, variadas identidades ' de gênero, de idade ',
descortinando para o sujeito um mundo de infinitas possibilidades. É relevante
ressaltar o caráter contingente da ordem pós-tradicional de produzir nuances,
exclusão e marginalização nas mais diversas instituições sociais, criando
mecanismos não de deliberações e emancipações, mas sim de supressões no âmbito
social e individual.
Assim, na compreensão da feição endêmica da autoidentidade, Giddens enfatiza um
estudo sociológico denominado Segundas Chances, de Judith Wallerstein e
Sandra Blakeslee. Uma pesquisa desenvolvida sobre o divórcio e o novo
matrimônio e seus efeitos na dimensão social e individual; e das identidades
dos atores sociais envolvidos. O objeto de análise das autoras é a separação
conjugal, que, ao fulcro, têm dois gumes, corroborando na formulação de
parâmetros de perigo e risco ao bem-estar. Por outro lado, permite uma miríade
de oportunidades futuras aos cônjuges.
A rutura de um matrimônio, desse modo, acarreta mudanças substanciais na vida
desses atores, horizontes beatíficos e atribulações; possibilidades e
distúrbios psicológicos, ou seja, reverberações positivas e negativas aos
consortes, denominado pelas autoras como um período de luto. Nos matrimônios
que resultaram em divórcio observaram-se a permanência de sentimentos bons e
ruins advindos das experiências adquiridas aos longos dos anos com o(a)
parceiro(a). O que difere, por sua vez, é a forma, o conteúdo e a duração do
intervalo temporal de luto, sendo díspare de pessoa para pessoa, mas
fundamental para erigir a composição da autoidentidade do agente social. Após a
superação das idiossincrasias fomentadas pela separação conjugal e o
enfrentamento de problemas subjetivados, há a reconstrução social dos
indivíduos na tessitura da vida cotidiana. Sentimentos como ansiedade e
insegurança, que transcendem o dissensumatrimonial, são potenciados por uma
época de riscos e escolhas eminentemente individualizadas. É evidente que a
configuração das perceções estabelecidas na modernidade tardia sofre
modificações em termos de arranjo e conteúdo.
Nesse sentido, a segunda chance possibilita a reconstrução de uma
autoidentidade, permeada pelas condições sociais que a alta modernidade impõe
aos indivíduos. Dessarte, segundo Giddens, a autoidentidade é o produto das
trajetórias distintas de situações institucionais da modernidade e toda sua
duração se costuma chamar de ciclo da vida, termo que se aplica com maior
precisão a conjunturas não- modernas. Portanto, a não-inércia do panorama
social moderno reflete-se na sanha dos atores em revisar suas biografias,
lançar novas tintas interpretativas nas minúcias do status quode descolamento
do tempo e do espaço.
Ad postremum , o préstimo capital de Giddens reside na perceção teórica da
natureza ambivalente de uma ordem pós-tradicional. O rompimento com as
disposições pré-modernas e seus respetivos fundamentos, simultaneamente,
impulsionam o florescimento de potencialidades singulares e singularizantes, em
outros termos, certa liberdade individual. Por outro lado, esvaece a segurança,
a aura de estabilidade das coisas. Assim, a antevisão de Giddens adentra numa
trajetória que não concebe o dado subjetivo como pernicioso a teoria social.
Pelo contrário, incorpora os aspetos internos em uma lógica contraditória '
entre autonomia pessoal e a sociedade de risco.
Notas
1Graduando em Ciencias Sociais. Instituto de Ciencias Sociais - Universidade
Federal de Uberlandia (UberHlndia, Brasil). Endere.;:o de correspondencia:
Instituto de Ciencias Sociais I Universidade Federal de Uberlandia I Campus
Santa Monica- Bloco H, pavimento superior I Av. Joao Naves de Avila, 2121,
Bairro Santa Monica I Uberlandia- Minas Gerais I CEP: 38400-902 I Brasil. E-
mail: antonio@soc.ufu.br
2Graduanda em Ciencias Sociais. Instituto de Ciencias Sociais - Universidade
Federal de Uberlandia (Uberlandia, Brasil). E-mail:
danielasantos.alves@hotmail.com
3As análises sobre a aferição dos riscos na sociedade moderna apresentam
delineamentos expressivos na obra Risk Society: towards a new modernity, de
Ulrich Beck (1993), além da própria conceituação de Giddens.