Trabalho e processos de marginalização social no século XXI: aproximações
teóricas e dados estatísticos
Introdução
As relações entre trabalho, pobreza e marginalidade social são uma questão
antiga. Uma breve revisão à literatura da especialidade (Castel, 1998; Bauman,
2005) permite verificar, por exemplo, que a pobreza constituiu um dos
principais argumentos para vencer as muitas resistências à implementação e à
consolidação do trabalho assalariado e da sua ética nas sociedades modernas
ocidentais. Entre outras promessas, dele se disse que seria capaz de criar a
riqueza das nações e livrar os indivíduos e os grupos da pobreza. Pelo menos
desde essa altura foi tido como o melhor meio de evitar todos os males sociais,
não apenas a privação económica, mas também a criminalidade, a
toxicodependência e outros, até porque tem sido concebido como uma estratégia
de normalização e como uma ética da disciplina. Contudo, decorridos mais de
dois séculos em que adquiriu o estatuto político-normativo de principal
integrador, de fator estruturante e princípio organizador da vida individual e
coletiva, o trabalho parece estar hoje sob o signo da incerteza e da desordem e
constituir, talvez mais do que nunca, um poderoso mecanismo gerador de
desigualdades e de marginalização social.
Neste texto analisaremos muito sumariamente os argumentos de natureza teórica,
ilustrados com alguns dados estatísticos, que anunciam a crise e até a perda de
centralidade sociocultural do trabalho e denunciam a sua importância nos
processos de marginalização social para um número crescente de pessoas, o que
leva a associá-lo frequentemente à emergência de uma nova pobreza. Para isso,
iniciaremos com uma breve passagem pela sua história recente nas sociedades de
capitalismo avançado e as metamorfoses que registou, sobretudo nos últimos
quarenta anos, e as suas manifestações objetivas e também os seus possíveis
impactos subjetivos, ou seja a importância e o significado que assume no
trajeto existencial dos sujeitos. Procuraremos depois discutir as implicações
que as mudanças registadas no mercado de trabalho podem ter para a compreensão
da questão da pobreza e da marginalidade social nas sociedades ocidentais
contemporâneas.
1. O trabalho e as suas mutações nas sociedades de capitalismo avançado. Um
mercado de trabalho crescentemente desigual e seletivo?
Com a revolução industrial, o trabalho foi progressiva e reiteradamente
proclamado como a essência do homem e como o modelo do laço social. Para além
de muitas outras virtudes e benefícios para a humanidade que lhe foram
atribuídos, foi considerado, pelos discursos económico, político e também
científico, como o grande integrador. Foi, de resto, representado como um
esforço coletivo que exigia, por isso, a colaboração de todos (Bauman, 2007),
passando assim a ser concebido como obra de cada um e de todos nós, que há de
conduzir o Homem à abundância e à expressão plena das suas capacidades. Mesmo
que seja possível admitir que esta forma de conceber o trabalho não tenha sido
sempre consensual, é sobretudo com o fim do período (1945-1975), frequentemente
designado por trinta gloriosos, ou seja, com o fim do (quase) pleno emprego e
o crescimento do desemprego, que é consistentemente desconstruída e colocada em
questão. Vários autores (Gorz, 1991; Offe, 1992; Meda, 1999; Beck, 2000;
Bauman, 2005) falam em desencantamento e anunciam o fim das sociedades de pleno
emprego, ou mesmo o fim, historicamente previsível, da sociedade de trabalho
(Habermas, 2000: 84).
Na base dessas conceções sobre o trabalho e do seu lugar nas sociedades
contemporâneas ocidentais é possível identificar uma linha de força com, pelo
menos, três implicações maiores. A constatação é que o desenvolvimento
tecnológico e, particularmente, a designada terceira revolução industrial ou
microeletrónica reduziu, em muito, a necessidade de trabalho humano na produção
de riqueza. Sendo possível admitir que as transformações que estão a ocorrer
nos mercados laborais são o resultado da influência direta ou indireta de
vários fatores são precisamente aqueles associados ao fenómeno da
tecnologização dos processos produtivos, da informação e da comunicação e da
globalização das economias que assumem um papel dominante (Hespanha e Valadas,
2002: 124). A consequência mais evidente é que não há trabalho para todos
(Gorz, 1991; Offe, 1992; Beck, 2000), pelo menos na forma atual como os seus
tempos se encontram socialmente repartidos. Muito menos para as pessoas que se
encontram em situações de vulnerabilização social cumulativa e extrema, como
parece ser o caso, por exemplo, da quase totalidade dos beneficiários do R.S.I.
(Rodrigues, 2010). Uma outra implicação associada à anterior, e que é
fortemente reforçada pelas opções político-económicas relacionadas com o
processo de globalização neoliberal, é a dualização do mercado laboral ou a sua
diferenciação interna. A terceira consequência é a desagregação da ética
tradicional do trabalho e a emergência de novos e diversos significados que lhe
serão atribuídos pelos sujeitos no desenrolar das suas vidas. Analisemos um
pouco mais detalhadamente cada uma destas dimensões que configuram o mercado
atual de trabalho nas sociedades capitalistas ocidentais e, particularmente,
nos países da União Europeia.
1.1. Rarefação do trabalho
Depois de um longo período de mobilização geral para o trabalho, em que foram
especialmente visados os pobres e os voluntariamente ociosos (Bauman, 2005:
24), com redobrada incidência no final do século XIX e depois continuada com
especial impacto sociocultural nos anos que se seguiram à II Grande Guerra, ao
que hoje assistimos é à sua rarefação. Estaremos em vias de ver concretizada a
profecia de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho? (Arendt, 1995: 13).
Seja por razões tecnológicas, micro ou macroeconómicas, políticas ou
socioculturais ou talvez em resultado da sua conjugação, as sociedades
ocidentais contemporâneas parecem dispensar cada vez mais o trabalho humano
para a produção de bens e serviços, ou como diz Gorz, dado que o trabalho é
cada vez mais produtivo, o resultado é uma imensa infra utilização da oferta de
mão-de-obra (Gorz, 1991: 13). Desde os anos noventa do último século,
estaremos até a assistir ao crescimento sem emprego (Alonso, 2004: 36).
Nestas condições, o trajeto laboral de um número crescente de pessoas é marcado
pela inserção provisória no mercado laboral, alternado pela inscrição mais ou
menos prolongada nos serviços públicos de emprego.
Mesmo que os critérios estatísticos utilizados para medir o fenómeno do
desemprego sejam objeto de algumas controvérsias, designadamente por não
levarem em conta os que já desistiram de procurar emprego, os desencorajados
(Gautié, 1998), é isso que sugerem vários estudos e indicadores estatísticos
sobre o desemprego e a precariedade do emprego. Sirva-nos de elemento de
análise o relatório de sistematização dos dados estatísticos sobre o mercado de
trabalho na União Europeia e em Portugal na última década, elaborada pelo
Observatório do Emprego e Formação Profissional (2012). Da sua leitura é
possível constatar que no período de 2001-2011, o desemprego em Portugal
triplicou, tendo passado de uma taxa de 4.1%, em 2001, para 12,9%, em dezembro
de 2011. A mesma tendência verificou-se relativamente ao desemprego jovem (15-
24 anos), que registou no período em análise um aumento de 20,7 pp., tendo
passado de uma taxa de 9.4%, em 2001, para 30,1%, em 2011. No que respeita à
taxa média de desemprego na União Europeia-27 (U.E.27) não deixa de ser
significativo (pelo que poderá revelar em termos de tendências estruturais do
mercado de trabalho nesta zona do globo) que se tenha mantido, na última
década, em valores que rondam os 9% e que tenha atingido, no final de 2011,
9,7%. Significativo parece ser também que parte importante desse desemprego
seja de longa duração: mesmo que no contexto da média dos países da U.E.27 este
indicador apresente, no período em análise, uma tendência para alguma
estabilização na ordem dos 4%, em Portugal tem registado uma subida progressiva
desde 2001, altura em que apresentava uma taxa de 1.5%. Em 2011, essa taxa era
de 6.2%, ou seja 356,4 mil pessoas (representando 52,9% do total de
desempregados) encontravam-se desempregadas há mais de um ano, 59,4% das quais
estavam nessa situação há mais de dois anos. A percentagem de mulheres em
situação de desemprego de longa duração era superior à dos homens e 69,5%
desses desempregados tinham como habilitações escolares até ao terceiro ciclo
do ensino básico. Estes dados sugerem que o desemprego tem vindo a adquirir
contornos de diferenciação e seletividade, particularmente em função do género,
do nível de escolaridade e do grupo socioprofissional. São, com efeito, várias
as análises de natureza institucional e outras de carater científico que
evidenciam que as taxas de desemprego das mulheres apresentam, de forma
consistente, nos últimos anos valores superiores às dos homens. Em Portugal, na
década 2000-2010, a taxa de desemprego cresceu 6.7% para os homens e 7.2% para
as mulheres. Em 2011, segundo o relatório que estamos a citar, essa taxa era de
12,4% para os homens e de 13,1% para as mulheres. Nesse mesmo ano, 65,2% do
total dos desempregados (437,2 mil indivíduos) tinham como habilitações
escolares até ao ensino básico, o que parece confirmar a tendência que se
verifica desde o início do milénio: no período de 2000-2010, a taxa de
desemprego dos indivíduos com habilitações escolares até ao ensino básico foi
quase sempre superior à registada relativamente aos outros níveis de
escolaridade, tendo-se verificado, de resto, o acentuar dessa diferença a
partir de 2008. Não surpreende, portanto, que seja nos grupos
socioprofissionais dos operários, artífices e trabalhadores similares e nos dos
trabalhadores não qualificados que se verificou, na última década, o maior
aumento do número de desempregados.
O desemprego está estruturalmente associado à precarização do emprego,
relativamente à qual são também muitas as controvérsias teóricas (Oliveira et
al., 2011). Ainda assim, a grande maioria das fontes e investigações
estatísticas assinalam o aumento dos contratos de trabalho de duração
determinada. Revelam também que o emprego precário tem adquirido nos últimos
anos particular expressão ao nível dos trabalhadores menos qualificados e das
mulheres, A maior fragilização dos vínculos contratuais, a insegurança de
emprego e o trabalho a tempo parcial involuntário atingem sobretudo a população
feminina (Casaca, 2010: 283). Outras referem os designados falsos
trabalhadores independentes e também o emprego clandestino. Fala-se, enfim, de
trajetórias de Flexibilidade precária estável (Kovács, 2005). Vários estudos
falam-nos das consequências da precariedade do emprego na precarização dos
modos de vida dos indivíduos (Le Blanc, 2007; Almeida et al., 2011). Outros
fazem a distinção entre precariedade objetiva e precariedade subjetiva
(Gonçalves, 2009), sendo talvez esta última expressão da precariedade a que
melhor dá conta das transformações de grande intensidade que estão a ocorrer
nos mercados de trabalho. Mesmo os que têm trajetórias laborais estáveis
revelam sentimentos de incerteza quanto ao emprego e ao seu futuro
profissional.
Referindo-se apenas ao trabalho temporário ou contratos a termo, o relatório
que estamos a citar revela que, no conjunto dos países da U.E.27, a percentagem
média desse tipo de contratos tem crescido, embora de forma pouco expressiva,
desde 2001. Mesmo assim representava, em 2011, 14,1% do emprego total. Essa
percentagem é particularmente pronunciada em Portugal, já que, no mesmo ano,
representava 22,2% do emprego. Um estudo (Oliveira e Carvalho, 2008), que
analisou, com base nos dados fornecidos pelo Eurostat, a evolução da
precarização do emprego (contrato a tempo determinado) num conjunto de países
europeus nos últimos vinte anos refere que, pesem embora algumas diferenças, o
trabalho temporário está generalizado a todos os países da União Europeia e
instalado em todas as gerações, ainda que sejam os mais jovens os mais
atingidos por estas formas atípicas de trabalho. Esse estudo conclui, de
forma mais geral, que os mercados de trabalho na Europa mostram uma mudança
estrutural no sentido de uma redefinição das relações de emprego, indiciadoras
de uma nova relação salarial que as autoras designam por neoconcorrencial, na
medida em que todos os países avançam para uma maior liberalização das relações
de emprego, seja pela liberalização das demissões individuais e/ou coletivas,
seja pela expansão do trabalho temporário ou pela combinação de ambas
(Oliveira e Carvalho, 2008: 561).
O que estes dados indiciam é que, mesmo que se apresentem com contornos e
dimensões temporais e locais diferenciadas, o desemprego e a precarização do
emprego são questões persistentes em todas as sociedades europeias. Parecem
configurar-se, aliás, como elementos estruturais do mercado de trabalho, não
apenas da Europa, mas da maioria das sociedades de capitalismo avançado.
Estaremos, assim, perante uma situação relativamente nova na história recente
do trabalho: após ter sido o principal atractor e configurador da vida
individual e coletiva, ao que hoje assistimos é à sua rarefação e
descontinuidade no trajeto laboral do sujeito.
1.2. Segmentação do trabalho e fragmentação do estatuto do trabalhador
Essa descontinuidade das carreiras laborais participa e é reforçada pela
fragmentação do mercado laboral, que ganhou particular expressão a partir do
final dos anos setenta do último século, tendo registado nos anos noventa a sua
confirmação. As exigências da produção e as necessidades do sistema económico,
impulsionadas pelo império da competitividade, não param de diferenciar as
formas e situações de trabalho. Ao que hoje assistimos é, pois, à
multiplicidade de mercados laborais, ou, como refere Pais, o mercado de
trabalho é um arco-íris de segmentações (Pais, 2001: 17). Mais do que isso, e
como tem sido sublinhado por vários autores (Berger e Piore, 1980; Offe, 1992;
Gorz, 1991), a diferenciação interna do trabalho tende a arrumar-se em dois
grandes segmentos: a par de um segmento dito primário, que assegura melhores
salários, exige e proporciona melhores qualificações e (ainda) parece prometer
carreiras ou trajetos profissionais mais estáveis, existe outro segmento, o
secundário, caracterizado pelo desemprego intermitente, precariedade extrema
(pluriatividade, trabalho clandestino, trabalho temporário, trabalho ao
domicílio, teletrabalho, trabalho a tempo parcial involuntário, autoemprego,
etc.), por baixos salários e baixas qualificações. Enfim, exercido nas piores
condições. Este segmento parece, aliás, cada vez mais expressivo e com
tendência a crescer (Beck, 2000) e a especializar-se. Algumas investigações
(cf. Purser, 2006) revelam que, nos últimos anos, têm surgido, designadamente
nos Estados Unidos da América, outro segmento especialmente dirigido aos
excluídos do mercado de trabalho convencional, à Arma industrial de reserva
contemporânea. Trata-se de empresas de trabalho temporário que estão
particularmente vocacionadas para recrutamento à jorna de prisioneiros em
situação de liberdade condicional, ex-detidos, velhos beneficiários de ajudas
sociais excluídos do sistema, sem abrigo e emigrantes clandestinos.
Essa segmentação não resulta apenas dos mecanismos da flexibilidade externa,
mas também do interior da própria empresa, o que talvez possa ser considerada
uma forma maior de fragmentação do estatuto do trabalhador, tal como sugere
Dubet, O indivíduo passa de um lado para o outro e talvez no seio da mesma
empresa encontram-se trabalhadores tendo exatamente o mesmo tipo de atividade e
estatutos totalmente diferentes (Dubet, 1999: 13). É por isso, aliás, que o
discurso da empresa integradora ou empresa cidadã que apela à sua
responsabilidade social tem cada vez menos consistência, já que a empresa
funciona também, e aparentemente cada vez mais, como uma máquina de
vulnerabilização, e até mesmo como máquina de exclusão (Castel, 1998: 519). A
par da segmentação, a fragmentação do estatuto do trabalhador parece ser,
portanto, uma outra linha orientadora da organização do mercado laboral nas
sociedades ocidentais contemporâneas. Traduzida, além do mais, no facto de,
quer a nível coletivo, quer a nível individual, haver cada vez menos
correspondência entre as qualificações, as competências e funções exercidas e
os rendimentos e os estatutos, a fragmentação do estatuto do trabalhador coloca
várias questões de natureza teórica e empírica à forma como concebemos e
interpretamos o trabalho na atualidade. Para alguns autores (Offe, 1992; Gorz,
1991), constitui mesmo um sinal claro da perda da sua centralidade social e
cultural. Seria, também um fator de alargamento do campo das desigualdades, já
que, além das que resultam da hierarquia tradicional de rendimentos entre
categorias sócio laborais, a fragmentação do estatuto do trabalhador originaria
desigualdades intracategoriais, ou novas desigualdades que Procedem da
requalificação de diferenças no interior de categorias consideradas
anteriormente homogéneas (Fitoussi e Rosanvallon, 1997: 41).
1.3. Trabalho e organização da experiência biográfica. O sistema contra o ator?
A rarefação e segmentação do trabalho e a fragmentação do estatuto do
trabalhador têm suscitado, nos últimos anos, dúvidas e interrogações acerca do
seu valor subjetivo, ou seja, da importância e do significado que assume no
trajeto existencial do sujeito. Esse tipo de dúvidas aumenta e ganha maior
consistência quando se toma em consideração a sua crescente desumanização, no
sentido em que os processos de racionalização técnica e organizacional, cada
vez menos, permitem a manifestação das características e qualidades da pessoa
que o executa. Surgem também quando se constata que as sociedades de
capitalismo avançado sustentam na individualização da gestão do risco e no
princípio da incerteza do emprego a sua lógica de funcionamento, o que pode
corroer o nosso sentido de carácter (Sennett, 2001: 130). Trata-se de saber,
em síntese, se as condições da sua realização nas sociedades ocidentais
contemporâneas não corrói e desagrega a sua ética tradicional, em que As
pessoas procuravam provar o seu valor através do trabalho (Sennett, 2001:
154). O que, em termos mais imediatos e concretos, coloca, desde logo, questões
como a de saber se é possível continuar a considerá-lo como o grande integrador
da experiência pessoal e social; ou se o papel da atividade profissional nos
processos de socialização e de construção das identidades deve ser
relativizado. Mais geralmente, trata-se de saber se o trabalho é hoje um
instrumento para a vida ou forma de realização de si.
É ainda maioritária a conceção segundo a qual o trabalho constitui o
referencial maior na vida dos indivíduos (Dubar, 1997; Schnnapper, 1998). São,
no entanto, muitos os sinais evidenciados por pesquisas de recorte qualitativo
(Grell e Wery, 1993; Schehr, 1999), que permitem colocar a possibilidade de que
já não é o valor central e que a sua ética se encontra, pelo menos, fortemente
relativizada, ou nas palavras de Bauman (2007: 149) O trabalho' já não pode
oferecer um uso seguro no qual enrolar e fixar definições do eu, identidades e
projetos de vida. Também Schehr, a propósito das perspetivas que tendem a
conferir uma importância decisiva à identidade profissional para a identidade
social, afirma: este ponto de vista esquece muito simplesmente de invocar
outras experiências sociais que não o trabalho, que também podem ser
fundamentais da construção identitária (Schehr, 1999: 250). O trabalho
tenderia, assim, a perder significado enquanto símbolo maior daquilo que somos
(Estanque, 2005: 114).
É possível, em qualquer caso, admitir que o valor do trabalho, o seu lugar na
construção das identidades individuais e sociais, a satisfação que as pessoas
experimentam quando o exercem, ou seja, a sua apropriação subjetiva, enfim, a
importância que lhe é conferida pelos sujeitos, não constituem realidades
homogéneas. Estarão dependentes de fatores diversos, uns intrínsecos, outros
extrínsecos ao próprio trabalho. Na interpretação dos dados do inquérito
realizado em França, em 2003, a cerca de 8400 indivíduos, Hèlène Garner et al.
referem que Do ponto de vista do lugar do trabalho na identidade, uma
fronteira muito nítida separa dois grupos, os quadros e os independentes, para
os quais o trabalho é um forte componente da identidade, e os empregados e
operários, para os quais é menos (Garner et al., 2006: 28). Quanto à
importância que lhe é concedida seriam as pessoas com mais baixos salários,
piores condições de trabalho, com filhos menores e, sobretudo, com pouca
segurança no emprego, as que lhe atribuíam menor importância. Com base nesse
estudo concluem, enfim, que, quer como elemento de identidade, quer como
atividade mais ou menos valorizada, o trabalho tem um lugar relativo face a
outras atividades, nomeadamente familiares, e a outros valores. Parece,
portanto, que o seu lugar na construção das identidades e a importância que o
indivíduo contemporâneo lhe atribui estão associados à situação pessoal e
familiar e, sobretudo, à trajetória e posição socioprofissional.
Do que até agora dissemos, decorre também a questão de saber se o trabalho é
sobretudo um instrumento para a vida (versão instrumental) ou forma de
realização de si (versão expressiva). A perspetiva dominante tem sido a de
considerar que é, sobretudo, a sua realização o que o homem procura no
trabalho, até porque ele é, por essência, realizador. No entanto, e tendo
presente o que atrás dissemos sobre as condições da sua realização nas
sociedades ocidentais contemporâneas, é possível admitir que, pelo menos para
um grande número de indivíduos, ele não permite a manifestação das suas
faculdades, a sua forma e ritmo de funcionamento, ou os seus interesses e
valores, enfim, a expressão de si. E será assim, desde logo porque o nosso
envolvimento no trabalho torna-se superficial, uma vez que nos falta
entendimento do que estamos a fazer. (Sennett, 2001: 114). Aliás, pelo tipo de
racionalidade que impõe, pode mesmo provocar uma cisão na vida dos indivíduos.
Estamos de acordo com Gorz quando nos diz que as qualidades profissionais são
isentas de virtudes pessoais e a vida privada resguardada contra os imperativos
da vida profissional (Gorz, 1991: 54). A relação dominante com o trabalho
seria, nesta perspetiva, uma relação moralmente neutra, de tipo instrumental, o
que leva mesmo alguns autores a considerar que deixou de ser uma questão de
ética para passar a constituir, sobretudo, uma experimentação estética (Bauman,
2007).
É verdade que o contrato salarial continua a ser o modelo e o fundamento dos
contratos sociais, desde logo, porque o rendimento continua, no essencial, a
estar indexado à posição do indivíduo no sistema económico. Contudo, o que
reflexões como as que acabamos de fazer sugerem é que o trabalho, tal como se
configura atualmente para um número crescente de pessoas, poderá ser percebido
e vivido, sobretudo, como um constrangimento à sua autonomia e autorrealização
(Dubet, 2006). Podemos estar, assim, em presença de um conflito entre o sistema
e o ator, ou seja, o trabalho como norma já não tem o mesmo sentido e
significado para o ator e para o sistema (Touraine, 2005), o qual tudo faz para
lhe conservar o lugar.
2. Ética do trabalho, pobreza e processos de marginalização social
É neste contexto que é possível interpretar os sucessivos e sempre renovados
esforços para manter viva e até reforçada a sua ética. A partir dos anos
noventa do último século, isso tem-se traduzido na implementação de dois
grandes tipos de medidas de alcance e significado particularmente importantes.
Um deles, alargando o conceito de trabalho, tornando-o pouco preciso e até de
contornos indefinidos, de tal forma que se torna difícil perceber o que é
trabalho e não-trabalho. É assim que se tem assistido à tentativa de invenção e
descoberta de novas jazidas de emprego, o que poderá significar alimentar uma
política de retorno à plena atividade, mas não à situação de pleno emprego
(Castel, 2009). Os serviços prestados às pessoas são os mais salientados por
alguns teóricos do emprego, entre os quais Schnnapper, que, a este propósito,
afirma: É o conjunto a que se chama o social no sentido lato do termo: cuidar
materialmente, moralmente, intelectualmente das crianças, dos adolescentes e
dos idosos, dos doentes e enfermos, e até mesmo dos adultos activos, isto é,
instruí-los, tratá-los e distraí-los (Castel, 2009: 83). Este tipo de
propostas parece ter tido bom acolhimento nos países da União Europeia e também
em Portugal. Demonstra-o, com efeito, o aumento registado, nos últimos anos, em
Portugal como noutros países, da oferta formativa nesta área e o crescimento do
número de trabalhadores inseridos neste setor de atividade, na maior parte das
situações considerados trabalhadores não-qualificados e com baixas remunerações
(Meda e Vennat, 2004). Notemos, contudo, que essa opção não é isenta de riscos,
desde logo porque coloca a possibilidade de nos tornarmos uma sociedade de
servidores e de neo-domesticidade (Gorz, 1991). O que poderá significar o
aprofundamento das desigualdades, antes de tudo o mais pela diferente
valorização do tempo de cada um dos trabalhadores. Um outro, implementando uma
panóplia de medidas e de dispositivos que visam a prevenção precoce do
desemprego e a reinserção laboral, através das políticas ativas de emprego e de
ativação dos desempregados. Essas políticas, como de resto as políticas
sociais em geral, são crescentemente orientadas pelo princípio do
individualismo normativo (Delory-Momberger, 2010), nos termos do qual cabe ao
indivíduo cuidar e demonstrar a sua empregabilidade. Ou seja, deve estar
permanentemente preparado para poder convencer um potencial empregador da sua
adequação às condições de emprego que lhe poderão ser oferecidas, ainda que não
saiba exatamente quais e se isso vai ocorrer. Foi também com base nesse
princípio que foi reforçada uma prática já antiga, mas que, a partir da década
de noventa do último século, assumiu, em grande parte dos países da Europa e
também em Portugal (Fonseca, 2008), novos contornos e importância crescente.
Faz parte, aliás, de uma das prioridades da Estratégia Europeia para o Emprego
de 1997 (Conter, 2007), o controlo dos desempregados, sobretudo daqueles que
estão a receber indeminização pela situação de desemprego. Para além de poder
servir para fazer ajustamentos nas taxas de desemprego, o que este reforço do
controlo traduz de mais significativo é a responsabilização do desempregado
pela sua situação de desemprego (Dubois, 2008). Desta forma, e a par da
tendência para a diminuição progressiva das prestações socias de desemprego,
quer em termos do valor, quer no que se refere aos períodos de concessão, o que
se pretende é que os desempregados procurem e consigam, por si sós, encontrar
emprego. Ora, pelo menos para alguns, tal poderá significar procurar o que não
existe. Estamos de acordo com Alonso quando refere que As novas exigências do
mundo laboral transformam muitos produtores em dificilmente empregáveis
(Alonso, 2004: 34). Este tipo de observações adquire maior alcance e
significado se tivermos em conta que o desemprego, e particularmente o de longa
duração, é, na maior parte das economias de capitalismo avançado e também em
Portugal, seletivo, designadamente em função do nível de habilitações escolares
e profissionais, do grupo socioprofissional e do género (Maruani, 2004;
Observatório do emprego e Formação Profissional, 2012). Para muitos outros,
poderá traduzir-se na aceitação de empregos mal remunerados, sem interesse e
exercidos nas piores condições, o que ajudará a compreender os dados
apresentados pela Fundação Europeia Para a Melhoria das Condições de Vida e de
Trabalho (Fundação Europeia Para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho
' EUROFOUND, 2010), segundo os quais, em 2007, 8% da população empregada na
União Europeia pertencia à categoria de trabalhador pobre. Essa percentagem
seria ainda mais pronunciada em Portugal, sendo vários os estudos (eg. Carmo et
al., 2010) que apontam para que 12% dos trabalhadores viviam, no mesmo ano,
abaixo do limiar de pobreza. É de admitir, de resto, que esta situação tenha
sofrido algum agravamento nos últimos anos, tanto no contexto europeu, como
nacional.
Tendo sido apresentadas como fazendo parte de uma estratégia para alcançar o
pleno emprego, são, até agora, poucos os resultados conseguidos a esse
respeito pelas políticas da ativação dos desempregados e da promoção da
empregabilidade. Isto justifica compará-las ao mito de Sísifo (Castel,
1998), a considerá-las falsas ou, no mínimo, ingénuas (Bauman, 2005), tendo em
conta, designadamente e como atrás dissemos, que a taxa média do desemprego nos
países da União Europeia, há pelo menos uma década, ronda os 9%. Muito longe,
portanto, da taxa de 3%, frequentemente considerada compatível com a situação
de pleno emprego (Conter, 2007). Também Pedro Hespanha e Carla Valadas nas
conclusões da análise a que procedem do impacto das principais medidas
previstas no primeiro Plano Nacional de Emprego (PNE, 1998) implementado em
Portugal, referem: Alguns resultados medidos das políticas de activação dos
desempregados no âmbito da abordagem precoce do desemprego, parecem evidenciar
particulares problemas de (re) inserção estável no mercado de trabalho
(Hespanha e Valadas, 2002: 169). É possível, portanto, admitir que essas
políticas, mais do que acabar com o desemprego, visam, sobretudo, mantê-lo a
níveis controláveis e como instrumento de gestão das relações laborais. Em
particular, levarão ao aumento da concorrência entre os indivíduos pelos postos
de trabalho disponíveis, no que sairão quase sempre a perder os de menores
recursos educacionais, culturais, económicos e sociais. É nesse sentido que
apontam as reflexões, a nosso ver pertinentes e de grande potencial heurístico,
de alguns autores (Maruani, 2001; Conter, 2007): analisando as políticas de
emprego desenvolvidas no quadro da União Europeia, evidenciam o papel que o
desemprego tem assumido como forma de pressão sobre as condições de trabalho e
de emprego. Sublinham, em particular, que o desemprego e as medidas ativas
apresentadas como forma de o combater têm funcionado, sobretudo, como
instrumentos de diminuição dos custos salariais, de precarização do emprego e
de afastamento de muitos trabalhadores do mercado de trabalho.
Estaremos, pois, num contexto económico-social em que o mercado de trabalho é,
cada vez mais, o centro de produção, reprodução, ampliação e reforço de velhas
e novas desigualdades (Cingolani, 2011). A ética do trabalho, que tendo sido
construída com base na promessa de acabar com a pobreza, parece constituir hoje
um poderoso mecanismo no processo de empobrecimento e de marginalização de
consideráveis setores da população (cf. Hespanha, 2007) que, antes de tudo o
mais, estão afastados do mercado de trabalho. É isso, aliás, o que autoriza
alguns autores a falar de uma nova marginalidade, seja ela designada por
Underclass, nova pobreza ou exclusão social. Independentemente das críticas que
lhes têm sido dirigidas (Karsz, 2004; Bauman, 2005; Fernandes, 1998), o que
estas categorias de análise acabam por dar conta é das profundas transformações
registadas, nas últimas décadas, pelo trabalho e as suas novas configurações na
organização e no funcionamento das sociedades do pós-fordismo e do capitalismo
avançado. Pode servir-nos de exemplo Wacquant, quando refere que, com a
modernização económica acelerada, provocada pela reestruturação global do
capitalismo (Wacquant, 2001: 168), surge um novo regime de desigualdade e
marginalidade urbana que designa por marginalidade avançada. Nesta noção, o
autor engloba um conjunto de desinserções e figuras da marginalidade que
proliferam como consequência desta nova fase do capitalismo. A marginalidade é
considerada avançada também porque traduz uma nova forma de existência da
pobreza: na medida em que está dissociada dos ciclos económicos, tende a ser de
longa duração. Está, além disso, confinada a bairros relegados, num processo
social bem ilustrado por Dubet: O declínio da sociedade salarial acarretou um
deslocamento da questão social que se assemelha em vários pontos ao da época da
entrada na sociedade industrial, na medida em que o núcleo dos problemas se
desloca das fábricas para a cidade, para as periferias ou centros de cidade
degradados, onde se concentram os grupos mais frágeis, mais pobres, mais
estigmatizados (Dubet, 2001: 9). O que estas afirmações sugerem é que, se é
verdade que pobres sempre existiram (Bauman, 2005), não menos certo é que
conheceram contextos diferentes de existência. Em contraste com o período da
expansão industrial, em que, além do mais, a pobreza estava dispersa por vários
espaços operários e era sobretudo cíclica, nas sociedades ocidentais
contemporâneas, ser pobre não significa apenas viver em situação de privação
económica. Traduz-se, frequentemente, também em viver em espaços relegados,
caracterizados pela concentração e estigmatização da pobreza. Habitar nesse
tipo de territórios, para além de confirmar a situação de pobreza de quem lá
vive ou de quem para lá vai viver, pode, assim, significar a sua perpetuação.
Investigações recentes revelam, com considerável consistência teórica/
metodológica, que os jovens residentes em espaços estigmatizados experimentam
dificuldades acrescidas de competitividade nos mercados de trabalho: não apenas
porque têm maiores dificuldades no acesso ao emprego, quando se compara com o
que acontece com jovens residentes noutros territórios, o que permite verificar
um efeito específico e importante do lugar de residência sobre o acesso ao
emprego (L'Horty et al., 2011: 87); mas também porque os jovens residentes
nesses territórios, quando conseguem emprego, têm maiores dificuldades em
aceder aos mais qualificados e auferem remunerações mais baixas, quando
comparadas com o que acontece com jovens residentes noutros locais. Neste caso,
o lugar de residência constitui-se como um efeito específico de descriminação
salarial (Couppié et al., 2010). Idênticas conclusões podem ser encontradas num
trabalho de investigação de natureza qualitativa realizado num dos bairros dos
arredores de Lisboa (cf. Silva e Machado, 2010). Para além de se confirmar que
a taxa de desemprego jovem nesse bairro era cerca de três vezes maior do que a
nível nacional e de que há no bairro mais precariedade laboral do que no
país, comparando a situação laboral dos jovens aí residentes com a de outros
jovens, conclui-se que São proporcionalmente muitos mais nas categorias
profissionais mais desqualificadas e muito poucos nas mais qualificadas (Silva
e Machado, 2010: 201). Por outro lado, estudos realizados em prisões
portuguesas (cf. Cunha, 2002; Fernandes e Silva, 2009) revelam que, desde os
anos 80 do último século e até ao ano 2000, a taxa de encarceramento tem vindo
a aumentar, seguindo uma tendência verificável noutros países ocidentais de
capitalismo avançado. Este tipo de dados poderá traduzir uma reinvenção da
prisão como solução penal frente ao novo problema da exclusão social e
económica (Garland, 2005: 323). Evidenciam, além disso, que a sociografia dos
detidos tem vindo a mudar. Os dados apresentados na investigação que Maria
Ivone Cunha realizou no estabelecimento prisional de Tires, dizem-nos que subiu
o número das detidas que se incluem no segmento secundário do mercado de
trabalho, com baixa remuneração e participação em economias informais e, por
outro lado, que essas reclusas provêm esmagadoramente das áreas metropolitanas
de Lisboa e Porto e, nestas, das zonas de barracas, bairros de realojamento,
bairros sociais suburbanos. Afinal, conclui-se, as mesmas zonas por onde se
distribui a pobreza (Fernandes e Neves, 2010: 326).
Em síntese, numa situação de penúria de emprego e de recuo do estado social,
o facto de se viver num bairro social degradado pode condicionar, ainda mais
negativamente, o percurso profissional dos que lá habitam. Viver nesses
territórios significa estar, frequentemente, em situação de múltipla relegação.
A relegação dessas populações não é, com efeito, apenas por parte dos
empregadores, mas também da polícia, dos tribunais, dos serviços de apoio
social (Wacquant, 2001) e dos próprios vizinhos (Dubet, 2001). Torna-se, assim,
difícil a tarefa de conseguir (e, muito mais complicado ainda, manter) emprego
no mercado formal. A saída para muitos dos seus habitantes poderá ser aceitar
trabalhos mal remunerados, exercidos nas piores condições de higiene e de
segurança. São, além disso, frequentemente pagos à jorna, o que poderá surgir
como uma solução ajustada à extrema precariedade financeira e à pobreza
económica de muitas famílias: é necessário ganhar hoje dinheiro para suportar
as despesas do dia seguinte. Para outros, poderá ser o trabalho clandestino, de
que releva a venda de drogas e de outras atividades ilegais.
Considerações finais
Uma análise como aquela que aqui fizemos às transformações registadas pelo
trabalho assalariado, nas últimas décadas, nas sociedades de capitalismo
avançado, autoriza a pensar que este, depois de ter sido considerado como o
grande integrador, gerador de compromissos sociais e de ter subsumido todas as
dimensões da vida social, poderá constituir hoje um importante fator de
desestruturação da vida individual e coletiva. Parece configurar-se, aliás,
como paradoxal. Desde logo, porque, pelo menos nas últimas cinco décadas, tem
vindo a aumentar o número de pessoas, particularmente mulheres, que participam
no mercado de trabalho na condição de assalariadas. Contudo, ao que hoje
assistimos é à persistência de elevadas taxas de desemprego e ao emprego
incapaz de gerar confiança para a construção de projetos de futuro, quer no
plano individual, quer coletivo. O mercado contemporâneo de trabalho é marcado
pelo princípio da insegurança do emprego e da normalidade do desemprego
(Silvestre e Fernandes, 2012), ele próprio seletivo e desigual. O desemprego,
como a precariedade do emprego, é experimentado de forma mais dura e radical
por mulheres, por emigrantes, por indivíduos mais velhos, por pessoas com menos
habilitações escolares e profissionais, com menos capital social. De acordo com
as tendências atuais, muitas dessas pessoas dificilmente regressarão ao mercado
de trabalho, enquanto outras continuarão a lutar por um lugar que lhes assegure
a subsistência (Honneth, 2008). Muitas outras executam atividades sem conteúdo
expressivo e em condições precariamente protegidas e altamente
desregulamentadas. Paradoxal também porque, em nome da sua antiga ética e do
reforço da sua centralidade normativa, isto é, a tendência para o considerar
como condição quase única de cidadania (Noguera, 2002), o trabalho assalariado
é representado como a principal fonte de subsistência material e signo do
estatuto social, constituindo a única forma das pessoas escaparem à pobreza.
São, no entanto, muitos (e, ao que parece, com tendência a crescer e a
instalar-se na paisagem social) os que trabalham e são pobres. O mesmo é dizer
que o trabalho já não protege as pessoas contra a pobreza, na medida em que não
assegura a muitos dos trabalhadores condições mínimas para uma independência
económica e uma vida minimamente decente (Castel, 2009). É em nome do valor
normativo do trabalho que se retiram prestações sociais e se diminuem
intensamente as de desemprego a pessoas que não dispõem de outras formas de
subsistência e não conseguem trabalhar. Em Portugal, para além de ter vindo a
baixar o número de desempregados protegidos, também se assiste a uma
diminuição dos valores e duração das prestações, o que não deixarão de gerar
"armadilhas de pobreza" entre os desempregados (Adão e Silva e
Pereira, 2012:313). Conjugam-se, assim, dois fatores maiores no processo de
empobrecimento e até de marginalização social de amplos setores da população: o
estado social recua, ao mesmo tempo que o trabalho assalariado escasseia e
perde relevância social e cultural. A sua crescente rarefação, desregulação e
individualização (a nível empresarial e societal) parece colocá-lo no centro de
crescentes e renovadas desigualdades e no jogo de múltiplas exclusões. E, desde
logo, porque a crescente seletividade do trabalho reforça e reinscreve antigas
desigualdades estruturais.