Para uma história operária do capital: classe, valor e conflito social
ARTIGOS
Introdução
Este texto tem como objetivo a abordagem crítica da relação entre classe, valor
e conflito social. Pretende-se, com ele, sublinhar a natureza eminentemente
histórica dessa relação, avançando alguns elementos para a sua interpretação, à
luz de um campo teórico e conceptual empenhado, em distintos momentos e
latitudes, no desenvolvimento de uma crítica da economia política inspirada nos
escritos de Karl Marx.
O seu núcleo fundamental parte de uma hipótese avançada por Mário Tronti para
interpretar a dinâmica de desenvolvimento do modo de produção capitalista em
articulação com os conflitos sociais produzidos no seu seio. Trata-se de
conceber a possibilidade de uma história operária do capital, tomando como
elemento chave os comportamentos da classe trabalhadora no seio das relações
capitalistas de produção.
O objetivo é estabelecer um diálogo entre essa hipótese e outros esforços de
elaboração política e teórica igualmente empenhados em conceber a história da
modernidade à luz do antagonismo entre trabalho e capital. A opção foi a de
percorrer alguns momentos dessa história, no sentido de ilustrar a proposta de
Tronti e a sua pertinência para a compreensão de fenómenos frequentemente
considerados distantes dos três conceitos aqui invocados. Se a dimensão
eminentemente cultural e conceptual de qualquer uma destas realidades ' classe,
valor e conflito social - se tornar um pouco mais percetível para o leitor, o
intuito deste ensaio não terá sido completamente defraudado.
1. O tempo do valor
Ainda que a revolução industrial, iniciada na Grã-Bretanha no século XVIII,
tenha representado uma incontornável descontinuidade do ponto de vista
histórico, existia já um considerável grau de sofisticação, bem como um elevado
índice de divisão do trabalho e de intercâmbios comerciais na economia do
Antigo Regime2. Nela interagiam e se sobrepunham diversas atividades concretas,
cujos produtos se trocavam no mercado, serviam à subsistência ou se acumulavam
em armazéns, cada um deles com as suas propriedades, especificidades e
exigências, tendo por trás uma longa história de aperfeiçoamentos técnicos, bem
como de consolidação e transmissão dos conhecimentos imprescindíveis à
respetiva produção. Este conjunto de atividades em que se dividia socialmente o
trabalho foi progressivamente subordinado a um processo de infinita acumulação
de capital ' primitiva primeiro, civilizada depois ', no qual as relações
sociais assumiam a forma de movimentos de coisas, cujo controlo, ou até o
significado, escapava por inteiro aos seres humanos.
Esta passagem foi assinalada por uma multiplicidade de conflitos e formas de
resistência levadas a cabo pelas comunidades camponesas e artesãs ' ou, como
era o caso de várias regiões europeias na passagem do século XVIII para o
século XIX, de comunidades camponesas que também se dedicavam a atividades
artesanais, sob a alçada de comerciantes urbanos que controlavam o fornecimento
de matérias-primas e o escoamento da produção ', relativas a questões tão
díspares como o preço dos bens alimentares, o valor pago por cada peça
produzida ou o emparcelamento de terrenos comunitários3.
Os primórdios da industrialização caracterizaram-se, assim, pela eclosão de
movimentos de luta contra a sujeição ao trabalho industrial, contra a
apropriação privada de recursos coletivos, contra os processos de
mercantilização e monetarização da vida social, contra os procedimentos de
disciplinamento das camadas populares, enquanto formas de resistência à
afirmação da lei do valor e da subordinação do trabalho vivo ao trabalho morto,
ou seja, da classe dos trabalhadores assalariados ao capital.
Foi no seio deste processo, em que os diversos trabalhos concretos, com as suas
qualidades específicas, se tornaram comparáveis entre si na forma do tempo '
uma categoria quantitativa por excelência ' necessário à produção de uma dada
mercadoria, que se afirmou o domínio da lei do valor sobre o conjunto da
produção, enquanto mola propulsora da atividade social e elemento unificador de
momentos produtivos aparentemente sem qualquer relação entre si. Apenas a
partir do momento em que um alqueire de trigo passou a valer tanto como um
fardo de algodão ou umas botas de couro, se encontraram reunidas as condições
para que o capital, enquanto relação social, passasse a orientar a produção
para o fim específico da sua reprodução alargada. As funções de intermediação
entre a produção e o consumo puderam então ser ultrapassadas numa direção e
noutra, separando integralmente os produtores dos seus meios de produção e
confrontando os consumidores com mercadorias produzidas em novas condições, que
incorporavam um valor superior ao que seria necessário para assegurar a
subsistência do produtor, sem que essa diferença resultasse de um acréscimo do
seu preço no momento da circulação, mas antes de uma profunda alteração no
momento da produção4.
A formação histórica das duas classes centrais no modo de produção capitalista
equivaleu, assim, a um momento em que detentores de capital e vendedores de
força de trabalho se relacionavam simplesmente, enquanto partes contrapostas e
claramente distintas nas suas funções específicas, no interior da relação
social do capital. Uns produziam, em troco de um determinado preço, mercadorias
que pertenciam a outros e que seriam vendidas por um valor superior ao
despendido na produção. A primeira forma de mais-valia, a mais elementar e que
crescia apenas em termos absolutos, corresponde a esta fase da acumulação
capitalista. Foi em torno da sua contração ou expansão que os interesses
distintos do capital e do trabalho começaram a manifestar-se, do ponto de vista
material e conceptual.
O valor e a classe estão historicamente ligados e não é casual que a emergência
da economia política, enquanto disciplina dedicada a conferir ao processo
produtivo uma densidade teórica e um grau de abstração científica compatíveis
com a sua crescente importância no plano social, tenha coincidido
historicamente com a emergência dos problemas relacionados com a gestão da
relação entre as duas partes contrapostas. O momento em que o processo
produtivo se tornou cognoscível em todas as suas implicações ' não apenas as
manifestamente evidentes, como acontecia com as inovações técnicas introduzidas
pela revolução industrial, mas também aquelas outras igualmente decisivas e
mais invisíveis, que diziam respeito às relações sociais ' foi também aquele
que viu a mercadoria força de trabalho converter-se, crescentemente, numa parte
variável do capital.
2. Uma história operária do capital
Nos primórdios da industrialização, cada conflito laboral continha em si os
elementos de uma guerra civil cuja pacificação se transformou,
progressivamente, numa ciência capaz de combinar métodos sofisticados com
procedimentos brutais. Essas lutas atravessaram a história do capitalismo,
constrangendo-o a modificar-se constantemente, a expandir-se e a desenvolver-
se, forçando as classes dominantes a responder, recuperar e incorporar as
exigências operárias na dinâmica do seu próprio desenvolvimento.
É precisamente neste ponto, em que a história da classe e a história do capital
se encontram, que se manifesta plenamente a capacidade capitalista para
revolucionar o processo produtivo, promovendo a crescente subordinação do
trabalho vivo ao trabalho morto. Já não se trata apenas da tentativa de
aumentar a jornada de trabalho, somando uma hora de trabalho a várias horas de
trabalho, ou de contrair o salário pago para a garantir. Essa estratégia
revelou os seus limites históricos ao confrontar-se com formas de resistência
operária cada vez mais encarniçadas, convertendo-se, inicialmente, num problema
de ordem pública e, posteriormente, num problema de natureza política.
É nesse contexto que o processo de acumulação capitalista começa a subordinar a
si mais do que o tempo de vida do trabalhador assalariado e a sua capacidade
produtiva, para passar a transformá-los à medida das suas necessidades,
aprofundando a separação entre os produtores e os meios de produção. Torna-se
então imperioso, do ponto de vista capitalista, acelerar ritmos e aumentar a
produção, fazendo crescer a composição orgânica do capital, mecanizando e
uniformizando, alienando o trabalhador não apenas do produto do seu trabalho,
mas das próprias condições em que trabalha: gestos, posições, métodos e
cadências passam a integrar um tempo que pertence crescentemente ao capital e
que se tornará, em breve, um terreno de disputa. Tratar-se-á, doravante, de
fazer com que uma hora valha várias horas em termos produtivos, sem sofrer
alterações significativas em termos remunerativos. É esse processo que introduz
o tema da alienação nos primeiros esboços de crítica da economia política:
Alienado, o trabalho assalariado era-o já, em rigor, antes mesmo do
advento da máquina, posto que o produto do trabalho já não pertencia
ao trabalhador, assim como já não lhe pertenciam as condições da
produção desde o advento da manufactura. Mesmo quando o trabalhador
permanecia ainda fora dos muros da manufactura, o seu trabalho pode
considerar-se alienado' na medida em que o fio que tecia lhe era
fornecido de empreitada e em que, frequentemente, os próprios teares
em que operava lhe eram também já fornecidos pelo capital mercantil
ou manufactureiro. Todavia, só quando o seu próprio trabalho passado,
morto, se apresenta diante dele como máquina, como monstro animado',
é que se ultima a alienação' e o trabalhador se torna acessório
vivo' do capital fixo (Cabral, 1983:41).
Tem então lugar a passagem de uma forma de exploração baseada no incremento da
mais-valia absoluta para uma outra baseada no desenvolvimento da mais-valia
relativa, através da subordinação real (e já não meramente formal) do processo
de trabalho ao processo de valorização, do uso capitalista da tecnologia (e,
portanto, a oposição crescente entre o trabalhador e a organização do trabalho)
e da capacidade, por parte dos setores mais dinâmicos e poderosos do
empresariado, de fazer crescer a taxa de exploração do trabalho assalariado,
reduzindo o preço médio de cada mercadorias e, simultaneamente, aumentando a
taxa de lucro do capital.
Através da organização científica do trabalho introduzida por Taylor na
passagem do século XIX para o século XX (e que atingirá um ponto alto na linha
de montagem introduzida na fábrica de automóveis de Henry Ford, em Detroit),
tornava-se, doravante, possível controlar os ritmos de cada operário, moldar os
seus movimentos e simplificar as suas tarefas, até o tornar um apêndice dos
meios de produção. Estranho ao seu trabalho e ocupando um lugar parcelar no
conjunto do ciclo produtivo, o trabalhador assalariado vê-se, progressivamente,
incapaz de ultrapassar, na esfera da consciência, uma perspetiva fragmentária
do conjunto das relações sociais de produção em que se insere. É neste processo
que a sua capacidade de ação coletiva se torna um elemento cada vez mais
imprescindível e as modalidades primitivas de organização e associação operária
começam a consolidar-se na sua forma partidária e sindical, representando os
interesses do conjunto da classe trabalhadora face aos interesses patronais e
abrindo a porta aos processos de negociação coletiva entre as duas partes.
Mário Tronti sugeriu a expressão história operária do capital para propor uma
interpretação que rompe com as visões tradicionais, que fazem a classe operária
derivar do desenvolvimento capitalista, enquanto resultado de um processo
objetivo resultante da iniciativa do capital:
Também nós próprios começámos por ver primeiro o desenvolvimento
capitalista e só depois as lutas operárias. É um erro. Tem de se
inverter o problema, mudá-lo de sinal, recomeçar desde o princípio: e
o princípio é a luta da classe operária. Ao nível do capital
socialmente desenvolvido, o desenvolvimento capitalista é subordinado
às lutas operárias, vem depois delas e a elas tem de fazer
corresponder o mecanismo político da sua própria produção (Tronti,
1976: 93).
Pelo contrário, segundo esta abordagem, seria a formação da classe operária
enquanto realidade coletiva e objetiva, caracterizada pela separação
relativamente aos meios de produção e pela cooperação estabelecida no processo
produtivo, a determinar as modalidades da exploração por parte do capital e a
forçá-lo a formas de racionalização sempre mais complexas dessa relação. Nesta
leitura crítica da economia política, a produção deixa de existir enquanto
forma genérica e intemporal, para assumir a forma de um antagonismo vivo em
perpétua reprodução:
Eis porque razão o processo produtivo ' enquanto processo produtivo
do capital ' não é separável dos momentos da luta de classes, isto é,
não é independente dos movimentos da luta operária: é feito,
composto, organizado, pela série sucessiva de todos esses momentos.
(...) É o ponto de vista do capitalista individual que vê a luta
operária como um momento, embora insuprimível, do processo produtivo.
Do ponto de vista do operário ' que na produção já não pode ser o do
operário individual - trata-se mais uma vez do contrário: o processo
produtivo revela-se como ummomento ' igualmente insuprimível ' da
luta operária. Revela-se pois como o terreno táctico mais favorável
ao desenvolvimento da luta operária (Tronti, 1976: 226).
Do afrontamento permanente entre as duas classes ' quer ele se manifestasse em
campo aberto ou assumisse formas subterrâneas, quer se jogasse no campo
político mais geral ou no próprio terreno da produção ' resultava um processo
de socialização do capital (do qual a força de trabalho é a articulação
dinâmica), que forçava a associação dos capitalistas enquanto classe, o
reconhecimento da classe operária enquanto sujeito político, a extensão das
relações de produção capitalistas a todos os domínios e o seu desenvolvimento à
escala internacional. Momentos como a limitação da jornada de trabalho e a
legislação inglesa sobre as fábricas, o sufrágio universal, o direito à greve e
o reconhecimento dos sindicatos, mas também as conquistas imperiais e o caminho
de ferro, os conflitos militares e o crescimento do mercado mundial, a
construção do Estado moderno e a mecanização da agricultura, a formação do
capital financeiro e a organização científica do trabalho ' tudo isto surgia
nesta proposta de rutura teórica enquanto o resultado da pressão operária sobre
o salário, da sua capacidade de resistência e de ataque, da sua preponderância
no processo produtivo:
Assim como no acto de compra e venda da força de trabalho já está
contida a relação entre duas classes antagonistas, em que se funda
posteriormente toda a história propriamente dita do capital, do mesmo
modo, no processo de consumo da força de trabalho no momento da
produção, está já preparado todo o terreno da luta directa entre as
duas classes, a qual determinará, um após outro, o nascimento, o
desenvolvimento e a queda da sociedade capitalista. ( ) A força de
trabalho, como vimos, é introduzida, tem de ser introduzida no
processo de produção já como classe e como classe antagonista. É
apenas como força produtiva social que pode, não só produzir capital,
mas ainda pertencer ao capital, tornar-se uma parte interna deste
processo. ( ) Mas a passagem ' simultaneamente lógica e histórica '
do proletariado vendedor de força de trabalho a classe operária
produtora de mais valia assinala o início daquela história operária
do capitalque é, no fundo, a história propriamente dita da sociedade
capitalista (Tronti, 1976: 181-182).
A tendência histórica de crescente abstração do trabalho e separação do
trabalhador relativamente às condições de produção ' o aumento da composição
orgânica do capital, o incremento da produtividade e a regulação política das
relações de exploração do trabalho assalariado ' marcou a evolução das
sucessivas etapas históricas do desenvolvimento capitalista e da subordinação
da atividade humana ao processo de acumulação. Cada salto na expansão
capitalista teria, assim, correspondido à necessidade de desvalorizar o
trabalho e fazer crescer a taxa de mais-valia, de criar ao nível da sociedade
as condições necessárias à máxima exploração do trabalho assalariado, de
subordinar a sociedade à fábrica como meio de subordinar o trabalho ao capital,
até chegar ao mais alto ponto de socialização: a classe operária completamente
dentro do capital como condição da sua valorização, o máximo poder capitalista
sobre os movimentos da classe como terreno da sua máxima vulnerabilidade.
Tronti preocupou-se, sobretudo, em sublinhar a capacidade, por parte da classe,
de contrapor a sua subjetividade política à objetividade económica, assumindo-
se enquanto fonte viva do valor, afirmando, parcial e unilateralmente, o seu
interesse específico e organizando, ao nível da produção, um poder operário
contraposto à organização capitalista do trabalho e capaz de a influenciar
decisivamente:
A luta da classe operária constrangeu o capitalista a modificar a
forma do seu domínio. O que quer dizer que a pressão da força-
trabalho é capaz de constranger o capital a modificar a sua própria
composição interna e que intervém dentro do capital como componente
essencial do desenvolvimento capitalista; que ela empurra para a
frente, por dentro, a produção capitalista, até a fazer trespassar
completamente todas as relações externas da vida social (Tronti,
1976: 47).
Tronti escrevia no âmbito de um movimento de renovação teórica do marxismo,
formado em Itália nos anos Sessenta do Século XX, o operaísmo, inicialmente
composto por elementos críticos ou dissidentes do Partido Comunista Italiano,
do Partido Socialista Italiano e do movimento sindical (CGIL), vindo a assumir
um papel preponderante na vaga de lutas estudantis de 1968 e de lutas operárias
de 1969 (culminando no Outono Quente)5. Ainda que os seus escritos sejam
inseparáveis do contexto e dos objetivos que acompanharam a sua escrita, a
opção deste ensaio é apenas a de assumir a sua proposta, de releitura da
história do desenvolvimento capitalista, como um ponto de partida
particularmente fecundo para uma análise que equacione a subjetividade da
classe trabalhadora enquanto o eixo central das transformações históricas do
modo de produção capitalista, atribuindo à racionalidade da gestão empresarial
um papel de recuperação e adaptação dos movimentos da mercadoria força de
trabalho.
3. A subjetividade do trabalho vivo (I): Maldito seja Junho!
Uma vez abordado o momento histórico de formação do modo de produção
capitalista e identificada a possibilidade da sua interpretação à luz dos
comportamentos, resistências e formas de organização e ação coletiva da classe
trabalhadora, torna-se imperioso retomar o tema central deste ensaio: Que forma
concreta assumem esses elementos constitutivos da classe trabalhadora em cada
momento histórico? Como se relacionam eles com o problema mais amplo da
formação de uma identidade coletiva de classe e com aquilo a que se
convencionou chamar consciência de classe?
É necessário, para isso, recuar no tempo, regressando a uma época em que um
espectro percorria a Europa, formando uma figura ameaçadora, porque
correspondente à coligação de todas as classes perigosas, na qual assumia uma
crescente centralidade a multidão de trabalhadores assalariados que, todas as
manhãs, se erguia para pôr em movimento tudo aquilo sem o qual a sociedade
capitalista não poderia funcionar6. A particularidade da mercadoria força de
trabalho residia, precisamente, na sua dupla natureza enquanto classe social
que era, simultaneamente, objeto de exploração e sujeito de insubordinação. Na
sua condição encontravam-se todos os elementos de dissolução das antigas formas
de sociedade, prévias ao processo de acumulação capitalista e de
industrialização.
Os que, em tempos, haviam sido marceneiros, ferreiros, tecelões ou vidreiros '
possuidores das suas ferramentas e portadores de uma identidade social
caracterizada pela sua independência e saber profissional ' transportavam para
o interior dos grandes estabelecimentos fabris a consciência aguda da
expropriação a que haviam sido submetidos e da irreparável perda que esta
representava.
Os que, em tempos, haviam sido servos ou camponeses submetidos a corveias
senhoriais, transportavam para as novas cidades industriais a consciência
igualitária da sua exploração e o horizonte milenarista de um futuro redentor.
Qualquer que fosse a sua proveniência, os operários partilhavam uma condição
comum. Pela arquitetura das suas casas como pelo aspeto do seu vestuário, pela
sua alimentação como pelas suas formas de sociabilidade, pela sua cultura como
pela sua política, a classe operária era, no interior de cada país, um corpo à
parte, um objeto estranho no contexto da sociedade burguesa. A sua experiência
quotidiana, de trabalho assalariado em fábricas e oficinas, confrontava-
a permanentemente com a dialética do modo de produção capitalista e
constrangia-a a organizar-se, para fazer valer coletivamente os seus interesses
face aos dos seus patrões.
Num livro recente, Luciano Canfora apresenta uma narrativa do doloroso parto da
democracia representativa, debruçando-se, inicialmente, sobre a antiguidade
clássica para dela saltar diretamente para o palco da Revolução Francesa
(Canfora, 2004). Relembrando-nos que o sufrágio universal e a representação
parlamentar foram, durante a primeira metade do século XIX, uma reivindicação
da esquerda radical da época, Canfora procurou nesse esforço filológico e
genealógico demarcar o conceito de democracia do lugar que ela veio a ocupar
no quadro do pensamento liberal, relembrando que durante o período épico da
modernidade ' grosso modo, o que vai da tomada da bastilha até à revolução de
1848 ' aquilo a que se chamava o partido democrático, a vasta amálgama do que
restava do jacobinismo com o que começava a ser o movimento comunista/
socialista, era considerada um perigo pelos principais estadistas da época e
uma ameaça aos fundamentos da ordem tradicional ' a propriedade, a família e o
Estado.
De um lado e de outro das barricadas parisienses de 1830, de 1832 ou de 1848,
pensava-se ' como acontecia, aliás, na Grã-Bretanha, no mesmo período,
relativamente ao movimento cartista ' que o sufrágio universal, ao fazer valer
o peso numérico das camadas mais pobres da população, e, desde logo, o
aguerrido proletariado que a revolução industrial concentrara nos grandes
centros urbanos, constituiria uma ameaça permanente para as classes abastadas
que detinham o governo das respetivas nações. Isso mesmo afirmava o respeitável
burguês Saint-Marc Girardin, em 1831, no Journal des debates:
Todo fabricante vive na sua fábrica como os plantadores coloniais no
meio de seus escravos, um contra uma centena, e a subversão de Lyon é
uma espécie de insurreição de São Domingos. (...) Os bárbaros que
ameaçam a sociedade não estão nem no Cáucaso nem nas estepes
tártaras; estão nos subúrbios das nossas cidades industriais. (...) A
classe média deve reconhecer claramente a natureza da situação e
conhecer o chão que pisa (citado em Hobsbawm, 1985: 270).
Assinalando o facto de a Constituição jacobina do Ano III (1793) ter sido a
primeira a prever o sufrágio universal masculino e de a revolução de fevereiro
de 1848 ter sido a primeira a permitir a sua concretização, Canfora convida-nos
a interpretar o processo histórico de consolidação das modernas formas da
política como o resultado de ásperas lutas sociais e ferozes conflitos armados,
um edifício erguido sobre um numeroso amontoado de cadáveres (Canfora, 2004:
93-129).
Apenas dois meses após a eleição da Assembleia Constituinte da II República,
relembre-se, já o proletariado parisiense se revoltava contra o hemiciclo a
quem cabia representar a nação francesa, naquela que Tocqueville viria a
considerar a maior insurreição da nossa história e, porventura, de todas as
outras (Canfora, 2004: 110). A insurreição parisiense de junho de 1848 foi
despoletada pela expulsão de todos os operários solteiros das Oficinais
Nacionais, estabelecimentos públicos inicialmente criados pelos elementos
socialistas do governo provisório para enfrentar o problema do desemprego entre
a classe operária. Precedida embora por movimentos insurrecionais operários em
Viena (1819) e Lyon (1831 e 1834), a insurreição de junho ultrapassou-os em
termos de escala e de impacto, desde logo por ser travada contra instituições
republicanas e não contra um regime absolutista.
Se aqui evocamos o momento em que a mercadoria força de trabalho aparece
enquanto classe operária na primeira cena dos acontecimentos políticos, é
precisamente porque ele coincide com a afirmação de um ponto de vista novo
sobre a história. Comentando o período situado entre 1848-1851, equivalente à
curta vida da II República francesa, Marx introduziu na análise da evolução
política a centralidade das classes sociais, assinalando a relação permanente
entre os seus interesses e as posições dos agrupamentos políticos, como pano de
fundo tanto dos grandes afrontamentos históricos, como dos pequenos debates
parlamentares (Marx, 1982). A sua afirmação original, de que a revolução e a
proclamação da república com base no sufrágio universal iniciavam um novo ciclo
histórico, atribuía à representação parlamentar uma natureza eminentemente
cénica, na qual todas as classes foram de repente arremessadas para o círculo
do poder político, obrigadas a abandonar os camarotes, a plateia e a galeria e
a vir representar, em pessoa, no palco revolucionário (Marx, 1982:44). A
novidade era, neste caso, o surgimento de uma classe com objetivos específicos
e parciais, contrários à ideia de universalidade e de interesse geral que
caracterizava a tradição jacobina francesa, como Marx escreveu na Nova Gazeta
Renana(a revista alemã que dirigia a partir de Paris), apenas uma semana após a
insurreição:
Nenhuma das numerosas revoluções da burguesia francesa desde 1789
fora um atentado contra a ordem, pois todas deixavam de pé a
dominação de classe, a escravidão dos operários, a ordem burguesa,
muito embora a forma política dessa escravidão mudasse. Junho tocou
nessa ordem. Maldito seja Junho! (Marx, 1982: 62).
Embora o movimento operário estivesse já organizado em França, e tivesse
inclusivamente assumido formas insurrecionais anteriores, é notório que Marx
encarou o tempo da II República como o da sua aprendizagem política coletiva e
momento decisivo de emancipação estratégica e organizativa relativamente à
tradição jacobina. Doravante, a centralidade dos trabalhadores no processo
produtivo deveria corresponder à sua organização em classe, tendo em vista a
tomada do poder político e a abolição do sistema capitalista. O problema da
identidade coletiva (extremamente vincada entre os operários parisienses que
participaram na insurreição de junho7) passava a cruzar-se com o da consciência
de classe, abrindo a porta àquilo a que o filósofo húngaro Lukács viria a
denominar o ponto de vista do proletariado, ou seja, o conjunto de ideias e
formulações que resultavam de uma praxiscoletiva e que permitiam à classe
trabalhadora compreender o seu lugar no seio do modo de produção capitalista,
formular um horizonte político próprio e construir uma cultura de resistência e
insubordinação relativamente ao conjunto da sociedade burguesa (Lukacs, 1960:
187-256).
4. A subjetividade do trabalho vivo (II): A tradição dos oprimidos
O impacto deste choque sobre a estrutura da sociedade capitalista é evidenciado
num estudo que Walter Benjamin dedicou a Paris no século XIX, onde é sublinhado
o processo de reorganização do tecido urbano da cidade conduzido pelo Barão
Haussman durante o II Império, em função de preocupações relacionadas com a
manutenção da ordem pública:
O verdadeiro objectivo dos trabalhos de Haussman era a prevenção
face à eventualidade de uma guerra civil. Desejava tornar para sempre
impossível a construção de barricadas nas ruas de Paris. Em função do
mesmo objectivo, Luís Filipe havia já introduzido os pavimentos de
madeira. Apesar disso, as barricadas haviam desempenhado um papel
decisivo durante a Revolução de Fevereiro de 1848. Engels havia-se
ocupado dos problemas tácticos dos combates de barricadas. Haussmann
procurou preveni-los de duas maneiras. A largura das ruas tornaria a
sua construção impossível e as novas vias conduziriam em linha recta
desde as casernas aos bairros operários. Os contemporâneos baptizaram
a sua obra de embelezamento estratégico' (Benjamin, 2003: 18).
A reorganização de uma cidade que havia já sido palco de inúmeras sublevações
confronta-nos com dois tipos de problemas. Por um lado, a organização do
proletariado enquanto classe constrangia as classes dominantes, vitoriosas em
1848 e cujo domínio se vira plenamente consolidado com o golpe bonapartista de
1851, a alterar as formas de uma cidade que servia de referência cultural e
política a todo o continente europeu, tornando-a plenamente funcional à
afirmação do monopólio da violência por parte do Estado. Por outro, era também
o desenvolvimento da produtividade do trabalho e, em geral, a consolidação e o
alargamento do domínio do capital sobre diversas esferas da vida social, sob o
braço protector do II Império, que permitia o lançamento de uma política de
obras públicas tão ambiciosa8. A repressão sobre as organizações operárias,
após a execução ou deportação dos mais ativos insurrectos de 1848, era o pano
de fundo desta recomposição, inserida numa dinâmica de desenvolvimento
industrial construída à custa dos salários operários.
Naturalmente que a classe propriamente dita não podia ser removida da produção
e, como tal, estava destinada a ressurgir no palco histórico de onde havia sido
provisoriamente removida. Como Benjamin afirma, no mesmo estudo, a barricada
foi ressuscitada pela Comuna, mais forte e melhor concebida do que alguma vez
se erguera (Benjamin, 2003: 19). Um historiador da Comuna ofereceu uma
descrição sugestiva destas fortalezas improvisadas, cuja altura se viu reduzida
de maneira a permitir uma resistência superior contra a artilharia, avançando
ainda alguns elementos preciosos para a compreensão da sua insuficiência:
Já não se trata dos redutos tradicionais, da altura de dois andares.
As barricadas improvisadas nas jornadas de Maio são feitas de pedras
da calçada, à altura de um homem. Por trás, têm por vezes um canhão
ou uma metralhadora. No meio, entalada entre duas pedras, a bandeira
vermelha, cor da vingança. Bastam vinte pessoas, por trás destes
redutos rudimentares, para deter regimentos inteiros. ( )
Mas os federados, sem direcção, sem conhecimento da guerra, limitaram-se a
defender os seus bairros, e alguns apenas a sua rua. Em vez de duzentas
barricadas estratégicas, solidárias, fáceis de defender por sete ou oito mil
homens, formaram- se centenas, impossíveis de guarnecer (Lissagaray, 1995:
241).
A reorganização urbana encetada por Haussman tinha, em todo o caso, outro tipo
de efeitos, que apontavam para a consolidação da ordem capitalista a um nível
mais banal e, talvez por isso mesmo, mais efetivo: o da vida quotidiana. Para
além de anteciparem profeticamente novas insurreições e de materializarem
espacialmente a divisão da cidade em territórios de classe, com a criação de
zonas operárias afastadas dos quarteirões do centro, onde imperava o comércio e
o consumo, as escolhas arquitetónicas de Haussman desenhavam já a colonização
dos tempos livres pelas atividades mercantis e os processos de subjetivação
capitalista característicos da modernidade:
A maior e mais profética obra de arte do século dezanove foi a
reconstrução de Paris pelo barão Haussmann. Durante as décadas de
cinquenta e sessenta, retalhou a cidade e fez tudo de novo. Reordenou
labirínticas ruas, fez romper largas avenidas, como se fossem rios,
por toda a cidade, acabou com os bairros de ofícios, separou as
residências dos locais de trabalho e os locais de trabalho dos
espaços de lazer, afastou os aglomerados urbanos dos lugares de
consumo e as classes umas das outras. Dizer que as avenidas
desenhadas por Haussmann foram feitas para facilitar a circulação de
tropas e para impedir a repetição das barricadas de 1848 não passa de
um truísmo. É menos óbvio, mas possivelmente mais certeiro, que
Haussmann tenha pensado em alterar um conjunto de bairros com vida
própria, de modo a transformá-los numa rede para a circulação de
mercadorias, um sistema de trânsito que pudesse servir o novo desejo
do capital em se movimentar e se mostrar. ( ) Paris era uma nova
cidade; e os parisienses eram também outros. A separação entre
trabalho, família e lazer, forçada pela nova topografia da cidade,
foi assimilada pelos indivíduos autónomos da nova Paris fragmentada '
porque, ao fim e ao cabo, toda a noção de individualismo' encerrava
um modernismo, uma função ligada às escolhas que se podiam fazer com
dinheiro para gastar e tempo livre (Marcus, 2000: 154-156).
A cidade convertia-se assim num espaço retalhado em dois tempos, uma vez que a
sua arquitetura, que antecipava já hábitos sociais que se tornariam dominantes
num futuro próximo, mantinha ainda as recordações do seu passado recente,
sublinhadas por Lissagaray no momento da derrota final dos communards:
Entrincheirados nas casas, os federados não cedem nem recuam. E,
graças a este sacrifício, a Bastilha disputará durante mais seis
horas os seus restos de barricadas e as suas casas desfeitas. Cada
pedra tem a sua história, naquele estuário da Revolução. Encostados
aos mesmos muros que os pais, os filhos dos combatentes de Junho de
1848 disputam as mesmas pedras da calçada (Lissagaray, 1995: 275-
276).
Outro texto de Benjamin, fragmentário e incompleto, permite-nos encarar a
experiência proletária do século XIX a uma outra luz. Embora não o refira
explicitamente, vários elementos presentes em Sobre o conceito de
históriaganham legibilidade quando confrontados com o estudo sobre Paris.
Procurando combater o culto do progresso instalado no movimento operário,
Benjamin recorreu à imagem de um quadro de Paul Klee para construir uma
alegoria histórica que nos transporta de novo para as descrições de Lissagaray,
relativamente à Paris derrotada pelas tropas de Versalhes. A imagem do
progresso é ali equivalente à de uma catástrofe:
(O anjo da história) Voltou o rosto para o passado. A cadeia de
factos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe
sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança
aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir,
a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do
paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão
forte que o anjo já as não consegue fechar. Este vendaval arrasta-
o imparavelmente para o futuro, a que ele volta costas, enquanto o
monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos
o progresso é este vendaval (Benjamin, 2010: 13-14).
Não será casual a referência, numa outra tese, a uma tradição dos oprimidos,
que cada época teria como tarefa arrancar da esfera do conformismo que se
prepara para a dominar (Benjamin, 2010: 11), através da identificação com a
figura dos vencidos e da interpretação do presente à luz das múltiplas
possibilidades encerradas pelo passado. Seria necessário, segundo Benjamin,
olhar para lá do aparente esplendor de maneira a identificar a barbárie que lhe
era subjacente:
Aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos integram o cortejo
triunfal que leva os senhores de hoje a passar por cima daqueles que
hoje mordem o pó. Os despojos, como é da praxe, são também levados no
cortejo. Dá-se-lhes geralmente o nome de património cultural. Eles
poderão contar, no materialista histórico, com um observador
distanciado, pois o que ele pode abarcar desse património cultural
provém, na sua globalidade, de uma tradição em que ele não pode
pensar sem ficar horrorizado. Porque ela deve a sua existência não
apenas ao esforço dos grandes génios que a criaram, mas também à
escravidão anónima dos seus contemporâneos. Não há documento de
cultura que não seja também documento de barbárie (Benjamin, 2010:
12).
Passar a história a contrapelo equivaleria por isso a uma apropriação da
memória, capaz de a tornar efetiva na luta dos herdeiros dos vencidos contra os
herdeiros dos vencedores. Mais uma vez, é a imagem da Comuna de Paris que uma
das suas teses convoca, quando equaciona a ameaça representada pelo avanço dos
fascismos no continente europeu:
Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo
"tal como ele foi". Significa apoderarmo-nos de uma
recordação quando ela surge como um clarão num momento de perigo. Ao
materialismo histórico interessa-lhe fixar uma imagem do passado tal
como ela surge, inesperadamente, ao sujeito histórico no momento do
perigo. ( ) Só terá o dom de atiçar no passado a centelha da
esperança aquele historiador que tiver apreendido isto: nem os mortos
estarão seguros se o inimigo vencer. E este inimigo nunca deixou de
vencer (Benjamin, 2010: 11).
Ao considerar que o sujeito do conhecimento histórico é a própria classe
lutadora e oprimida (Benjamin, 2010: 16), Benjamin aproxima-se, inscreve-se
numa sensibilidade partilhada também por Lukács e Tronti, que acentua o aspeto
subjetivo da experiência proletária como elemento constitutivo da formação de
uma consciência de classe. Também Tronti partira do proletariado como o sujeito
de uma forma particular de conhecimento, determinado pela sua posição
antagónica face ao capital, relativamente ao qual seria necessário elaborar um
novo tipo de ciência:
Para quem tem medo, será difícil admiti-lo: mas uma nova grande
estação de descobertas teóricas só é possível hoje do ponto de vista
operário. A possibilidade, a capacidade de síntese, ficou
inteiramente em mãos operárias. Por uma razão fácil de compreender.
Porque hoje a síntese só pode ser unilateral, só pode ser,
conscientemente, ciência de classe, de uma classe. Na base do
capitalismo, o todo só pode ser compreendido pela parte. O
conhecimento está ligado à luta. Conhece verdadeiramente quem
verdadeiramente odeia (Tronti, 1976: 10).
A figura aqui delineada ' simultaneamente um sujeito atuante e um intérprete
dessa ação ' definir-se-ia, então, pela sua capacidade de ler o conjunto das
relações sociais na sua dimensão histórica, de encarar o modo de produção
capitalista como um objeto estranho e de identificar ' no seio da sucessão de
acontecimentos própria de uma conceção de tempo vazio e homogéneo ' aqueles
momentos de afrontamento que deram lugar ao presente. A sua emancipação
relativamente à dominação capitalista dependeria tanto da sua capacidade de
mobilização coletiva no contexto do conflito social, como da sua capacidade de
elaborar uma narrativa autónoma da sua própria história.
Conclusão
Uma vez que o processo de afirmação da mais-valia relativa ' enquanto forma
historicamente consolidada de exploração da força de trabalho e de subsunção da
classe trabalhadora no interior do capital ' coincidiu historicamente com o
desenvolvimento de formas de representação e participação política capazes de
integrar os partidos operários e as organizações sindicais no interior do
Estado moderno, tanto a perspetiva crítica aqui abordada, como a sensibilidade
que lhe deu forma, ocupam um lugar marginal e, por vezes, impercetível na
história do movimento operário. Elas emergem e ganham uma nova centralidade,
porém, quando os momentos de radicalização do conflito levam a classe a
transbordar os canais institucionais, as mediações estabelecidas entre o seu
interesse parcial e o funcionamento global do modo de produção capitalista.
Isso explicará, porventura, por que razão as posições políticas que podemos
designar, por facilidade de expressão, como o outro movimento operário, se
viram soterradas juntamente com os vários movimentos insurrecionais que
atravessaram o continente europeu no período entre as duas guerras mundiais,
para virem novamente ao de cima, em toda a sua força, no contexto das lutas
sociais das décadas de Sessenta e Setenta9. Fora do campo de ação constituído
pela contraposição entre a subjetividade do trabalho vivo e a objetividade das
relações de produção capitalistas, semelhantes posições políticas assumem um
interesse sobretudo filológico. Se cruzarmos os ciclos da conflituosidade
social com os ciclos do pensamento crítico, porém, torna-se possível
estabelecer o parentesco aqui sugerido e identificar, numa multiplicidade de
abordagens teóricas desenvolvidas em momentos distintos, um fio vermelho que a
todas une, ligando os movimentos de luta da classe trabalhadora aos
desenvolvimentos que, ao nível da crítica da economia política, os procuram
interpretar.
E é, precisamente, a esse nexo que podemos regressar, quando confrontados com a
necessidade de cartografar os conflitos sociais do presente, retomando a
hipótese trontiana de uma história operária do capital. A centralidade do
simbólico e do imaterial que caracteriza o nosso tempo pode, então, ser
encarada como o ponto mais alto do desenvolvimento capitalista, o momento em
que o trabalho abstrato ' ou seja, a lei do valor no comando do processo
produtivo ' se tornou a forma hegemónica do trabalho vivo, num tempo longo
assinalado por sucessivas recomposições tecnológicas que ampliaram a potência
do capital, promovendo a flexibilidade e a mobilidade da classe
trabalhadora, esvaziando de qualquer qualidade concreta a atividade produtiva e
tornando-a, cada vez mais, uma função subordinada do capital, apropriando-se de
novos domínios da vida social, aumentando as capacidades produtivas do trabalho
e acentuando a sua exploração, dissolvendo antigas identidades
territorializadas em formas híbridas e multiplicando as formas atípicas de
trabalho. A necessidade de recompor a força de trabalho numa figura produtiva
capaz de valorizar uma massa de capital altamente valorizada constrangeu a
iniciativa capitalista a mundializar a produção e a investir sobre domínios
anteriormente pertencentes ao campo da reprodução da força de trabalho, como o
campo dos lazeres, da cultura, do entretenimento ou da saúde, subordinando-os
ao domínio da lei do valor10. É neste processo que a subsunção do trabalho
dentro do capital assume a mais ambiciosa das investidas, no sentido de tornar
indistintas as relações sociais de produção e as relações sociais tout court.
O reverso deste processo, que converte o conjunto do espaço metropolitano numa
fábrica social, é o de construir as condições materiais para novas formas de
organização do trabalho vivo. O novo sujeito produtivo, composto pelo conjunto
da cooperação social necessária à valorização capitalista, é também um sujeito
de desejos cada vez mais incompatíveis com o processo de valorização, capaz de
articular capacidades inventivas e criativas no seu processo de organização e
de agregação que ultrapassam largamente a iniciativa capitalista de
reestruturação. Tal como os boulevardsde Haussman forçaram a reinvenção das
barricadas no sentido de as tornar efetivas face à artilharia móvel, sem
contudo as conseguir erradicar, é possível que velhas formas de luta proletária
se vejam ressuscitadas em novos moldes, adaptadas às novas condições do
terreno. A dimensão cultural e intelectual da experiência proletária converteu-
se num elemento decisivo do conflito social, no campo em que se joga a própria
ontologia do trabalho vivo.
O que aqui se procura sugerir, à luz das considerações prévias, é que os
trabalhadores assalariados, enquanto classe dotada de um ponto de vista parcial
e específico relativamente ao modo de produção capitalista, se revelam capazes
de imaginar novas modalidades de organização social e dar-lhes forma através da
sua ação coletiva. E que, pelo contrário, enquanto indivíduos submersos nas
formas de consciência reificada que são próprias da sua condição subalterna,
fragmentados e dispersos pelos diferentes momentos do ciclo da reprodução
alargada do capital, se vêm incapazes de ultrapassar a sua existência enquanto
mercadoria força de trabalho e parte variável do capital. O primeiro caso
integra a história operária do capital, ao passo que o segundo não terá
dificuldades em figurar numa história capitalista do movimento operário. Não
será porventura casual o facto de aquele poder vir a merecer um capítulo
inteiro ao passo que este último dificilmente passará de uma nota de rodapé. No
que respeita a histórias contadas de um e de outro ponto de vista, é razoável
afirmar que a tradição dos oprimidos se encontra ainda nos primeiros volumes e
que este vendaval a que chamamos progresso não deixará tão cedo de acumular
ruínas sobre ruínas.
Notas
1 Doutorado em História pela Universidade Nova de Lisboa e investigador do
Instituto de História Contemporânea ' Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa (FCSH- UNL) (Lisboa, Portugal). Dedica-se ao
estudo de temas relacionados com a Revolução Portuguesa de 1974-75 e a História
Social e Económica contemporânea. Endereço de correspondência: Instituto de
História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa, Av. de Berna, 26 C, Lisboa, Portugal. E-mail:
ricardo.noronha@gmail.com
2 Veja-se as descrições e análises disponíveis em Braudel (1992) e Wallerstein
(1990).
3 A este respeito veja-se, por exemplo, Thompson (2008, 2004: 39-176).
4 Para uma síntese de vários estudos e trabalhados dedicados a este tema ver,
por exemplo, Jappe (2006:23-63).
5 Uma descrição exaustiva da história política e social italiana neste período
pode ser encontrada em Ballestrini e Moroni (2003).
6 Uma abordagem do conceito de classes perigosas pode ser encontrada em
Chevalier (1978).
7 Cf. Löwy (2002).
8 Veja-se, a propósito do desenvolvimento do capital financeiro em França
durante o II Império e o seu impacto sobre as reflexões de Marx na elaboração
dos Grundrisse(Bologna et al., 1974: 16-25).
9 A expressão outro movimento operário, da qual faço um uso livre neste
ensaio, foi avançada para descrever a história da conflituosidade social na
Alemanha, desde a unificação nacional até ao período do pós-guerra (Roth,
1977).
10 Veja-se, a este respeito, Foucault (2010).