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EuPTHUAp0872-34192014000300005

EuPTHUAp0872-34192014000300005

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaApplied Social Sciences
ISSN0872-3419
ano2014
Issue0003
Article number00005

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Teatro do oprimido como ferramenta de inclusão social no bairro Horta da Areia em Faro ARTIGOS Teatro do oprimido como ferramenta de inclusão social no bairro Horta da Areia em Faro

Introdução O teatro do oprimido (T.O.) surgiu no bairro Horta da Areia em abril de 2010 como atividade dinamizada pelo centro comunitário do bairro. A atividade desenvolveu- se no âmbito de um projeto coordenado pelo Núcleo de Faro da Cruz Vermelha Portuguesa, mas, pelo envolvimento positivo dos jovens na atividade, esta acabou por ter continuidade pós-projeto.

O Centro Comunitário Horta da Areia tenta potenciar o desenvolvimento dos seus moradores, agindo como um mediador institucional e intervindo a diversos níveis, como a saúde e a educação. Atividades como o T.O., direcionado especialmente para crianças e jovens, são importantes para intervir junto das faixas etárias mais novas. No bairro, o T.O. possibilitou novas experiências através de apresentações teatrais, contribuindo também para a coesão grupal.

Criou novas pontes entre os moradores e a cidade exterior e contribuiu para a aquisição de novas competências nos jovens do bairro.

O bairro foi montado na década de 1970. Pretendia-se que fosse temporário, com casas pré-fabricadas, mas persiste até hoje na periferia da cidade, ao lado de uma zona industrial. O bairro tem um forte estigma social, casos de pobreza, problemas habitacionais e falta de segurança, aspetos que contribuíram para a exclusão social dos seus habitantes.

No âmbito de uma dissertação de mestrado, cujo principal objetivo foi compreender a importância do T.O. para os jovens do bairro Horta da Areia, estudou-se um grupo de oito jovens entre os 13 e os 17 anos de idade, que participaram durante dois anos na atividade. Pretendia-se conhecer as suas perceções face à sua vida no bairro, explorando depois de que forma o T.O. veio influenciar a vida dos elementos do grupo. Em última instância, fizeram-se algumas reflexões sobre se o T.O. lhes poderá proporcionar ferramentas que, no futuro, lhes permitam lidar com os constrangimentos de viver no bairro, assim como qual a importância de alargar a atividade aos adultos.

Os resultados mostraram a existência de alguns elementos importantes relacionados com o território e a forma como os jovens o percecionam. As transformações que o T.O. poderá trazer ao bairro serão mensuráveis a longo prazo, mas percebeu-se que a metodologia trouxe novas ferramentas que poderão ajudar a gerir os problemas do bairro.

1. Fundamentação teórica 1.1. Teatro do Oprimido O T.O. é uma metodologia com um forte compromisso político e educacional. Cria uma conexão com a realidade social, permitindo uma análise dos problemas e das injustiças sociais, ensaiando soluções num cenário protegido. Pensa-se que a metodologia poderá ter acrescentado novos elementos de conhecimento sobre os habitantes do bairro e trouxe novas possibilidades para as pessoas o vislumbrarem numa perspetiva diferente.

Tendo sido criado por Augusto Boal, o T.O. ganhou forma durante os anos 60 e 70 do século XX, em países da América do Sul (Brasil, Argentina e Peru). Na década de 80 foi trazido para a Europa. Boal viveu e trabalhou em diferentes contextos que o levaram a utilizar o teatro como uma ferramenta, reinventando as suas técnicas e adaptando-o às necessidades das populações locais. Permitiu-lhe lidar, na América Latina, com problemas coletivos das comunidades, a maioria deles originados por sistemas políticos autoritários e totalistas. Na Europa adaptou a ferramenta para trabalhar opressões individuais causadas por um estilo de vida moderno (Boal, 1976, 1997, 1998, 2004a, 2004b).

Portugal foi justamente o primeiro país da Europa que Boal visitou antes de partir para França e onde viveu e trabalhou durante dois anos (Barbosa, 2011).

O trabalho desenvolvido com o T.O. tem vindo a ganhar expressão no país nas últimas décadas. Hoje grupos de norte a sul do país, alguns deles referenciados em estudos recentes (Barbosa, 2011; Lopes, 2014), cujo foco para intervenção comunitária é o T.O..

Numa visita de Bárbara Santos1 a Portugal, esta revelou-se satisfeita pelo trabalho sério desenvolvido por alguns grupos, direcionado para o oprimido e mantendo a base comunitária que está na génese do mesmo (Santos, 2011).

Para Boal o teatro, como uma forma de arte, é político e uma forma de mostrar um mundo em transformação (Boal, 1977). Permite ensaiar uma revolução (Boal, 1977), sendo uma arma para resistir a sistemas opressivos e um instrumento para transformar a realidade social (Picher, 2007, Schaedler, 2010). É uma resposta contra- hegemónica contra um sistema que conduz as pessoas ao conformismo e à aceitação da desigualdade social e da injustiça (Boal, 2009).

Boal (1977) descreve-o como uma ferramenta para a liberdade que pode ser usada por pessoas, pois permite um outro olhar sobre o quotidiano (Boal, 2004b).

Permite a práxis (reflexão-ação), conforme descrita por Paulo Freire (Freire, 2005; Bardaro, 2006). O T.O. baseia-se nas obras de Paulo Freire e é adaptado para o palco por Augusto Boal. Ambos reconhecem a importância de conscientização e prática como forma de pôr fim à injustiça social. Práxis permite a transformação social (Freire, 2000; Mayo, 2008) e T.O. gera práxis.

De acordo com Freire, algumas pessoas vivem numa cultura do silêncio, uma forma de opressão dirigida para manter as pessoas à margem da sociedade e podem libertar-se por um processo de conscientização. A conscientização parte da realidade e condições de vida, pela qual se pode construir uma práxis libertadora que permita sair da cultura do silêncio. É importante notar que este processo de conscientização inclui reflexão e prática. A práxis surge pelo diálogo, a forma de traçar um caminho libertador e educativo (Freire, 2000).

Com a criação do T.O., que pretendia, entre outras coisas, devolver o teatro ao povo, Boal permitiu que a ferramenta fosse usada não apenas por uma elite de atores profissionais, mas também por cidadãos comuns (Boal, 1977, 2009). Isso foi possível pela aceitação de que o teatro é uma recriação da realidade social, o que significa que toda a gente é um ator representando papéis diferentes na sua vida diária. No teatro as realidades não são estáticas, mas dinâmicas, o que permite que sejam alteradas e transformadas. Os que assistem a uma peça são convidados a refletir e a agir sobre o problema apresentado. Esta reflexão e ação, como práxis, é importante para superar a dualidade entre opressores e oprimidos de uma forma dialética, não para mudar cada indivíduo, mas para transformar toda a sociedade (Freire, 2000).

Picher (2007) argumenta que a força do T.O. está no facto de permitir a organização democrática pela democracia. O T.O. é um contributo para a descentralização dos sistemas hegemónicos (Snyder-Young, 2011), permitindo que o público e os atores aprendem uns com os outros e entendam os possíveis efeitos de suas ações em cenários específicos. Boal defende que o T.O. não é em si uma revolução, mas permite ensaiar a revolução (Boal, 1977). Assim, as pessoas podem ir além da sua realidade (Sullivan e Lloyd, 2006) pela oportunidade de agir para mudar a sua vida.

1.2. Sobre o conceito de comunidade O termo comunidade refere-se a uma dupla perspetiva. Por um lado, fala-se sobre um território. Por outro lado, implica elementos menos palpáveis, assentes nas características e perceções da população face ao território.

Wildemeersch e Vandenabeele (2007) descrevem a comunidade como um lugar onde o conflito é comum. Para este fim, Mouffe opões "política" a "políticas". Por um lado, apresenta uma visão consensual de comunidade, uma que procure "reducepolitical problems to technical issues, which can be resolved by an expert" (Wildemeersch e Vandenabeele, 2007: 26). Por outro lado, a política está associada a insegurança e risco:

" People tend to look for protection in their own communities and wish to reinforce the securities offered by those one likes. The world tends to be divided into 'them' and 'us', whereby the 'us' creates a shelter against insecurities and 'the other' can be identified as the reason for these insecurities ." (Wildemeersch e Vandenabeele, 2007: 27-28).

Comunidade pode também referir-se a um contexto democrático decorrente do seu ambiente. Segundo Williams (1989:76), a noção de comunidade

"express particular kinds of social relations (...) the warmly persuasive word to describe an existing set of relationship, or the warmly persuasive word to describe an alternative set of relationship".

Deste ponto de vista, a comunidade é um espaço público onde o debate toma o seu lugar. A comunidade não é homogénea; pelo contrário é um espaço heterogéneo onde o conflito é parte fundamental do quotidiano. Também conduz a um entendimento político de cidadania (Biesta, 2011). Portanto, na arena pública, o debate, a contradição e a democracia deliberativa devem ser a norma.

Por fim, a comunidade não é um sítio que possa oferecer proteção do exterior, pois não exterior por si. Na realidade, o "exterior" é dentro da comunidade.

É o contexto no qual devemos recuperar a participação como forma de gerir conflitos no espaço heterogéneo.

Como Geertz refere falando dos rituais funerários em Java,

" In most societies, where change is a characteristic rather than an abnormal occurrence, we shall expect to find more or less radical discontinuities between the two (social and cultural aspects). I would argue that it is in these very discontinuities that we shall find some of the primary driving forces in change ." (Geertz, 1973: 144)

Podemos afirmar que a comunidade é um espaço para mudança, um espaço dinâmico onde tensões e conflito são usuais. Neste caso o conflito existe em situações externas e internas. O T.O. ajuda os jovens a lidar com o sentimento de marginalização face aos outros habitantes da cidade de Faro e também com as contradições que cada cultura tem em si.

2. Aspetos metodológicos De março 2011 a abril 2012 utilizaram-se diferentes procedimentos metodológicos. Como referido anteriormente, pretendia-se com o estudo compreender a importância do T.O. para o grupo de jovens participantes na atividade, assim como conhecer as suas opiniões sobre o bairro.

O estudo teve um caráter etnográfico. O investigador integrou o contexto de estudo (Altheide e Johnson, 1998) participando no grupo de teatro como ator e escrevendo sobre a rotina do grupo (Fetterman, 1997).

A observação participante foi importante numa primeira fase do estudo. Permitiu o início da interação com o grupo, ganhando confiança dos seus elementos, e a recolha de dados verbais e não-verbais (Mason, 1996; Patton, 1980; Flick, 2004).

Experiências anteriores (Lucio-Villegas, 1993) indicam que as funções do investigador externo se materializam no mínimo em quatro questões: i) como formador ao longo de todo o processo teatral; ii) apoiando na sistematização de reflexões e descobertas que derivam do processo; iii) ajudando na eleição e na tomada de decisões; iv) na passagem da esfera pública à privada. O investigador externo converte-se em mais um elemento do grupo porque o mesmo o assume como tal. Isto não quer dizer que se converta num nativo - seguindo a terminologia antropológica -, mas começa a manter uma relação diferente, em que os afetos pessoais têm um sentido e um lugar.

Neste contexto, a presença do investigador -ator permitiu ao grupo de jovens ter nos ensaios e em palco uma referência adulta com experiência em representação, o que foi importante para a sua autoestima, troca de experiências e aprendizagem. O contacto do investigador com os jovens criou momentos de reflexão, nomeadamente nas entrevistas e discussão dos dados, que permitiram uma análise e questionamento por parte dos jovens sobre a sua experiência com o T.O.

O investigador assumiu o papel de membro ativo (Adler e Adler, 1998). Isto implicou o envolvimento em atividades centrais, assumindo responsabilidades que contribuíram para o desenvolvimento do grupo, sem intervenção assumida na tomada de decisões. Se inicialmente o papel do investigador no grupo não era claro para o mesmo, nem para o grupo, no desenrolar do processo de investigação as relações tornaram-se naturais e o investigador passou a ser e sentir-se como um elemento do grupo.

A segunda fase do estudo baseou-se em entrevistas semiestruturadas, como definidas por Patton (1980). Isto possibilitou a recolha de nova informação, mas também a confirmação e clarificação de alguns dados recolhidos antes. Os entrevistados foram quatro jovens participantes da oficina de T.O. e três técnicos do centro comunitário. O critério para a escolha dos entrevistados baseou-se na diversidade de opinião que se pensou que poderiam trazer para o estudo. Mais dados sobre os entrevistados e sua relação com o bairro, constam do quadro que se segue.

O material resultante das duas fases foi organizado tematicamente (Ghiglione e Matalon, 1993) em categorias e subcategorias que incluíam não o significado preciso de específicos fragmentos de texto, mas também partes mais abrangentes de texto, para que não se perdesse o contexto. Com a riqueza e complexidade do material criaram-se e analisaram-se categorias específicas como: o bairro Horta da Areia, o grupo de participantes, o centro comunitário e o T.O. em ação no bairro.

Depois de organizar os dados foi importante recorrer ao critério da triangulação (Reichardt, 1986) para verificar a validade do estudo. Foram ainda discutidos os resultados com os participantes no estudo e esta discussão final foi tida em conta ao delinear as conclusões finais.

3. Exclusão Social no bairro Horta da Areia 3.1. O bairro e a sua população O bairro Horta da Areia, situado na cidade de Faro, surgiu como bairro de emergência, construído na década de 1970. Foi construído para receber os portugueses forçados a retornar após a independência das colónias portuguesas em África. Foi concebido como temporário, construído na periferia da cidade junto a uma zona industrial, mas prevalece até à atualidade. As habitações foram entretanto ocupadas por famílias ciganas e, com a passagem do tempo, as condições de vida das famílias foram- se deteriorando pela falta de manutenção das casas e pelo aumento dos agregados. Hoje em dia existem no bairro 230 habitantes, distribuídos por 65 agregados.

As fontes de rendimento das famílias assentam em negócios de subsistência diária, Rendimento Social de Inserção (RSI) e, com menos peso, alguns contratos de trabalho por conta de outrem. A sazonalidade no trabalho é uma realidade no bairro, o que cria instabilidade financeira nas famílias.

Os preconceitos contra os ciganos são uma das razões que tem levado à exclusão social do bairro. Os jovens sentem essa exclusão, como podemos ver no relato que se segue:

"Pensam que o bairro é muito mau e às vezes me chamaram cigana. Na escola. E sinto-me super mal, não gosto. Eu nem sequer sou cigana!..." (Entrevista 5, rapariga não cigana)

Existe uma imagem social negativa do bairro, assim como problemas de segurança.

Isto deve-se à falta de policiamento no bairro, o que o torna perigoso até mesmo para os seus habitantes. Além disso, a área está separada por uma linha de caminho de ferro, numa espécie de fronteira visível e simbólica entre o centro e a periferia da cidade.

O bairro tem sua própria dinâmica, lideranças e relações complexas entre as famílias, com regras e modo particular de viver. Os conflitos na Horta da Areia estão relacionados com questões étnicas, como o casamento, que cria problemas entre as famílias. O alojamento, por não ter sido planeado mas aleatório, também é uma das causas de conflitos, que obriga as famílias a uma convivência diária não desejada.

O bairro tem também aspetos positivos apontados pelos entrevistados. Foi referida a segurança para as crianças durante o dia, pois podem brincar e circular em segurança nas ruas, que a rede social criada por vizinhos e familiares permite que estejam sempre vigiados. Durante o dia, este é um lugar seguro para ser visitado e os moradores gostam de receber pessoas de fora, contrariando a ideia geral de ser um lugar perigoso. Os habitantes gostam de mostrar o bairro e as suas casas, o seu território: uma área repleta de símbolos, memórias e significados.

Os dados recolhidos revelaram que existem diferentes e contraditórios sentimentos sobre a Horta da Areia. As entrevistas mostraram que os jovens gostariam de ter melhores condições de vida ou de viver noutro lugar.

"Não gosto nada (do bairro). Por causa das drogas e da lixeira que também, é muito mau 'tar aqui e eu como sou muito asseada não gosto.

Gosto das coisas muito limpas e não gosto muito tipo de gritaria e isso. Não é muito o meu género de 'tar com as pessoas. E também aqui é muito mau por causa das drogas, por causa das crianças apanharem com o fumo das drogas e isso e verem também, é muito mau." (Entrevista 5, rapariga não cigana)

Mostraram ainda que identificam o bairro como espaço onde vivem e partilham memórias e lugares, o que parece resultar num sentimento de pertença e identificação e numa revolta face a comentários preconceituosos.

"E dizem que o nosso bairro é uma porcaria e isso. E eu fico bué triste, não gosto. É um bocadinho difícil... Dá-me ódio." (Entrevista 5, rapariga não cigana)

Tendo que enfrentar o estigma social, os jovens encontraram as suas próprias estratégias para lidar com a exclusão social na sua vida diária. Em diversas situações, à procura de trabalho ou na escola, sentem-se obrigados a mentir sobre o lugar onde vivem.

"Digo que sou d'Olhão. (Ri-se). Que sou d'outra coisa." (Entrevista 6, rapaz cigano)

O estigma social sobre o bairro está muito ligado a preconceitos contra as famílias ciganas, que representam um número significativo de habitantes (não existem dados precisos sobre o número de agregados ciganos, mas calcula-se que represente cerca de 50% da população do bairro). Isto tem uma forte influência na ligação entre o bairro e a cidade. Pelas suas particularidades culturais, os dados recolhidos mostraram que todas as famílias são, de alguma forma, influenciadas pela etnicidade. O casamento, a centralidade da família e o sentimento de impotência face às regras impostas pela lei cigana, são alguns dos temas discutidos pelos jovens entrevistados e que influenciam a maneira como se relacionam entre si e com os outros.

"Eu não posso trazer amigos para minha casa... Eu não posso conviver com amigos ou namoradas... aqueles que não são ciganos. E eles (a família) contam-me para não me meter com portuguesas." (Entrevista 6, rapaz cigano)

As raparigas ciganas do bairro parecem sentir uma dupla pressão que condiciona as suas vidas em alguns aspetos, pela preocupação de manter uma boa imagem aos olhos do outro. A questão do género impõe-lhes uma preocupação acrescida no relacionamento com os outros, pela preservação da sua boa imagem.

"... aqui os nossos ciganos são muito conservadores. ... veem o casamento e o casamento... é próprio dos ciganos, pelo menos dos daqui, muita crítica, muita pressão e não é das famílias... também da família com quem se vai casar que espera determinados comportamentos." (Entrevista 1, técnica do Centro Comunitário)

Em relação à lei cigana, parece haver um sentido de inevitabilidade que os leva a cumprir muito do que é imposto pelas famílias:

"A gente tem que respeitar. Se não respeitar leva com eles." (Entrevista 6, rapaz cigano,13 anos ) "(...) eu não gosto... das regras todas! Todas mesmo." (Entrevista 7, rapariga, identidade mista, 13 anos )

Os conflitos entre as famílias parecem perturbar o seu sentido de comunidade.

Todos eles partilham o mesmo território e aspetos simbólicos ligados ao mesmo, mas não parecem ter um sentido de cooperação e pertença comum.

"É uma comunidade e não é uma comunidade. também subgrupos, subgrupos de tendeiros, ciganos, cabo-verdianos... mas todos eles se identificam como pertencentes ao bairro da Horta da Areia, no entanto todos eles reivindicam o seu espaço, a sua casa..." (Entrevista 2, técnico do centro comunitário)

Em suma, os dados recolhidos mostram que sentimentos diferentes e contraditórios sobre o bairro Horta da Areia. As pessoas entrevistadas gostariam de ter melhores condições de vida ou de viver num outro sítio. Por outro lado, parecem identificar-se com o bairro enquanto espaço onde vivem e partilham memórias e lugares. Não gostam do preconceito que existe face ao bairro e muitas vezes não concordam com a imagem negativa que se faz do mesmo.

3.2. A resposta de intervenção O centro comunitário foi, até à data, a única resposta visível de intervenção.

Foi construído em 1998 e conta com uma equipa de três técnicos que trabalham desde cerca de dez anos até à data. Este facto tem sido importante para a relação com os habitantes. Permitiu a criação de relações de confiança entre as partes.

O centro comunitário tenta providenciar serviços de bem-estar social. Apoiam os habitantes a nível das suas necessidades básicas de saúde e providenciam apoio em assuntos burocráticos. A intervenção realizada no bairro parece estar dotada de um caráter mais assistencialista, baseado sobretudo na providência de serviços. O estudo revelou uma carência ao nível do trabalho educativo feito com a população no sentido de trabalhar as suas relações e desconstruir os seus direitos e deveres enquanto cidadãos, bem como a importância e o peso que podem ter enquanto coletivo. Isto deve-se às limitações a nível de recursos humanos e estruturais e também a estratégias de intervenção.

"Falta muita consciência política... uma falta de consciencialização da sua classe... não organização... não inclusive solidariedade entre eles... as pessoas lutam por elas próprias, para as casinhas delas." (Entrevista 2, técnico do centro comunitário)

O bairro está excluído socialmente e, por isso, fechado em si mesmo, o que ajuda também a perceber a necessidade sentida pelos técnicos pela emergência de outro tipo de ferramentas que permitam trabalhar com a população a um outro nível, como foi o caso do T.O.

O T.O. veio ajudar a colmatar algumas lacunas sentidas pelos técnicos do centro comunitário do Bairro Horta da Areia a nível de intervenção, nomeadamente com os jovens.

"... dos 13 para cima é a nossa grande falha... porque não temos nem recursos humanos nem espaço... o que tentamos fazer é encaminhá- los... sendo que eles vêm aqui tentar encontrar... está, as parcerias, quem possa colmatar essas nossas falhas, em relação aos jovens, e encontrámos isso no teatro." (Entrevista 1, técnico do centro comunitário)

Com a aplicação da ferramenta, surgiu uma forma de trabalhar com os jovens no centro comunitário, aspetos importantes para a interação. É um espaço de tempo em que os jovens podem interagir e trabalhar juntos. Os participantes na atividade reconheceram que aprenderam a confiar no grupo e que passam momentos engraçados. Para os técnicos, é uma atividade que contribui para criar uma ligação importante entre os jovens.

" alguns que de outra forma, não estou a ver a conviver que isso é uma coisa muito boa e muito interessante! Por acaso fiquei admirado em ver quem estava a participar e com era composto o grupo." (Entrevista 1, técnico do centro comunitário) "Aprendi a representar, 'tar com os amigos, a fazer coisas em grupo... agora 'tou muito mais confortável. E posso pensar que os meus amigos até podem me ajudar a representar aquele que é o meu papel." (Entrevista 5, rapariga não cigana).

Para os jovens, a atividade também permitiu uma outra forma de lidar com as emoções e problemas. Os participantes vêm no T.O. uma forma de mostrar os seus interesses e preocupações, permitindo-lhes trabalhar a um nível diferente.

Entendem a atividade como um veículo para falar e mostrar os seus problemas preocupações.

"É uma forma de mostrar a realidade... Eu gosto de representar assim." (Entrevista 4, Rapariga cigana) "... o que acho forte para eles é sentir o poder de apresentar: 'Isto são os meus problemas, é assim que eu sou e vivo'... Com dignidade...

é perguntar ao público: 'que tu farias no meu lugar?'." (Entrevista 2, técnico do centro comunitário)

O T.O. veio criar um espaço de ligação entre a Horta da Areia e a restante cidade. Peças teatrais possibilitaram que os jovens mostrassem o seu talento e experiências em contextos exteriores ao bairro. Peritos do centro comunitário acreditam que a metodologia ajudou a potenciar os aspetos positivos da população do bairro. Para os jovens envolvidos, trouxe um sentimento de reconhecimento e protagonismo importante, que ajuda a consolidar a sua autoestima.

"Quando desci a Ana2 chegou ao de mim e disse: 'Uma senhora disse- me que gostou muito da nossa peça". Nunca tinha ouvido elogiarem alguma coisa que eu faço'." (Excerto do diário de campo, dia 41)

Discussão e Conclusões No bairro Horta da Areia o realojamento foi arquivado, o que manteve os moradores que têm vivido ao longo de trinta anos, em condições precárias.

Acreditamos que o estigma social do bairro, principalmente devido ao preconceito, interfere na construção de pontes sociais, conforme definido pelo Rubin e Rubin (2000). O conceito de pontes sociais, como descrito pelos autores, refere-se à ligação entre as pessoas de uma comunidade com pessoas ou grupos fora dela. Acreditamos que atividades como o T.O. podem contribuir para a construção de pontes sociais no bairro. O contacto com a população exterior permite, por sua vez, a desconstrução de preconceitos.

Como defendido por Boal, esta metodologia oferece uma oportunidade para transformar a realidade social (Picher, 2007; Schaedler, 2010). Cria as condições para a conscientização e práxis. Na Horta da Areia permitiu que os jovens participantes pudessem falar, refletir e agir sobre os seus problemas e preocupações. Pensa-se que se a atividade pudesse abranger a população adulta do bairro, esta poderia trazer maiores resultados para a comunidade. O T.O.

pode ajudar a construir o sentido de comunidade que falta na Horta da Areia.

Vimos que o bairro, como território, tem um significado para quem vive. O território está cheio de símbolos e significados para quem o compartilha numa base diária (Kurantowicz, 2008). Neste bairro específico foram identificados vários elementos presentes numa comunidade: problemas comuns, espaços compartilhados e símbolos, sentimento de pertença e até mesmo conflitos. O conflito, como apontado por Wiesenfeld (1996), é necessário para a comunidade e resulta muitas vezes da diversidade e multidimensionalidade dos seus membros (Mayo, 2000).

Pensa-se que o sentido de comunidade e de cooperação entre as famílias em falta no Bairro Horta da Areia é algo que o T.O. pode ajudar a reconstruir. Nas suas obras, Boal (1976, 1997, 1998, 2004a e 2004b) dá-nos exemplos de como a ferramenta pode ser usada para satisfazer as necessidades coletivas das populações locais, usado como uma arma para lutar pelos direitos civis. É um exemplo da representação das ideias de Paulo Freire sobre a importância do diálogo, da conscientização e da prática para alcançar a transformação social.

No bairro Horta da Areia, vimos que a atividade pode contribuir para a construção de relacionamentos baseados numa relação de confiança comum e compartilhada. Os jovens participantes da atividade serão adultos no futuro e talvez o T.O. possa contribuir para que cresçam com um maior sentido de cooperação e união, a fim de lutar por melhores condições de vida das famílias do bairro.

No que se refere à etnicidade, parece haver necessidade de preservação étnica por parte das famílias, o que gera pressão familiar sobre os jovens ciganos do grupo. Isto poderá dever-se à tensão que sentem enquanto grupo minoritário no todo da sociedade atual (Cortesão, Stoer, Casa-Nova e Trindade, 2005). Isto parece justificar alguns dos aspetos encontrados, referidos também noutros estudos realizados em Portugal. Foram mencionadas as limitações sentidas por alguns jovens ciganos do grupo na relação com elementos não ciganos (Brinca, 2006; Mendes, 2005). Isto parece ser limitativo das suas relações, obrigando-os a procurar estratégias para manter as suas amizades com portugueses não ciganos.

Também foi visível a importância do casamento entre ciganos como forma de preservação da tradição e linhagem (Montenegro, 2003). Sobretudo para as raparigas do grupo estudado esta torna-se, a partir dos 13/14 anos, uma preocupação visível nas suas conversas e no interesse e curiosidade por rapazes fora do seu grupo de amigos usual.

As questões de género também estiveram sempre presentes ao longo da recolha de dados. Ser mulher e cigana traz limitações acrescidas aos vários níveis (Montenegro, 2003; Casa-Nova, 2004; Mendes, 2005; Costa, 2006; Dias, Alves, Valente e Aires, 2006; Bastos e Rodrigues, 2007). No caso das raparigas, verificou-se a importância de manter uma boa imagem social e as responsabilidades para com a família As mulheres ciganas portuguesas parecem ter um triplo problema (Casa-Nova, 2004), marcadas pela pobreza, etnicidade e género. Face a tantos condicionalismos, torna-se difícil para a rapariga/mulher cigana, ainda mais do que para o homem, conseguir traçar o seu percurso individual (Mendes, 2005).

Foi possível verificar que alguns dos jovens ciganos do grupo se sentem divididos entre as suas raízes ciganas e outros aspetos que os atraem na restante sociedade. Os jovens ciganos de hoje combinam aquilo que é a sua herança sociocultural com aquele que é o seu trajeto individual, numa sociedade com padrões culturais diferentes dos da sua origem (Dias, Alves, Valente e Aires, 2006).

Atividades como o T.O., que abrem caminho a aprendizagens não formais, podem ser uma forma de intervenção junto das famílias ciganas. A estrutura escolar em si não está preparada para receber alunos com diferenças étnicas tão marcantes (Cortesão, Stoer, Casa-Nova e Trindade, 2005), portanto talvez olhar para formas de educação não formal possa ser uma forma de contornar as barreiras culturais.

Em A filha do capitão, um romance do escritor português José Rodrigues dos Santos (2004), é descrita a vida de um jovem num vilarejo perdido no interior de Portugal no final do século XIX. O autor considera a escola como uma porta aberta para o futuro deste jovem. Como o personagem principal do romance, os jovens atores da Horta da Areia podem olhar para a vida com novos olhos, novas esperanças e uma espécie de orgulho e dizer: "Eu sou capaz de fazer isto".


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