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EuPTHUAp0872-34192015000100007

EuPTHUAp0872-34192015000100007

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaApplied Social Sciences
ISSN0872-3419
ano2015
Issue0001
Article number00007

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Espaços públicos: interações, apropriações e conflitos

Introdução Este artigo é fruto de uma reflexão sobre os espaços públicos nas cidades contemporâneas. Parte de uma discussão sociológica mais geral sobre a natureza das interações e as mudanças observadas nos espaços públicos, para, em seguida, contemplar os resultados de pesquisas em espaços públicos no Brasil e em Portugal.

Na perspetiva das Ciências Sociais, os espaços públicos interessam na medida em que são palco de interações sociais de um tipo específico. A especificidade deve-se ao seu caráter público, ou seja, aberto a todos e pela possibilidade de interações com desconhecidos. Distinto, portanto, dos espaços privados, restritos aos familiares e aos conhecidos. Esses dois ingredientes dos espaços públicos abertura e interações com estranhos convergem para uma relativa imprevisibilidade das interações e, não raro, para o conflito. Por essas razões, ainda que os espaços públicos sejam abertos a todos, restrições sociais que emergem no processo de interação e que fazem com que os diferentes grupos sociais não frequentem todo e qualquer espaço público de um mesmo modo.

Essa constatação conduz, por vezes, à leitura de que o espaço público está em crise. O objetivo deste artigo é mostrar a importância de debater o espaço público e analisar o que de comum nas interações que acontecem enquanto fonte de compreensão da dinâmica urbana, uma vez que é nesses espaços que a vida de uma cidade ganha visibilidade. Para tanto, parte-se do texto seminal de Georg Simmel Asgrandes cidades e a vida do espírito1 para, em seguida, apresentar alguns trabalhos que defendem a tese da morte dos espaços públicos e, depois, retomar outras leituras contemporâneas que, na linha da reflexão simmeliana, dão pistas para interpretar a permanência da ideia de espaço público na atualidade.

1. Sobre a natureza das interações nos espaços públicos Um dos textos inaugurais da sociologia urbana, The metropolis and mental life,de Georg Simmel, trata das interações sociais nos espaços públicos das grandes cidades, ainda que esse conceito não tenha sido por ele empregado.

Excetuando raros trabalhos, somente décadas mais tarde a reflexão sobre os espaços públicos, enquanto lugar de interação social entre os estranhos, ganharia força no pensamento social. Trata-se do momento em que começam a rivalizar com as ruas, as praças e os parques outros tipos de espaços, fechados e privatizados, como os shopping centerse os condomínios. A emergência desses novos espaços influenciará o debate do que veio a ser conhecido como crise ou morte do espaço público. Três obras balizam essa discussão: The fall of public man(1974), de Richard Sennett; City of quartz(1990), de Mike Davis; e Cidadede muros, de Teresa Caldeira.2 Apesar de não fazer uso do conceito de espaço público, como se referiu, Georg Simmel, no texto acima citado, buscou compreender os desafios de viver e interagir no espaço público de uma cidade grande. Excesso de estímulos, especialização, dependência, massificação, preponderância do intelecto, pontualidade, calculabilidade, reserva, atitude blasé, solidão e individualidade foram algumas maneiras que ele utilizou para descrever a natureza das interações do homem metropolitano no contexto de uma grande cidade. Algumas dessas características aplicam-se mais ao contexto das relações comerciais, como a especialização, a dependência, a pontualidade e a calculabilidade. a atitude blasée a reserva relacionam-se mais diretamente ao contexto das interações entre desconhecidos, como as que ocorrem no espaço público, ainda que não exclusivamente.

Tanto a reserva quanto a atitude blasésão formas de interação em que um distanciamento em relação às coisas e às pessoas. Nenhuma delas pressupõe laços fortes, interações calorosas ou próximas; ao contrário, as interações são permeadas por uma incapacidade de reação aos estímulos com a energia apropriada, tal como Georg Simmel descreve, a propósito da atitude blasé, e por um distanciamento como ocorre no comportamento da reserva.

Em função dos inúmeros estímulos recebidos nas suas rotinas cotidianas nas grandes cidades, o homem metropolitano circula entre pessoas e coisas desprovido de envolvimento pessoal e da capacidade de fazer grandes distinções.

Para ele, as coisas (e as pessoas) não se diferenciam muito umas das outras. A reserva, que leva ao desconhecimento do vizinho, é, como o comportamento blasé, uma forma de autopreservação na metrópole. Se tivesse que responder a todos os contatos aos quais é submetido cotidianamente, o homem metropolitano ficaria completamente atomizado. Georg Simmel classifica ambos os comportamentos como de natureza social negativa, como dissociação, mas com a ressalva de que são as formas possíveis de interação na metrópole.3 Se a reserva advém da impossibilidade de relacionar de maneira peculiar com incontáveis pessoas com as quais cruza diariamente, situação completamente distinta da pequena cidade, na qual se conhece todo mundo, soma-se a isso o facto de, nas grandes cidades, as relações serem permeadas pela desconfiança em relação àqueles com os quais apenas temos uma relação fugaz. Portanto, na visão de Georg Simmel, as interações com desconhecidos (no contexto deste artigo, nos espaços públicos) não são necessariamente ou, de antemão, promissoras. Ao contrário, são permeadas pelo distanciamento, pela indiferença, pela desconfiança e, num contexto de um contato mais próximo, até mesmo, pela aversão e repulsa mútuas.

Numa visão não determinista, Georg Simmel contempla várias outras possibilidades, ou seja, pode-se ir da indiferença e da aversão à simpatia, e das relações efêmeras às duradouras, à visão distinta, portanto, da conceção de tudo reduzir à indiferença.

Toda a organização interior de uma vida de circulação ampliada de tal modo baseia-se em uma gradação extremamente multifacetada de simpatias, indiferenças e aversões, das mais efêmeras como das mais duradouras. A esfera da indiferença não é assim tão grande como parece superficialmente; a atividade de nossa alma responde, contudo, a quase toda impressão vinda de outro ser humano com uma sensibilidade determinada de algum modo, cujas inconsciência, fugacidade e mudança parece suprimi-la em uma indiferença (Simmel, 2005: 7).

Contra qualquer interpretação pessimista ou niilista, o trecho a seguir é esclarecedor, ainda se referindo à reserva: Ela garante precisamente ao indivíduo uma espécie e uma medida de liberdade pessoal, com relação à qual não nenhuma analogia em outras situações (Simmel, 2005: 583). Ou seja, tanto a reserva quanto a atitude blasésão, simultaneamente, formas de sociação e dissociação marcadas pelas possibilidades do encontro (da possibilidade do estar com o outro) e do conflito (do estar contra o outro).

2. O espaço público está morto? Como lidar com as diferenças nos espaços públicos? Nesta parte do artigo deter-se-á em algumas obras que pregaram a morte do espaço público e foram muito influentes nas interpretações que se seguiram.

Richard Sennett, em O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, identifica em algumas das mais importantes cidades americanas e europeias Nova Iorque, Londres e Paris o que ele chama de espaços públicos mortos. São construções nas quais as áreas públicas são de passagem e, não, de estar, e onde não a diversidade social típica dos espaços públicos tradicionais, uma vez que o seu uso é restrito aos que trabalham e/ou vivem na região. Ele toma como exemplo a Praça da Lever House, na Park Avenue, em Nova Iorque, o Brunswick Centre, em Bloomsbury, Londres e o complexo de escritórios de La Défense, em Paris. Ele argumenta que os exemplos europeus são uma prova de que a questão não se deve apenas à criminalidade e à insegurança, como poderia parecer se tomasse apenas o que ocorre em Nova Iorque. As pessoas estão em público, não para interagir, mas para exercer o direito de estar em público, ou seja, para o exercício de um tipo contemporâneo de voyeurismo. Dessa forma, o conhecimento em público torna-se uma questão de observação e não mais de trato social, de civilidade.

Mike Davis, em Cidade de quartzo, mais precisamente no capítulo Fortaleza LA, discute o que ele chama de destruição do espaço público, consequência de uma cruzada pela segurança na cidade. Essa ação decorre de uma mudança de paradigma de controle social; de uma visão liberal que contrabalanceava repressão com reforma, para a retórica de segurança que como irreconciliáveis os interesses dos pobres e das classes médias urbanas. O resultado é uma cidade dividida em áreas que são verdadeiras fortalezas e subúrbios que se transformaram em lugares de terror em função da guerra da polícia contra os pobres criminalizados. Nesse contexto, o espaço público genuinamente democráticodá lugar a pseudo espaços públicos voltados para um público consumidor de alta renda: suntuosos shoppings, centros de escritórios, acrópoles culturais, e assim sucessivamente estão repletos de sinais invisíveis que impedem a entrada do Outro' da subclasse (Davis, 1993: 207).

Mike Davis acrescenta novos elementos a essa obsessão pela segurança em detrimento da vida pública, como a privatização de espaços antes públicos, o uso do designurbano sádico que evita a permanência dos pobres nos espaços públicos e a transferência, para espaços privados comerciais, da atividade vital do centro. Esses fenômenos são, para ele, parte de um processo de contraurbanização e contrainsurreição.

Em uma interpretação próxima à de Mike Davis, Teresa Caldeira, em Cidade de muros, identifica, a partir dos anos 1980, o surgimento de um novo padrão de segregação em São Paulo. A origem estaria no crescimento do crime violento que gerou, entre várias outras estratégias de proteção, a construção de muros como uma das mais emblemáticas. Estes, juntamente com outros aparatos de segurança, garantem o isolamento dos grupos de mais alta renda daqueles considerados perigosos. Os enclaves fortificados, espaços privatizados, fechados e monitorados, destinados a residência, lazer, trabalho e consumo (Caldeira, 2000: 11), vêm modificando profundamente a vida urbana, em especial a convivência nos espaços públicos, uma vez que negam os ideais de heterogeneidade, acessibilidade e igualdade que marcaram os espaços públicos modernos.

As elites, ao se retirarem para os enclaves, deixam os espaços públicos para os sem-teto e os pobres. Dessa forma, diminuem os espaços para o encontro de pessoas de diferentes grupos sociais. Como Mike Davis, Teresa Caldeira analisa vários outros comportamentos das elites, tais como a privatização de ruas, o uso de segurança privada, de cercas elétricas nas residências e do transporte privado para todos os tipos de deslocamentos. Juntos, eles são responsáveis por promoverem intolerância, suspeita e medo entre os habitantes da cidade (Caldeira, 2000: 314).

Essas interpretações foram objeto da crítica de Salcedo Hancen (2002), no que diz respeito à idealização que fazem do espaço público moderno onde os diferentes interagiam sem constrangimentos. Para o autor, nunca existiu um espaço livre e aberto a todos. Os indesejáveis pelos grupos médios e altos sempre foram mantidos a distância. Nessa perspetiva, o espaço público hoje é mais aberto do que antes em relação aos grupos raciais e sexuais minoritários.

Em vez de comparar espaço público moderno e atual, Salcedo Hancen propõe analisá-lo como um lugar do exercício do poder, assim como da sua resistência.

Outro aspeto dessas análises é a visão da sociedade e dos usos dos espaços públicos focada em um único estrato: os grupos de alta renda. Se, por um lado, esses autores identificam importantes processos de mudança na sociedade e nos espaços públicos, por outro, eles incorrem no erro da generalização. E ainda que os grupos de alta renda tenham o poder de definir a direção das mudanças que atingiram as cidades nas últimas décadas, eles não são tão hegemônicos a ponto de imporem uma forma única de uso dos espaços públicos presentes em distintas partes da cidade. Acompanhando a interpretação de Rodrigo Salcedo Hansen, os autores acima citados não contemplam as resistências, não contemplam também outros espaços públicos e seus usos por outros grupos sociais. Se os novos espaços públicos voltados para os grupos de alta renda são pouco convidativos ao estar e ao convívio com o diferente, eles não esgotam todos os espaços públicos das cidades contemporâneas. Pesquisas realizadas no Brasil e em Portugal mostram usos distintos dos espaços públicos por diferentes grupos sociais: sejam os contrausos (Leite, 2004),4 a invenção de novos usos e novos espaços, assim como movimentos de defesa dos mesmos. Portanto, nada disso leva à conclusão de que o espaço público esteja morto.

Uma prova da vida nos espaços públicos são os conflitos mais evidentes quando os espaços reúnem grupos de diferentes classes ou etnias. Fora isso, espaços, como os descritos pelos autores acima citados, nos quais o conflito é contido pela predominância e poder de um grupo. Nesses casos, a interação fica limitada aos iguais e a tensão expande-se para as fronteiras desses espaços.

Exemplos desse tipo são os condomínios fechados, por um lado, e as praças e outros espaços públicos ocupados predominantemente por moradores de rua ou consumidores/traficantes de drogas, por outro. No primeiro caso, o conflito se manifesta nas áreas de fronteiras que impedem a entrada de não-moradores que não foram convidados. No segundo caso, quando os moradores de rua fazem do espaço público suas moradias, ou os consumidores de drogas pontos de consumo e tráfico, o uso compartilhado por outros grupos é permeado por muitas tensões, dada a dificuldade de interação.

Ainda que esses sejam exemplos extremos, as grandes distâncias sociais e culturais dificultam a interação, quando não a inviabilizam. Essa é uma das razões que explicaria a existência, em alguns espaços públicos contemporâneos, da copresença, mas não da interação. Em uma praça estudada em Belo Horizonte, localizada na fronteira de um bairro de alta renda e uma favela, os moradores dos dois espaços frequentam a praça, mas as interações, quando existem, ou são superficiais ou têm natureza comercial (Andrade, Jayme e Almeida, 2009).

Diante de constatações como essas, Van Eijk e Engbersen (2011: 35) propuseram o conceito de light interaction. As interações superficiais ou lightocorrem em função dos repetidos encontros nos espaços públicos, responsáveis por criar uma familiaridade oposta ao anonimato, assim como um senso de identidade social e de segurança. Os autores exemplificam os encontros que se repetem como aqueles que ocorrem durante as compras, no ato de pegar as crianças na escola ou quando se passeia com o cachorro. Em todos esses casos, a recorrência leva ao conhecimento categórico, mas não ao biográfico.5 Para os autores, essa familiaridade é importante especialmente nos espaços que reúnem pessoas diferentes. Os contatos, ainda que superficiais (até porque, no caso por eles estudado, os moradores são social e culturalmente muito diferentes), fazem com que as pessoas se sintam, aos olhos do outro, menos estranhas. Por meio dessas light interactionselas adquirem informações sobre o outro, de forma a saber se são ou não confiáveis. Esse tipo de interação ocorre com mais frequência nos ambientes em que práticas cotidianas se repetem, ou seja, nos espaços públicos que reúnem frequentadores regulares, como são os espaços públicos das áreas residenciais. Diferentes, portanto, dos espaços públicos centrais, que apesar de contarem com um grupo fixo, ou seja, que o frequenta com regularidade, o grande número faz com que a maioria seja, para o outro, anônima. Isso sem contar os transeuntes esporádicos que fazem aumentar essa sensação de anonimato pouco propícia às interações.

Essas observações mostram que as interações que ocorrem no espaço público têm uma natureza distinta das interações próprias da esfera privada, marcadas pela intimidade e por laços fortes. As interações entre pessoas que não se conhecem são, em geral, mais formais e mais distanciadas. O perigo dessa indistinção é desvalorizar as interações no espaço público tendo como referência as interações que ocorrem na esfera privada.

A noção de light interactionsnos faz retornar a Georg Simmel. As atitudes de reserva e o comportamento blasépodem ser pensados como formas de light interactions, até porque a maior quantidade, assim como o maior envolvimento nas interações, pode vir a comprometer a liberdade individual. Esta pode pressupor, desde o estar em público (o direito à solidão), como também interações mediadas pela distância formal, nas quais o indivíduo não compromete a sua individualidade. O que está em jogo nas interações com estranhos é a dimensão pública da vida, preservando, assim, o lado mais íntimo, ou seja, a liberdade individual.

3. A diversidade dos espaços públicos e seus usos no contexto urbano atual O que se percebe em Georg Simmel a respeito das interações nos espaços públicos não é a defesa de uma visão romântica, nem uma visão catastrófica ou pessimista. Para ele, tais interações são, por natureza, abertas a muitas possibilidades. Contudo, dadas as características do homem metropolitano, não se deve esperar interações imediatamente realizadas, ou seja, sem o anteparo das distâncias sociais. O homem metropolitano, para a sua própria sobrevivência e para a preservação da sua interioridade, precisa desse afastamento dos contatos aos quais é exposto cotidianamente.

A esse afastamento subjaz um princípio de liberdade que orienta as suas decisões. Em relação à forma como o homem metropolitano desfruta do seu tempo e como se dispõe a usufruir dos espaços públicos, entendem os autores que é possível identificar, na época das mobilidades em que se vive, uma diversidade de espaços e formas de interação que não deve ser reduzida e representada de maneira homogênea.

De forma a mostrar sinteticamente a diversidade de contextos de interação que a ideia de espaços públicos comporta, propõe-se apresentar um exercício de tipologia que considera, não o grau de interação que estes estimulam, mas também a sua durabilidade. Para tal análise, recorreu-se aos tipos-ideais de espaço público identificados por Tonkiss (2005), que visam analisar o sentido de estar com os outros em público (a praça, representando o sentido da pertença coletiva; o café, representando a troca social; e a rua, representando o encontro informal). No presente caso o que interessa é a adequação dada para uso público aos espaços urbanos concebidos com diferentes objetivos, segundo a sua condição de origem (públicos/privados) e o destino para que foram concebidos (jardim, shopping centers, praças).

Assim, tomam-se como primeiro tipo os espaços urbanos programados para uso público.

No âmbito do planejamento das cidades contemporâneas, os espaços públicos destinados ao usufruto lúdico têm um lugar indiscutível, quer em cidades planejadas, como são os casos de Belo Horizonte e Brasília, quer em cidades históricas com camadas de edificação e significados que remetem a várias épocas, como Lisboa, Porto ou Rio de Janeiro. As praças e os parques foram concebidos para usos diversos e anônimos, destinados a todos, mas, ao longo dos anos, foram alvo de múltiplos usos, que se vêm modificando assim como as populações que dele usufruem, tal como se sustentou em pontos anteriores.

Exemplos dessas novas apropriações de praças e parques urbanos foram detetados por pesquisas realizadas em várias cidades. Aqui vamos nos concentrar nos exemplos de Belo Horizonte e de Lisboa, aonde vimos realizando as nossas pesquisas. No estudo sobre praças de Belo Horizonte, identificaram-se, em diferentes bairros da cidade, usos muito diversos, decorrentes dos próprios contextos em que estão localizadas. A distinção mais relevante se verificou entre as praças de bairros e as praças centrais. As primeiras cumprem a função de um espaço de lazer local; as centrais combinam diferentes usos, frequentadores e mesmo especializações. Em algumas destas últimas são realizadas feiras; em outras são comuns os usos culturais com apresentações de teatros, músicas, danças; outras são utilizadas para atividades físicas. Em diferentes horas do dia, os usos se modificam: nas manhãs preponderam os usos pelas crianças e pelos idosos; nos horários do almoço muitos trabalhadores usam as praças para sua sesta; à tarde e principalmente à noite, a presença maior é de jovens; no período da noite e em bairros com pouca presença policial é comum o uso das praças para consumo e tráfico de drogas. algumas praças centrais são muito frequentadas à noite por prostitutas e travestis. As praças centrais também desempenham um papel turístico e simbólico nas cidades, sendo constantemente utilizadas para eventos oficiais, assim como para manifestações civis, dada a visibilidade que apresentam. Essas breves considerações mostram que os espaços e os seus usos, nesse caso específico as praças, não são homogêneos.

No caso de Lisboa, as pesquisas têm trazido informações preciosas sobre as dinâmicas de tais espaços urbanos programados para usufruto lúdico e não diferem substancialmente do que foi encontrado em Belo Horizonte. É o caso do estudo sobre o Jardim da Estrela, parque no coração da cidade de Lisboa (Gomes, 2008), concebido como área verde de ligação entre zonas de instalação da burguesia lisboeta no final do século XIX (Campo de Ourique, Estrela, Rato) e perto de zonas simbólicas da cidade (da Basílica da Estrela e da atual Assembleia da República, onde tem residência oficial o Primeiro-Ministro).

Pensado como área de recreio para as populações das redondezas e preservado como um dos mais característicos parques públicos da cidade, o jardim de hoje é utilizado por uma multiplicidade de populações que lhe dão distintos usos, consoante a hora do dia, o dia da semana e os indivíduos que o procuram. Maria João Gomes chega à conclusão de que uma clara distinção entre quem usa o jardim como zona de passagem na circulação urbana e quem dele se apropria como lugar de permanência mais ou menos demorada. Conclui ainda que, em grande parte, essa distinção tem a ver com o uso mais passageiro que lhe é dado pelos que trabalham e usam a zona e por aqui passam, e o uso mais permanente que, por contraste, lhe é dado por moradores das redondezas e outros utilizadores que tomam o jardim da Estrela como lugar de lazer da cidade.

Também o significado e o uso dado à rua como lugar de encontro, de passagem ou de instalação foi alvo de investigação centrada na cidade de Lisboa (Cordeiro e Vidal, 2008) e revelou igualmente a forma distinta como os grupos sociais dele fazem uso. Os autores introduzem a temática da rua na pesquisa urbana dizendo que as realidades concretas que são trabalhadas (...) os espaços, as situações, os atores os processos abrem novas perspectivas para o debate em torno de um tópico tão falado mas, paradoxalmente, tão pouco conhecido. Trata- se de revelar o sentido que a interacção urbana quotidiana adquire para cada citadino, nos lugares que habita e percorre, nos papéis que desempenha, nas representações que fabrica. É a rua à escala de quem a vive o que nos interessa descobrir, discutir e problematizar a rua como lugar onde se fabricam interacções, onde se produz sociedade, a rua que tantas vezes se inventa para além do enquadramento urbanístico que a envolve que assim nos surpreende (Cordeiro e Vidal, 2008: 9).

O que esses investigadores salientam é a necessidade de conhecer essas facetas do mundo urbano, afinal tão pouco conhecidas e que têm no enquadramento urbanístico das cidades contemporâneas o seu ponto de partida. O seu desconhecimento pode precisamente ter por base as leituras feitas a partir da macroescala que, não baixando o olhar de perto, ignoram essas microescalas tão intensas quanto inesperadas.

Fica claro, tanto nesse caso quanto no exemplo anterior, que a questão não é a morte dos espaços públicos, mas uma multiplicidade de usos e de protagonistas que se apropriam de tais territórios.

Tem-se, como segundo tipo, os novos espaços de consumo de acesso público. Com a emergência das catedrais do consumo, a que se refere Ritzer (2010), como elemento organizador da vida nas sociedades contemporâneas, estas vão ocupando um lugar cada vez mais central na estruturação dos fluxos das metrópoles de hoje, sendo claro que não os shopping centers, mas também os estádios desportivos e os parques temáticos afiguram-se como lugares de acesso público que rivalizam com as formas tradicionais de encontro e de lazer.

Em Belo Horizonte, e também na sua região metropolitana, dois espaços emblemáticos da cidade foram transformados em corredores culturais: um implantado e outro em processo de implantação. O primeiro, em uma praça simbólica da cidade, a Praça da Liberdade, onde antes se localizavam o Palácio do Governo e as secretarias de Estado, hoje transformados em centros culturais e museus. Nesse caso assistiu-se a uma clara elitização do espaço, via sua reforma, primeiro com a retirada das feiras de artesanato e artes, e depois com a proibição do comércio ambulante. Posteriormente, o controle dos usos e do comportamento se fez presente na rotina diária dos seus frequentadores. A presença constante da Polícia Militar e da Guarda Municipal impede os usos considerados como indesejáveis, tais como: sentar na grama, deitar nos bancos e comercializar qualquer produto, entre outros. Soma-se a isso a sua ocupação pelos moradores do entorno, grupos de média e alta renda, que impõem, com a sua presença, um estilo próprio de frequentar a praça. Esse grupo utiliza a praça principalmente para caminhadas. A diversidade se faz presente nos dias de festividades. Por ser uma praça central e simbólica, ali acontecem muitos eventos culturais, sobretudo nos finais de semana. De toda forma, trata-se de uma diversidade relativa em função das programações que têm como referência o gosto das classes médias. No caso do corredor da Praça da Estação, localizada numa parte comercial da cidade, com fluxo intenso de pessoas de toda a região metropolitana durante o dia e muitos moradores de rua durante a noite, a sua implantação, ainda em curso, vem enfrentando um processo tenso de negociação com os grupos culturais que ali estão instalados e que se opõem radicalmente às políticas de gentrificaçãoe ao controle dos seus usos por parte do Estado. Esse coletivo, que promove diversas ocupações na praça e no seu entorno, tem como bandeira o uso livre do espaço público, e, em relação à proposta da prefeitura de implantação de um corredor cultural, argumentam que o corredor cultural existe.

No caso português, o exemplo do Parque das Nações (Pereira, 2013) traz para o debate o planejamento de espaços públicos metropolitanos onde confluem os residentes, os protagonistas da vida dos negócios e os visitantes frequentes, nomeadamente da Área Metropolitana de Lisboa (o caso dos ciclistas de fim de semana é um exemplo). Sem menos importância têm presença os visitantes nacionais e internacionais que a procuram como atração metropolitana. A memória do passado industrial e portuário recente dessa zona da cidade, que em 1998 passa a uma condição de plenitude urbana, desaparece por completo. O conceito que está por trás da edificação do atual Parque das Nações, seguro e sanitarizado, remete a uma premissa com grande impacto: estimular uma experiência cotidiana menos estressante. A ideia que se constrói com a Expo'98 e depois com o Parque das Nações é a de que as sociabilidades a desenvolver nesse contexto devem, tal como a área edificada, estar programadas, de modo a não existirem alterações imprevistas nas dinâmicas cotidianas. E daí um cartaz público de atividades de rua e nos vários espaços de lazer edificados para o efeito recheado de animação, evitando os tempos mortos e uma certa espontaneidade que introduziria um fator de instabilidade nessa lógica programada.

Nessa destinação do Parque das Nações como zona para viver e para usufruir, a programação dos espaços públicos é central. Está no espírito da iniciativa desenvolver um senso de lazer(Degen, 2008), ligado às glórias portuguesas passadas, e que tal como também acontece em muitas outras cidades com frentes- de-água (waterfront) urbanas e metropolitanas, dispõe de equipamentos culturais, de lazer e de consumo, limpos e seguros. Com uma forte carga estética que procura dar a esse território um caráter distintivo, procura-se estimular o gosto pela arte, integrando-a numa estratégia de elitização territorial que reproduz desigualdades antigas e cria também oportunidades de acesso a consumos anteriormente vedados a muitos grupos sociais. A centralidade do shopping centernão é um acaso nessa área planeada da metrópole, mas uma porta de entrada para o consumo cultural. Vale a pena salientar que os equipamentos culturais da zona do Parque das Nações estão dispostos fisicamente na continuidade do centro comercial, ligando práticas de consumo cultural e necessidades cotidianas de consumo.

Por fim, apresentamos como terceiro tipo os espaços informais de origem privada integrados no circuito metropolitano.Resultantes da iniciativa privada, tais lugares são apropriados, com maior ou menor intensidade, enquanto lugares de encontro de grupos específicos. À medida que vão ganhando alguma particularidade que os torne relevantes, entram no circuito metropolitano.

Exemplos tão díspares, caros a distintos grupos de interesse, como cafés, cinemas, lojas, sedes associativas ou mesmo casas- museu, são frequentes no cotidiano das cidades como lugares de visita, de estadia e de encontro.

São lugares que partem de uma condição privada e que vão se tornando espaços de acesso público, sendo que alguns acabam se transformando em símbolos de uma geração, de uma cultura, de uma cidade.

Em Belo Horizonte, na década de 1980, ocorreu um movimento de defesa do Cine Metrópole que funcionava no prédio do antigo teatro da cidade. Essa manifestação, que não logrou sucesso em relação à manutenção do cinema, foi o ponto de partida para um movimento de defesa do patrimônio da cidade em processo de acelerada destruição, assim como a defesa dos seus espaços públicos (Andrade e Esteves, 2002). Nos anos 2000 emerge outro movimento em favor de um espaço privado, mas cujos usos são de natureza pública. Trata-se do Mercado Central, ícone da cultura local, uma vez que ali se comercializam produtos de todo o estado, algo muito distinto do que se encontra nos shopping centerse em outras lojas da cidade. Mais do que isso, porém, o Mercado é conhecido por facilitar as interações entre estranhos. Trata-se de um espaço muito propício ao encontro e à interação com o outro. O estopim do movimento nas redes sociais foi a instalação de uma loja de eletrodomésticos que muito se diferenciava das lojas e do comércio que se fazia no Mercado e que foi interpretada, pelos seus defensores, como a abertura para a transformação do Mercado em um shopping center(Andrade, 2008).

O caso da derrubada do cinema Monumental, no largo Duque de Saldanha, em Lisboa, e o movimento social que provocou, nos anos 80 do século XX, entre a elite cultural lisboeta, defendendo o tombamento do edifício para garantir a sua perpetuação e o seu uso, é um outro exemplo de defesa de espaços que, ainda que privados, desempenham uma importante função pública. Mais que uma sala de cinema, o que estava em causa era o ponto de encontro, central na cidade de então, que se perdia no circuito da metrópole (Carvalho, 2006).

Em comum nos trabalhos realizados em Belo Horizonte e em Lisboa encontram- se, entre os frequentadores desses cinemas, referências a um tipo de sociabilidade que se teria perdido com a entrada dos cinemas de ruapara o interior dos shopping centers. Aglomerando-se na rua à porta do cinema, produzindo o ponto de encontro visível entre aficionados, um público massivamente escolarizado e jovem, conheceu expressão em muitas cidades nos anos 60 e 70 do século passado.

Essa prática temporalmente bem situada, mas cuja durabilidade se revela limitada, é um dos exemplos de como tais espaços informais ocupam lugar de destaque na vida da cidade.

Ainda que se trate de propriedade privada, esses espaços públicos têm uma importância crucial na compreensão das nossas cidades porque correspondem ao pulsar da vida local, nas suas várias escalas, e permitem captar instantâneos dos movimentos sociais que vão se expressando em diferentes tempos da metrópole, sejam movimentos políticos, sejam culturais ou sejam de outro tipo.

Conclusões Retomando as ideias de Tonkiss (2005: 72) diremos que o princípio ideal do espaço público assenta na igualdade do acesso (...), mas a vida real dos espaços públicos sugere-nos que estes não são apenas constituídos em termos de acesso mas também são organizados através de formas de controlo e exclusão.

E aqui é necessário distinguir entre o plano ideal das discussões sobre o espaço público, muito devedoras da visão habermasiana de esfera pública, e a dimensão prática da vivência dos espaços públicos, lugares de interesse comum para usufruto coletivo. Essa distinção de caráter operativo em nada contraria a necessidade de os articular. Assim, o debate que se propõe na parte inicial deste artigo é crucial para uma interpretação clarificadora das realidades cotidianas que, em seguida, se apresentaram por meio de alguns exemplos de pesquisas realizadas em Belo Horizonte e em Lisboa.

Isso não significa, no entanto, atribuir ao empírico valor superior ao teórico.

Afinal, o risco teoricista é tão real como o risco empiricista. Daí que o trabalho central dos sociólogos seja o de criar estratégias de compreensão do real a partir dos instrumentos teóricos, metodológicos e conceptuais ao nosso dispor, de modo a melhorar a capacidade de análise de fenômenos mutantes, próprios do tempo da sociedade das mobilidades.

Em síntese, diremos que às teorias que pregam a morte do espaço público contrapõem-se outras teorias tributárias do legado simmeliano, ou seja, centradas na natureza das interações entre estranhos.

E daqui se pode concluir que, nesta época dos lazeres globalizados, a diversidade de experiências que se podem identificar como acontecendo em espaços públicos é tão ampla que exige do investigador um cuidado particular no entendimento e na classificação desse fenômeno (Baptista, 2005). Tal constatação levou a propor um exercício tipológico em que se considera que o uso público de espaços urbanos implica, para além do melhor conhecimento do que ocorre nos clássicos exemplos do espaço público de inciativa governamental, conhecer também os novos espaços de consumo de acesso público e os espaços informais de origem privada. Parte desses espaços, como nos exemplos aqui citados, proporcionam diferentes graus de interação com durabilidades distintas, mas muito próprias dos espaços públicos, o que leva a priorizá- las na própria definição dos espaços públicos em detrimento da propriedade, se pública ou privada.

Tendo tomado como referência empírica a experiência de Belo Horizonte, de modo articulado com a de Lisboa, procurou-se trazer para este artigo o exemplo de pesquisas que ilustrem de modo evidente as dinâmicas mais reveladoras da transformação dos espaços públicos. Parece ser decisivo para analisar os espaços públicos, como domínio central da transformação urbana das nossas sociedades, que se tenha a capacidade para os olhar de forma abrangente e detalhada, contrariando o efeito simplificador que a tese do fim do espaço público tem produzido no campo científico e na intervenção pública.


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