Da saúde e bem-estar/mal-estar ao termalismo
Quando tudo parecer cinzento vai à procura da cor.
Cherry Hartman (1987)
Introdução
As questões relacionadas com a saúde, o bem-estar e a emergência de novas
terapias, sendo dinâmicas, têvindo a ocupar um lugar preponderante na esfera
pública em geral. O bom funcionamento dos nossos orgãos e a sensação de bem-
estar são considerados garantias essenciais da vida humana e social. Nem sempre
foi assim. No passado, honra, piedade, honestidade, respeito e lealdade levavam
a melhor e estava-se disposto a arriscar a vida em sua defesa. Já a doença era
essencialmente considerada um castigo divino (Herzlich e Pierret, 1991) ou o
objeto de prova e sublimação em função da vida do além (Leandro e Baumann,
2015). Porém, a preocupação com a saúde não era, de modo algum, descurada.
Muito precocemente, os indivíduos, as famílias e as sociedades, através de
saberes de experiência, saberes empíricos, incluindo o recurso às águas termais
e outros que, de forma erudita, se foram desenvolvendo, preocuparam-se em
encontrar meios para combater a doença, melhorar a saúde e prolongar a vida com
mais bem-estar.
A nível global, ainda que, nos últimos anos, as condições económicas e sociais
– essencialmente em virtude das crises que nos têm vindo a assolar e do
aprofundamento do fosso das gritantes desigualdades sociais – se tenham vindo a
modificar e para muitos a deteriorar, nem por isso a busca de bem-estar
holístico e de sensações fortes e marcantes deixa de se afigurar relevante. Os
próprios media, pelo menos nas sociedades ocidentais, apresentam preocupações e
programas congruentes com a auto-preocupação de bem-estar, a procura da
felicidade, da realização pessoal e corporal, da exploração máxima das suas
capacidades, uma acrescida sensibilidade perante os riscos e maior procura em
tudo o que se refere a serviços e cuidados de saúde. Estas facetas, em virtude
das suas inter-confluências, têm vindo a tornar-se num enredo de debates acerca
da criação e transformação de múltiplos dispositivos de prevenção, manutenção e
reparação, visando assegurar o bem-estar e a saúde de modo prolongado.
Entre nós, estas configurações societais de saúde, variáveis segundo os tempos,
as conjuturas e os grupos sociais, constituem um equilíbrio movediço
atravessado por várias tensões, o que lhe confere um pluralismo médico e
terapêutico que baralha as fronteiras entre o convencional mais tradicional e a
abertura a novos possíveis. Estão, neste caso, o desenvolvimento de novas e a
reconfiguração de velhas terapias; em suma, a dinâmica entre o curar, cuidar e
prevenir, o medicamento e o produto estimulante, porventura menos agressivo,
mas capaz de investir em novas formas de promoção da saúde e bem-estar,
inclusive em ambientes calmos e aprazíveis, como acontece normalmente com os
espaços termais.
Neste trabalho, porque se trata de uma problemática muito vasta, numa
perspectiva de índole essencialmente reflexiva, tendo presente as dinâmicas
sociais em curso, propomo-nos analisar apenas três dimensões cruciais desta
interconexão que integra a saúde, o bem-estar e o termalismo. A primeira, numa
perspectiva dinâmica, procura analisar a importância outorgada à saúde enquanto
valor primordial da harmonia corporal no seu todo vivencial e social e a
pluralidade de concepções e recursos de que tem vindo a ser alvo. A segunda, de
forma articulada entre a saúde e o contexto social, preocupa-se em inscrever a
busca incessante de bem-estar e combate ao mal-estar/mal-ser no espírito do
tempo e nos respetivos contextos sociais. Finalmente, a terceira visa apreender
a revalorização do termalismo em contextos de emergência de novas buscas de
saúde e bem-estar, em situação plural, de cuidados terapêuticos e oferta de
serviços de bem-estar.
1. Olhar sociológico sobre a saúde
Uma breve referência ao impacto que a saúde tem alcançado nas sociedades
hodiernas, mormente desde a segunda metade do século XX, leva-nos a dizer que
se tem tornado num construto social, económico, político, cultural e
metafísico. A saúde e a sua envolvência fazem parte das exigências políticas e
sociais mais prementes. A biologia, as descobertas da genética e as tecnologias
médicas abrem perspetivas prodigiosas, sem deixar, contudo, de suscitar
questões complexas. Muito regularmente discute-se o impacto da saúde ao nível
do bem-estar humano, social e económico, do aumento da esperança média de vida,
dos prodígios das descobertas científicas e das novas tecnologias, das formas
de organização do trabalho, do género, das práticas alimentares, do
financiamento das despesas de saúde, da emergência de novos riscos sanitários,
dos efeitos que podem advir das várias crises económicas e sociais que têm
vindo a assolar as sociedades, mas também da bioética, das desigualdades
sociais (Fassin, 1996; Antunes, 2014), das catástrofes naturais, dos escândalos
sanitários, dos apelos e investimentos na prevenção da doença, na promoção da
saúde e aí por adiante.
Em síntese, se a saúde advém extremamente medicalizada e medicamentada, tirando
aos sujeitos a capacidade de se socorrerem dos seus recursos em função da auto-
gestão da saúde, também se multiplicam os ângulos de saúde apostos a vários
domínios da existência anteriormente sob a alçada de outros domínios, ainda que
muitas terapias tradiconais continuem a co-existir. Canguillem (1966),
desenvolvendo uma reflexão filosófica e epistemológica, releva o facto de ser a
classe médica a única a dar a sua própria visão de saúde, ao passo que o que
pode fazer norma de saúde para um ser vivo é, acima de tudo, a procura que faz
da sua propria vivência. Muito frequentemente, o que se afigura doente aos
olhos do médico pode não o ser para o indivíduo. Esta análise crítica releva o
facto de as normas médicas também conterem artefactos de vária ordem,
construídos no decorrer da própria história da medicina, ao definir nesta ou
naquela época o que pode ser a saúde e a doença, menosprezando os próprios
saberes e posições dos atores (Leandro, 2014), o que também não é alheio ao
fenómeno do termalismo.
Atualmente a noção de saúde ultrapassa muito a simples conceção de “boa saúde”,
como a que desejamos para nós e para os que nos são próximos ou mesmo o
conteúdo da definição de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS), de 1946:
“A saúde é o mais completo bem-estar e social e não só a ausência de doença”.
Esta visão holística da saúde não é um projeto absolutamente novo, na história
da humanidade. O paradigma da totalidade do sanitário no Ocidente remonta ao
pensamento de Platão. Na cidade ideal da sua “Republica”, a figura do médico
que deverá cuidar do seu doente está omnipresente na influência que os
legisladores desta cidade ideal devem exercer sobre o bem comum: a indisciplina
e o vício são associados a uma doença que importa irradicar de uma sociedade
que se afigura patológica. Por conseguinte, bem governar releva de uma tarefa
político-sanitária perfecionista que deverá englobar todos os aspectos da vida
humana e social, em favor do bem de todos, sem excepção. Esta totalização
platociana da ideia de saúde extensiva a todos os domínios da vida, está
igualmente contida na referida noção da saúde da OMS, que vindo de 1946, ainda
não foi modificada, pesem embora várias análises críticas a seu respeito. Entre
outras, para lá do seu aspecto utópico e a confusão que pode suscitar entre
saúde e bem-estar, tem-se revelado muito estática.
Frise-se, ainda, que apesar da generosidade desta definição, também comporta em
germe uma extensão ilimitada do bio-poder teorizado por Michel Foucault (1975)
que, medicamente, pretende ser extensivo a todos os aspectos do bem-estar
humano, físico, psíquico e social. Basta reparar que, atualmente, a medicina
não se ocupa apenas do tratamento dos males do corpo na sua globalidade, mas
igualmente dos comportamentos humanos, sociais e até de justiça, assumindo
significados que ultrapassam o indivíduo e a sua envolvência. Alarga-se, de
igual modo, ao contexto do trabalho, da habitação, da alimentação, da educação
das crianças e do contexto envolvente em geral. Aliás, certas formas de desvios
e de criminalidade, que eram até há bem pouco tempo inscritas no fórum da
criminalidade e da justiça ou quando muito da inadaptação social, são hoje
objecto de intervenção médica. Outro tanto se diga de certos comportamentos
ditos “associais” para os quais a medicina, com a sua panóplia de
especialistas, e a indústria farmacêutica têm o comprimido para os normalizar.
Ao pretender medicamente ocupar-se de todos os aspectos da vida humana e
social, a noção da OMS contém, em germe, uma extensão possível da medicalização
completa da vida e dos respectivos comportamentos humanos e sociais, muito à
semelhança do ideal de Platão. Perfilha-se, assim, a preservação da saúde como
um todo, estabelecendo um paralelo completo entre saúde, bem-estar e justiça,
sendo esta última concebida como a saúde da sociedade.
É neste contexto que a saúde, longe de se inscrever no binómio saúde/doença,
como se de uma noção vazia de saúde se tratasse perante a ausência de doença ou
podendo limitar-se estritamente ao campo da medicina, se vem transformando num
valor crucial para os indivíduos e num paradigma social, isto é, uma chave de
leitura da realidade social e um princípio de acção em seu favor. É ainda
sinónimo de desenvolvimento e edificação da felicidade tão enaltecida nas
sociedades hodiernas. Se, no passado, esta ainda poderia ser transferida para a
eternidade da vida do além, hoje quer-se terrena e material “ hic et nunc”. Ora
a saúde, sendo fator prospetivo de vida longa e feliz, idealmente sem ocaso,
participa desta dimensão e integra uma conceção de fundo que não olha a saúde
como estado, mas antes como um capital do qual depende a capacidade para
trabalhar, resistir à doença, ao cansaço, ao desalento e a outras agruras da
vida que importa saber gerir, mas também de bem-estar e bem-ser.
Diga-se que, se com o agudizar da crise económica e social em que vivemos
mergulhados, as grandes questões societais incidem no aumento do desemprego e
da pobreza, paralelamente destaca-se o paradigma sanitário e os efeitos que
situações desta natureza podem desencadear em prol da deterioração da saúde
individual e coletiva. Deste modo, a questão das consequências das mutações
deliberadas ou imprevistas sobre a saúde dos humanos impõe-se. O investimento
na despistagem de problemas comportamentais em todas as idades da vida que
possam lesar a saúde e, ao invés, o apelo à prevenção da doença e à promoção da
saúde é significativo a este respeito. Denota-se, pois, um predomínio do
sanitário nos discursos sociais da atualidade, inclusivamente em aspetos que
antes não seriam contidos nesta vertente. A saúde tem vindo a ser concebida
como algo de positivo, qualquer coisa de bom ou de mau, associada a um bem-
estar ideal primordial. Quando este ideal se torna num programa sanitário dos
governos em favor das populações, a saúde é perspetivada como algo de objetivo,
exigindo condições de bem-estar1 erigido em edifício de felicidade. Mas a saúde
também se quer libertadora, fazendo parte de um discurso hedonista através do
qual o indivíduo reivindica a capacidade de escolher o que muito bem lhe
aprouver, resistindo às injunções de promoção da saúde como muito bem o
entender (Crawford, 1984).
Em contrapartida, também têm vindo a aumentar as doenças do mal-estar/mal- ser
íntimo sob a designação de stresse agudo, ansiedade, depressão ou outras
doenças mentais que alguns autores atribuem às mutações da individualidade
contemporânea, ou seja, aos novos dilemas, riscos hodiernos, modos de vida e
respetivas culturas (Ehrenberg, 1998). Marcel Drulhe (1996) avança com a noção
de “sociopatias” para designar as doenças que têm vindo a surgir em virtude das
profundas transformações epidemiológicas, médicas, sanitárias, culturais e
societais, fazendo com que a intervenção das medicinas se alargue do somático
ao social em todas suas dimensões. Se, em grande parte, muitas destas doenças
estão sobre a alçada da psiquiatra ou de especialidades similares e dos seus
receituários, também tem vindo a ganhar grande impacto o recurso a outras
medicinas e formas de tratamento menos convencionais, como para certas
situações acontece com o termalismo, que tem retomado novo vigor nestas
matérias.
Denota-se, assim, que os indivíduos têm cada vez mais acesso a um pluralismo
terapêutico onde abundam também as medicinas da esperança. Mediante o aumento
dos males íntimos em forma depressiva e a busca da felicidade por receita2,
responde a alquimia do desespero; à medicalização do mal-estar opõe-se a
depressão enquanto autêntica doença do século como já a definiu a OMS. À
publicidade, fazendo a apologia de um medicamento milagroso, como foi por
exemplo o Prozac, opõe-se a contra- publicidade de uma “droga” sem toxidade nem
risco de dependência, podendo integrar mudança dos modos de vida e recurso a
terapias menos agressivas. Se a medicalização da vida se tem vindo a tornar num
fenómeno de sociedade, também não deixa de suscitar questões de vária índole,
devido sobretudo aos seus efeitos secundários, destacando-se, entre outros, as
toxidades, as mudanças nos sistemas imunitários e as doenças iatrogénicas, isto
é, patologias desencadeadas por receituários ou tratamentos médicos menos
adequados à situação dos pacientes.
Grosso modo, no seio dos cuidados de saúde, o recurso a novas terapias tende a
evidenciar uma procura que se inscreve, tanto na busca de cura, quiçá em
desespero de causa, como numa nova filosofia de recursos de saúde fora da
medicina convencional, buscando também aqui um novo universo de sentido e de
afirmação. Nos anos 1970, emerge uma crítica da instituição médica, cujo livro
de Ivan Illich “Nemésis médicale” (1975) cristaliza os aspectos mais
proeminentes. A expansão do domínio da saúde conduz a uma medicalização da
existência desde o nascimento até à morte e mais recentemente à emergência de
uma política de redução dos riscos que todos os dias espreitam daqui e dali. Só
que esses excessos têm preços elevados para a saúde. Anteriormente fonte de
segurança, a ciência e a tecnologia também apresentam elementos de dúvida. Daí
que o aumento do recurso a tratamentos menos convencionais também tenha a ver
com a vontade de se precaver, reduzir ou colmatar efeitos secundários daqui
decorrentes. Este tipo de cuidados permite identicamente exprimir o que o corpo
médico tende a silenciar ou pelo menos a ter menos em consideração: o homem ou
a mulher doentes, sejam quais forem os males que os assolam, as transformações
operadas no corpo e os novos significados que têm vindo a adquirir as suas
condições sociais, os vários desaires e agruras da vida, a importância das
relações humanas e os efeitos provocados por certos tratamentos e medicamentos,
quiçá a saturação do próprio organismo e não apenas a doença.
De qualquer modo, as perceções de saúde são essencialmente tributárias do
contexto que as envolve, sendo a sua natureza um “reflexo” de uma multidão de
elementos heterogéneos que concorrem para a definir. Isto não quer dizer que
nos situemos numa espécie de relativismo precoce, que faz com que a saúde,
teoricamente, não seja nada, porque é difícil defini-la. Ao contrário,
afirmamos que a saúde, sejam quais forem as noções e conceitos a seu respeito,
é sempre a saúde com os vários significados e prerrogativas que integra. Também
não deixa de ser o que é pelo facto de não existir consenso acerca da sua
definição ou porque não se consegue identificar com uma essência anti-histórica
que a definiria, não sendo mais do que o reflexo de uma determinação histórica
movediça. Importante corolário desta perspectiva é, em nossa opinião, o
seguinte: a saúde inscrevendo-se no biológico, no social, no cultural, no
normativo e no simbólico, é tributária da intervenção dos atores que somos e da
faculdade de infletir as modificações contextuais, conseguindo reajustar em
permanência as perceções a seu respeito, a sua construção social e o que somos
e desejamos ser. Aliás, importa frisar que o apelo às determinações contextuais
não é, de modo algum, um fatalismo e que os humanos conseguem fazer algo
daquilo que a sociedade quis fazer deles, tendo presente os seus possíveis
(Sartre, 1961; Leandro, 1995).
Segundo Lazorthes (1991: 352), perspectiva que também adoptamos, “A saúde pode
ser definida como a capacidade de manter um ‘estado de equilíbrio' fisiológico
e biológico do nosso organismo sempre ameaçado, de se adaptar continuadamente
às variações exteriores, de resistir às agressões microbianas, tóxicas,
traumáticas e de se curar após ter estado doente”. Partindo, ainda, da
definição de Bichat (1800) – “A vida é o conjunto de funções que resistem à
morte” – podemos dizer que a saúde é feita do conjunto de forças que intervém
nas inter-relações biológicas, mentais, emocionais e interativas em geral
perante o mundo exterior, permitindo resistir à doença. Como afirma Sournia
(1984), apesar das pressões exercidas pela sociedade sobre o cidadão com saúde
ou doente, a noção de saúde permanecerá sempre um viver pessoal e social
provisório.
Não obstante, a saúde é sempre um dos grandes dilemas da nossa vida quotidiana,
tanto na esfera privada como na esfera pública. Procura de realização pessoal,
redescoberta máxima das nossas possibilidades, sensibilidade acrescida aos
riscos que a ameaçam, exigências de proteção e de bem-estar, eis todo um
arsenal de elementos que agudizam o debate acerca dos seus dispositivos de
prevenção, manutenção, promoção ou reparação. Nesta ótica, queremos trazer para
este debate a articulação entre estas vertentes e a reemergência do termalismo
numa época e num contexto de pluralismo terapêutico em que abundam as
designadas “medicinas doces” ou de conforto.
2. Bem-estar/mal-estar nas sociedades hodiernas
Em 1979 é publicado, em França, o livro de Jean Fourastié intitulado “Os trinta
gloriosos”, onde analisa as grandes mudanças e conquistas alcançadas entre
1945-1975 quanto à melhoria das condições de existência nas sociedades da
Europa central. Nunca como neste período se tinham atingido níveis de vida tão
elevados, graças ao grande impulso da economia e do pleno emprego, permitindo
aumentar os salários, fomentar a mobilidade social, o acesso generalizado ao
consumo, o alargamento das idades de escolarização, o recheio dos cofres da
segurança social e a expansão das medidas de solidariedade social. Tudo parecia
concorrer para pensar que se vivia, enfim, em condições de pleno bem-estar
económico, social e cultural e de realização das ideologias prometaicas do
progresso, embora entre nós a situação fosse distinta. Só que as crises
petrolíferas de 1973/1974 e seguintes trouxeram um duro revés a este surto de
desenvolvimento e bem-estar que tem vindo a ser objeto de muitas oscilações e
retrocessos.
É também desde finais dos anos 1960 que se vai denotando o declínio dos
interditos ancestrais e, ao invés, se desenvolve a ideia segundo a qual cada um
é auto- gestor da sua própria vida. Os costumes e os valores tradicionais
modificam-se sobre muitos e variados aspetos, as relações de género passam a
pautar-se mais pela igualdade, as liberdades alargam-se, a autonomia e a
individualização intensificam-se e as aspirações a melhores níveis de bem-estar
são muito elevadas.
Neste novo contexto, onde mais nada parece prevalecer por si mesmo, o indivíduo
orienta-se cada vez menos pela tradição, os seus valores e regras
institucionais. Pode, assim, enveredar-se por um exercício arriscado ao ter de
se inventar a si mesmo, escolher a sua herança, as suas pertenças e a sua
moral. O homem/mulher soberano/a igual a si mesmo(a), que em devir já havia
sido anunciado por Nietszche, vai-se tornando uma realidade de massa para a
qual as descobertas científicas e tecnológicas muito têm contribuído. Ao
indivíduo hodierno afigura-se-lhe não haver nada nem ninguém superior que lhe
possa indicar o que deve ser, dado pretender ser o seu próprio senhor(a). Vai-
se implantando um pluralismo moral e instaura-se a liberdade de construir ou
escolher as suas próprias regras. O auto- desenvolvimento torna-se
coletivamente um problema pessoal que a sociedade deve favorecer, forjando um
tipo de sujeito menos disciplinado e mais livre. Esta nova liberdade, sendo
também um constrangimento e uma injunção à realização pessoal e à felicidade,
tem um preço: ao mesmo tempo que se alarga o espaço dos possíveis cresce o
território dos riscos e dos conflitos que já não são assumidos pelos suportes
tradicionais. Importante paradoxo que – conjuntamente com o aumento dos riscos
de toda a ordem – parece fazer com que a melhoria das condições de existência
torne cada um vulnerável. Daqui pode advir uma depressão típica da modernidade
que Ehrenberg (1998), designa de “cansaço de ser eu”, podendo fazer desencadear
sensações de mal- estar, mal-ser e confusão.
Este conjunto de fatores, associado a vários outros, tendo sobretudo a ver com
muitas formas de rutura, inclusive ao nível dos laços familiares e sociais, a
situações inesperadas, a grandes transformações operadas no âmbito do trabalho
e do exercício das próprias profissões, sobretudo ao nível do desemprego, das
relações humanas, da pobreza e da exclusão social, tem dado azo ao aumento de
níveis de stresse demasiadamente intensos3, podendo fazer desencadear vários
tipos de doenças psicossomáticas. São, ainda, fatores stressantes as incertezas
quanto às reorganizações laborais, a introdução de novas tecnologias, o
desemprego, um futuro profissional incerto, as frustrações de vária ordem, as
relações humanas, podendo mesmo dizer-se que, no decorrer dos últimos tempos, o
homem/mulher – muito frequentemente também em virtude do carreirismo e da
concorrência desleal – são um stressor para o outro(a) colega ou concidadão
(Castel, 2003). O stresse é, assim, mediatizado por processos cognitivos,
económicos, profissionais, sociais e emocionais, dependendo muito da maneira de
o enfrentar, o que os ingleses designam de“coping”.
Nestas circunstâncias surge toda uma panóplia de estilos terapêuticos
portadores de novas promessas em prol da reconquista do bem estar/bem-ser
através de terapias da auto-realização e plena sensação de felicidade,
augurando viver plenamente saudável. Relevem-se as novas formas de
espiritualidade, meditação e contemplação, a redescoberta dos efeitos benéficos
da natureza e dos seus elementos nutritivos naturais e paisagens capazes de
transportarem para outros universos e formas de conceber a vida e as suas
circunstâncias, dimensões que também se encontram nos espaços termais agora
mais reconfigurados para o efeito. Abundam igualmente as terapias de grupo em
locais aprazíveis onde os indivíduos procuram encontrar novos meios para cuidar
dos males que os assolam. Nestes, como em casos semelhantes, as técnicas de
cuidados e de cura assentam exatamente num princípio oposto à noção de sujeito
conflitual: procuram multiplicar as capacidades de bem-estar das pessoas como
contraponto às dificuldades do viver, procurando usufruir de uma vida plena de
forma mais autêntica. Edificam a logística do indivíduo emancipado, dado o seu
objetivo não consistir em tornar praticáveis ao menor custo psíquico os
interditos, mas exaurir todo o sofrimento e fomentar novas energias para
prosseguir.
Ao nível das depressões, podemos dizer que, muito frequentemente, revestem hoje
um estilo de desilusão e desespero que seriam estranhos às gerações anteriores,
uma vez que lhes foi prometido muito menos e abertas muito menos perspectivas.
Daí que as aspirações e os projetos almejados por umas e por outras sejam
distintos e que haja, hoje, mais e variadas formas de depressões e angústias.
Em termos de sintomas e de terapia, os cenários também são bem diferentes. Num
passado recente, normalmente as pessoas sabiam identificar a causa, o mal, a
culpa e/ou o espaço da dor, só que hoje sentem-se muitas vezes vazias perante a
panóplia de elementos, inclusive ao nível emocional, que podem estar associados
às suas patologias. Por vezes, sentem dificuldade em dizer “sofro disto ou
daquilo, dói-me aqui ou ali” mediante a amplitude dos males que sentem assolá-
las, que até podem ter muito mais a ver com outras agruras da vida do que com a
doença propriamente dita, ou seja, uma alteração orgânica considerada na sua
evolução como uma identidade definida (Ehrenberg, 1998).
Trata-se antes da noção de doença indicada por Leriche (1937), ao afirmar que a
doença é o que incomoda os humanos no exercício normal da sua vida e,
sobretudo, o que os faz sofrer, seja qual for a sua forma, dimensão e
etiologia. Perante cenários desta índole são também os próprios profissionais
de saúde, inclusive no âmbito dos psis, que se afiguram mais ou menos
desarmados. Assim se procuram novas alternativas e se tende a alargar o recurso
a muitas e variadas terapias que nem sempre se inscrevem cabalmente na medicina
convencional, ou pelo menos da mesma maneira como acontece no âmbito do
termalismo, afigurando-se, antes, como respostas possíveis mais abrangentes do
que o comprido do conforto que cura ou pelo menos cuida e trata deste mal, mas
não de outros que podem estar na origem e persistência do espetro de várias
situações patológicas nas sociedades hodiernas.
Se, ao nível farmacêutico, a resposta poderá ser encontrada nos medicamentos
anti-depressivos confortáveis, cada vez mais performantes e alguns
possivelmente até menos tóxicos, será que permitem, de facto, alcançar a cura,
tendo até presente o seu prolongamento no tempo e as possíveis dependências a
que podem dar azo? Refira-se que a saúde após a cura não é a saúde anterior,
podendo necessitar de vários tipos de injunções no decorrer do tempo
(Canguillem, 1978). Não há cura e restabelecimento da saúdes em trabalho do
próprio doente, uma elaboração, um discurso, uma temporalidade, uma memória,
uma ficção precisamente da pessoa que está implicada neste processo e que tem
um Eu, não deixando de envolver os seus próximos. Mesmo assim, a cura não traz
automaticamente o bem-estar, uma vez que curar implica ser capaz de sofrer e
tolerar o sofrimento, saber fazer passagens e abrir-se a outros possíveis modos
de vida, o que nem sempre se inscreve nos códigos da felicidade e do prazer que
hoje se almejam. E que dizer logo que os fatores que deram azo a estas
patologias se mantém em continuidade, apesar de todos os tipos de “prozac”? Não
poderão também fazer com que o indivíduo não saia deste imbróglio absolutamente
curado mas possa, sim, continuar algo moribundo, embora possa ter mudado o que
é a sua forma de estar na vida e na sua identidade? Tenha-se presente que as
sociedades hodiernas, procurando escamotear a morte biológica, têm vindo a
segregar muitas outras formas de morte social (Thomas, 1991), que nem sempre
são fáceis de suplantar com os medicamentos e de uma vez por todas.
Ademais, a depressão é hoje definida pela psiquiatria como uma doença recidiva
com tendência crónica. Sendo assim, trata-se de uma forma de vida com a qual
importa saber (con)viver, fazendo a economia de tudo o que a possa lesar.
Tenha-se identicamente presente que o mal-estar resultante dos novos
constrangimentos económicos, profissionais, sociais e culturais, bem como a
precariedade do emprego e da vida privada, das sensações de vazio e de ausência
de suportes, tendem a espreitar de vários lados e os modos de se revelarem
tendem a ampliar-se. Não admira que se revelem novas formas de ansiedade,
depressão e mal-estar/mal-ser que permitem falar de uma forma de depressão de
guerra económica, social, cultural, sentimental e existencial. Não se sabe
muito bem onde começam, se prolongam e terminam estes males, sendo que muitos
se afiguram dificilmente curáveis, podendo exigir antes intervenções periódicas
mais consistentes. Ora, o recurso aos cuidados de saúde termais, não apenas em
função do tratamento de certas doenças de cariz mais biológico, mas também da
busca de lazer, capacidade de descontração, atividades culturais ou
semelhantes, tem-se vindo a manifestar de grande alcance a este propósito. Por
outro lado, muito mais isentos de produtos farmacológicos, também se inscrevem
em tendências recentes.
3. Termalismo na ótica de cuidados de saúde e bem-estar
O recurso aos cuidados termais, enquanto prática de saúde e bem-estar, vem de
tempos de antanho. Na Pré-História, o homem ao verificar que os animais
melhoravam ou curavam as suas feridas, bebendo ou molhando-se nestas águas,
procedeu à sua transferência para os cuidados aos humanos. Enquanto povo, terão
sido os gregos os primeiros a descobrir e fazer uso das propriedades das águas
termais. As primeiras termas, nascentes na Grécia Antiga (2 400 anos A.C.), os
aquários eram designados de Asclepsios, nome do respetivo deus da medicina. Os
crentes nos deuses acreditavam na cura através das águas que eram associadas à
sua divindade e potencialidades curativas. Por sua vez, Hipócrates, considerado
o pai da medicina, não acreditava que a fé curasse, mas sim a água com as suas
propriedades, a luz, as condições climáticas, a dieta, o descanço e o
relaxamento. Se a doença era o desequilíbrio do corpo, estes elementos
articulados entre si contribuiam para o seu (re)equilíbrio. Para si, a
hidroterapia era mais um meio de cura a par de outros. Outros povos, com
destaque para os romanos, judeus, turcos e indianos seguiam esta via.
Falar hoje de termas e termalismo, para além de outras dimensões, traz à
memória as qualidades das águas naturais termais e respetivos cuidados de
saúde. A água em geral é imprescindível para a vida do planeta. Grosso modo,
são-lhe concedidas três significados simbólicos dominantes: fonte de vida, meio
de purificação, centro de regenerescência. Massa indiferenciada e livre, a água
representa uma infinidade de possíveis. Incorporando e trazendo vida, além da
pureza corporal e espiritual, a água confere força, ânimo, alegria, visão,
plenitude, saúde e bem-estar, ainda que a poluição tenda a destruí-la. Sendo a
saúde concebida como sinónimo de bem-estar, felicidade e vida longa sem
maleitas, a água simboliza a vida em toda a sua pujança e o facto de as águas
termais serem meteóricas e brotarem da terra quentes e sulfurosas, também
contribui para estas interpretações. Emergir nas águas, refazer-se num imenso
reservatório com grandes potenciais ou receber jactos das mesnas sobre o corpo
e aí ir buscar novas energias é inerente aos banhos termais.
Etimologicamente, o vocábulo “termas” deriva do grego antigo “thermos”, que
quer dizer “quente”, ou “thermon”, significando calor. Significado idêntico tem
o etimo latina termae(1213), ou seja, “banhos quentes”. Já o termo grego antigo
“therma” refere-se ao estabelecimento de banhos públicos da Antiguidade. O
vocábulo termalismo (1845), derivando de “thermal”, adjetivo de “termas”
(1625), é definido como a ciência de utilização e exploração das águas minerais
e, por extensão, refere-se ao desenvolvimento, organização, exploração e
envolvimento das estações termais. Mais comummente, falar de termalismo faz
pensar no uso da água mineral natural, outros meios complementares para fins de
prevenção terapêutica, reabilitação e bem- estar; em suma, saúde, cura e
recriação. De qualquer modo, intrincam-se aqui dados fundamentais relativos às
águas termais, isto é, águas naturais resultantes das chuvas que, infiltrando-
se por rochas variadas das quais recebem as suas peculiaridades, vêm depois a
brotar quentes da terra4, carregadas de princípios mineralisantes,
hidrominerais e terapêuticos a quem se atribuem vários curas e significados.
Delas se fazem usos diversificados mais correlacionados com a saúde, o bem-
estar e a cosmética.
Historicamente o termalismo tem passado por diversas oscilações, acompanhando
as preocupações com a saúde e a doença, as suas interpretações, as tendências
da medicina e da sociedade, as políticas de saúde, os hábitos, as modas e as
perspetivas do mercado. Na Antiguidade foram sobretudo os romanos que mais
procederam à sua divulgação.Na era imperial, não se limitaram a explorar as
tradicionais nascentes dissipadas na natureza para fins terapêuticos. Graças a
técnicas de aquecimento da água, também as desenvolveram nas cidades que iam
construindo para aí desfrutarem de espaços de relaxamento e bem-estar. Em Roma
ficaram célebres as termas de Caracalla e as de Diocleciano. No nosso
território a sua exploração antecede a fundação da nacionalidade (Cantista,
2008-2010).
A este respeito, não estamos perante um processo linear. Na Europa, durante
toda a Idade Média, apesar da vertente espiritual e sagrada que, aos olhos dos
crentes, envolve as águas termais, muito em virtude dos mistérios acerca das
suas peculiaridades intrínsecas, houve que contar com a oposição da Igreja na
sua vertente de desvalorização do corpo (Le Breton, 1990). Porém, mais tarde
foi o próprio clero a promover a organização de peregrinações aos locais
termais e alguns deles foram mesmo equipados de infraestruturas para a
assistência espiritual e religiosa aos aquistas.
Nestas circunstâncias são sobretudo os árabes, muito avançados em medicina, que
mais continuaram a investir no desenvolvimento termal e nas suas prerrogativas,
numa dupla vertente de saúde e recriação.
No século XVIII, a aristocracia europeia, com destaque para a francesa,
redescobre as termas. A própria corte “vai a banhos” e desfruta de outras
atividades de lazer. Durante um certo tempo instala-se numa instância termal
para aí usufruir das suas prerrogativas. Segundo as crónicas, a corte de D.
João V vai durante doze anos para as termas das Caldas da Rainha, cujas
infraestruturas foram preparadas para o efeito. Nasce, então, a “época termal”,
la “saison”, “the season”. Mas é no século XIX e início do XX que as águas
medicinais se popularizam, com as idas às estâncias hidrominerais para usufruir
das águas com propriedades medicinais (Le Breton, 1990). É também nesse período
que surgem alguns dos modernos tratamentos hidroterápicos. Todavia, a partir
dos anos 1970, com uma nova nosografia das doenças e a implantação da época
farmocopeia, levando à medicamentação da vida e das sociedades, a moda da praia
vem ocupar a componente lúdica das termas. Sob o ponto de vista médico,
envereda-se por um intenso processo de medicina da doença limitada aos muros do
hospital, dos centros de saúde ou dos consultórios médicos, em detrimento de
outras medicinas e terapias.
Neste contexto, o termalismo entra em regressão, ficando nos anos 1980 mais
confinado a uma vertente social. Com a participação do Estado, através da
Segurança Social, são sobretudo algumas franjas da população idosa ou atingida
por doenças crónicas suscetíveis de serem tratadas por este meio que advêm a
principal clientela do termalismo. São-lhes, assim, oferecidos cuidados médicos
e de outros profissionais de saúde, serviços de hotelaria para muitos deles,
atividades ludicas e de natureza ao ar livre, entretenimento, percursos
pedestres, etc. Só que pouco depois, entre nós sobretudo desde finais dos anos
1980, com o aumento veritiginoso dos deficitsda saúde, as respetivas políticas
modificam-se profundamente em favor da desospitalização, implementando
fortemente o ambulatório (Monteiro, 2006). O papel do hospital, enquanto
instância de internamento e de cuidados mais distendidos no tempo, na maioria
dos casos é transferido para o domícílio, sendo de novo a família chamada a
ocupar-se dos seus doentes e os indivíduos a investirem mais na prevenção e
promoção da saúde. Em certos casos, o recurso aos cuidados termais também se
inscreve em períodos de convalescência e recuperações desta índole,
designadamente no que às doenças reumatológicas e ortopédicas diz respeito.
Em contrapartida, pouco depois, com novas janelas de oportunidades de mercado
em torno da crescente preocupação com o corpo, a estética, a vontade de
encontrar novas terapias para os males que ameaçam as sociedades hodiernas
materializados na expressão de “doenças da civilização”, como acima as
analisamos, sem que a medicina convencional se revele totalmente capaz de
responder a todas as ansiedades e expetativas acerca deste fenómeno e até uma
certa saturação do excesso de medicação, surge uma nova dinâmica termal com
produtos mais associados ao lazer e ao bem-estar. Ocupam aqui particular
destaque atividades de spa, banho turco, sauna, solários, massagens,
relaxamento e outros programas similares. O termo spa5, sendo hoje o mais
corrente para designar técnicas de relaxamento, não sendo novo, entre nós
popularizou-se no final do século XX, passando a significar um espaço onde se
fazem tratamentos pela água, vapor ou infusões, normalmente complementados com
massagens e tratamentos médicos não invasivos, que também podem ter lugar fora
das estâncias termais. Só que inseridos no conjunto de atividades oferecidas
nestes espaços auferem igualmente do prestígio das respetivas águas termais e
da sua envolvência. Refira-se que, em geral, as estâncias termais se inscrevem
em locais aprazíveis da natureza e têm vindo a ser dotadas de vários tipos de
infraestruturas compatíveis.
Detendo-nos sobre o perfil dos aquistas, podemos dizer que também tem mudado
bastante. Em geral, o termalista clássico, com rendimentos médios, cultura
popular, idade mais ou menos acima dos 40 anos, ia mais às termas para tratar
uma maleita de cariz respiratório, dermatológico, reumático, musculo-
esquelético, alguma forma de cronicidade … ou prevenir os efeitos patológicos e
sofredores ao longo do ano que se seguia. Já o termalista hodierno, sendo mais
jovem, elitista, escolarizado e mais aberto às inovações culturais e vogas
sanitárias e estéticas em curso, procura o termalismo com o objetivo de
melhorar a saúde na sua ampla dimensão, com destaque para a saúde de bem-estar,
incluindo relaxamento, alívio do stresse, quiçá da depressão, recuperação e
reservatório de energias; em suma, um conjunto de serviços e cuidados que lhe
tragam harmonia corporal integral, condições para prevenir possíveis
patologias, inclusive de cariz mental e social (Domerg, 1992; Sicot, 2014).
Pensar esta intensa busca de bem-estar e a sua articulação com o termalismo,
leva-nos a determo-nos um pouco mais sobre as suas dimensões teórico-empíricas.
Desde tempos ancestrais, que a aspiração ao bem-estar e à sua melhoria se
inscreve na condição humana. Pelo facto de todos sermos humanos trata-se de uma
aspiração justa e comum. Só que estamos perante uma noção extremamente
subjetiva: o que é o bem- estar para uns pode não o ser para outros. É muito
diferente não poder aceder à água potável ou viver numa sociedade moderna como
a nossa. E mesmo assim, quem é pobre ou excluído, não podendo usufruir da
realização das necessidades básicas, ter um emprego, não passar fome, vestir-se
convenientemente, ter uma habitação, ir à escola, usufruir de boa saúde serão
elementos importantes de bem-estar. Esquece-se, porém, que as necessidades
básicas, para além de poderem comportar uma dimensão moral, dada a sua carga
normativa e de justiça social, incluem não só o que é necessário para
sobreviver, mas igualmente a faculdade de poder usufruir de boa saúde para
evitar o sofrimento e a doença e viver corretamente. Ora, a saúde, pelo menos
uma boa dose de saúde, permitindo um mínimo de funcionamento de todas as
faculdades, é inerente aos elementos mínimos da condição humana e do respetivo
bem-estar. A perspetiva fundamental que emana daqui é que toda a vida conta e
não mais uma do que outra, o que a estratificação social e a realidade
económica e social continuam a contrariar. Os indivíduos e famílias de condição
social modesta não usufruem, de modo algum, de condições iguais às de outros
grupos dotados de capital social e cultural mais elevado (Bourdieu, 1979),
sendo-lhe assim vedadas capacidades de bem-estar que apenas estão ao alcance de
outros bafejados pela pertença social.
Para Sen (1985), a vida pode colocar em equação uma série de “functionings”
(modos de ser e fazer) em correlação, como o alimentar-se corretamente,
beneficiar de boa saúde, ser feliz ou vivenciar o prazer; em suma, sobreviver
ou poder fazer outras opções. É o conjunto de capacidades (“ capabilities”) de
que cada um dispõe que lhe confere informações sobre a faculdade de uma pessoa
realizar o seu bem-estar desta ou daquela maneira. Se todos têm direito a uma
vida confortável, nem todos usufruem das mesmas capacidades para a conseguir.
Importa, por isso, identificar os elementos suscetíveis de aumentar o bem-estar
e as respetivas capacidades. Interfere aqui a questão da liberdade real das
pessoas tendo em conta as suas condições objetivas de existência. Refira-se que
as expectativas “naturais” das pessoas, num dado contexto social, podem exercer
um efeito normativo, como acontece hoje com os “dispositivos disciplinares”
(Foucault, 1963) impostos aos indivíduos e às populações quanto à prevenção, à
educação para a saúde ou aos cuidados a doentes. Também as esperanças tendem a
ajustar-se às possibilidades, como acontece normalmente com a frequência do
termalismo por estas ou aquelas clientelas. Nesta ótica, Feinberg (1973)
distingue o que é exigido para viver uma vida minimamente decente,
relativamente a normas realistas num espaço e num determinado tempo, numa dada
sociedade, o que se junta a estas exigências e os (im)possíveis contidos na
sociedade. Com efeito, quem não tem que se preocupar com essas premícias,
decerto que aspira a outros elementos e níveis de bem- estar que poderão
ultrapassar em muito a materialidade da vida, diz-nos Griffin (1986).
Esta perspetiva afigura-se importante para a problemática que aqui nos ocupa,
na medida em que incidir sobre as capacidades permite apreciar as aptidões
funcionais e racionais no âmbito da saúde, podendo ou não recorrer às ofertas
do termalismo. Se se tem vindo a alargar a nosografia das doenças também se
expande o campo das (im)possibilidades abrangidas pelas políticas de saúde, os
mecanismos profissionais, económicos, sociais, culturais e de mercado. A saúde,
porque engloba a vida na sua integralidade e porque por ela se está disposto a
pagar preços sem preço, nunca como nas últimas décadas se afigurou um produto
tão vendável e rentável, mobilizando muitos enredos em torno de si, o que
também não escapa às novas malhas do termalismo. Frise-se que, sobretudo para
quem tem condições para o efeito, vivemos numa época em que a busca de saúde,
bem-estar e emoções fortes parecem insaciáveis e inversamente (Leandro, 2014).
Ora, em matéria de termalismo na perspetiva em que o temos vindo a analisar, o
que nos damos conta é que, inscrito no espírito do tempo, nas novas procuras de
saúde e bem-estar, pesem embora as suas potencialidades curativas, preventivas
e bem-estar, revela-se mais uma capacidade/possibilidade bastante seletiva
tendo em conta os diferentes estratos sociais que lhe podem aceder. Tal como em
tempos idos, metaforicamente tem vindo a reemergir uma “nova nobreza” social
com capacidades para investir e desfrutar de mais ofertas de bem-estar, graças
à interconexão entre este dom da natureza que é água termal, o que económica e
sanitariamente se faz com ela e toda uma panóplia de investimentos em prol de
um processo de “normalização” heterónima da existência ou as condições de
chegada de sujeitos autónomos e racionais na determinação das suas condutas de
saúde e a procura de elementos de bem-estar para a conservar ou melhorar. O
diagnóstico da patologia, do mal-estar e, ao invés, do sentir- se bem e estar
em forma adveio fulcral e o termalismo afigura-se mais uma potencialidade nesse
sentido.
Conclusão
Este exercício de reflexão sobre a interconexão saúde, bem-estar/mal-estar e
termalismo, tendo em conta dimensões históricas, sanitárias, políticas,
sociais, culturais, económicas, aspirações humanas e manifestação de novos
meandros que atravessam estas problemáticas, procurou relevar as transformações
de que estas vertentes da vida têm vindo a ser alvo e o seu impacto social e
sanitário. As novas aspirações que têm vindo a ser forjadas acerca da
integralidade do corpo, da saúde, do bem-estar humano e social, a emergência de
um novo quadro de doenças normalmente inscritas na designação de “doenças
mentais” ou de “doenças da civilização”, fazem com que se olhe para elas de
maneira distinta de há tempos pouco recuados, inclusive no âmbito do
termalismo. Poder-se-á, no entanto, retorquir que o recurso ao termalismo
enquanto forma de terapia, busca de bem-estar e lazer, vem de tempos de antanho
e que muitas pessoas ao longo dos tempos aqui encontraram remédios para as suas
maleitas. Só que a nosografia das doenças, as respetivas concepções, as
políticas de saúde, a pluralidade das terapias, as ofertas do mercado de saúde
e bem-estar, as representações acerca do corpo da saúde e do bem-estar adquirem
nas sociedades hodiernas outros contornos e significados a que o termalismo tem
sabido ajustar-se. É neste contexto que as respetivas ofertas, a par de outras
inseridas em modalidades menos diretivas da gestão da saúde como tem vindo a
ser reconhecido pelo conjunto de observadores do campo da saúde (Fassin, 2001),
fazem apelo a públicos mais selecionados e com mais capacidades de opção por
esta ou outras modalidades de cuidados.