A actual crise sistémica global: crise de paradigma e novos desafios que traz
ao debate
Um dos grandes paradoxos da actual crise sistémica está intimamente interligado
aos sinais evidentes, repetidos de forma sistemática, há mais de uma década,
por reputados organismos internacionais (OCDE e Banco Mundial, por exemplo),
evidenciados pelas chocantes assimetrias na produção e distribuição da riqueza;
crescimento do empobrecimento de cada vez maiores camadas de populações; o
crescimento do flagelo da fome; das doenças e de outras calamidades de registo
social e humano. Singularidades como os casos do colapso do Barings Bank (Nick
Leeson) e da Drexel Burnham Lambert (Michael Milken), na década passada, da
Enron e, presentemente, o escândalo Madoff, com impacto à escala global, são
alguns dos casos mais mediáticos que, apesar da sua singularidade, deveriam ter
merecido um debate mais sério e aprofundado quanto às causas profundas que
estiveram na sua origem.
Face a todas as evidências, que superam, flagrantemente, as singularidades aqui
apresentadas, não pode deixar de se considerar, para além de incompreensível e
paradoxal, as reacções mediatizáveis de surpresa dos agentes políticos, de
diversos quadrantes, bem como o discurso produzido por reputados
«especialistas», face àquilo que era não somente espectável, como há bastante
tempo estava na iminência de deflagrar.
O debate, desde que a crise deflagrou, tem-se centrado mais nos efeitos
imediatos, e não tanto nas consequências a médio longo prazo e, muito menos, na
procura das causas profundas que estão no âmago desta como de outras crises
que, com alguma regularidade, têm sido geradas no ventre do sistema
capitalista, desde os seus primórdios, e deflagrado com graus de intensidade
diferenciados sobre a sociedade em geral, mas atingindo, com particular
violência, as camadas de população mais desprotegidas.
Esta crise sistémica é a primeira do Séc. XXI e, ao invés da generalidade das
crises anteriores, foi gerada na rede de interligação ecossistémica dos
mercados financeiros globais, com capacidade para conduzir ao colapso daquilo
que Erik Starck (2009) referiu, comentando um artigo do Economist.com, como a
possibilidade do colapso da civilização moderna, referindo-se à corrida aos
levantamentos, via electrónica, que se verificou no Outono de 2008.
Este quase colapso ocorreu em 18 de Setembro de 2008, quando o Federal Reserve
registou uma corrida aos levantamentos electrónicos, com cerca de 550 biliões
de dólares a serem levantados numa questão de horas. O Tesouro injectou um
montante de 105 biliões de dólares para compensar, mas rapidamente se concluiu
que este montante era insuficiente para travar a vaga de levantamentos. Estava
a ocorrer uma corrida electrónica aos bancos em plena crise financeira.
Decidiu-se, então, encerrar as contas e anunciar uma garantia de 250 mil
dólares por conta para impedir que o pânico propagasse na rede financeira. Se
esta medida não tivesse sido implementada, estimava-se que, nessa tarde de 18
de Setembro, 5,5 triliões de dólares teriam sido levantados do sistema
monetário dos EUA, o que, segundo as autoridades financeiras americanas, teria
levado ao colapso da economia americana e da economia mundial no prazo de 24
horas. Segundo Durden (2009), teria sido o fim do nosso sistema económico e
político tal como o conhecemos.
Esta situação de risco, que ocorreu em plena crise financeira, escapou à
atenção dos media até que Paul Kanjorski revelou estes factos numa entrevista à
C-Span (Durden, 2009), explicando como o Federal Reserve informou os membros do
Congresso acerca da corrida aos bancos e da natureza dessa corrida. De acordo
com Kanjorski, o levantamento de 550 biliões de dólares ocorreu durante um
período de cerca de uma ou duas horas. Kanjorski ainda revelou, nessa mesma
entrevista, a estimativa de Bernanke e Paulson, de colapso do sistema económico
americano para as duas da tarde e mundial num prazo de 24 horas, caso algo não
fosse feito.
Recentemente, acerca do provável agravamento da crise, a muito curto prazo,
segundo o número especial de Junho de 2009 do GEAP1, «três vagas»
particularmente destruidoras para o tecido económico e social irão convergir
num ponto sistémico, temporalmente localizável, no Verão deste ano,
transportando em si um agravamento da crise com consequências imprevisíveis
para todo o sistema global em crise, particularmente agravada por situações de
eventual cessação de pagamentos pelos EUA e Reino Unido:
· a vaga de desemprego massivo: cujo impacto varia conforme os países da
América, Europa, Ásia, Médio Oriente e África;
· a vaga das falências em série: empresas, bancos, imobiliário, Estados,
regiões, cidades;
· a vaga da crise terminal dos Títulos do Tesouro dos EUA, do dólar e da libra
e do retorno da inflação.
O impacto da sincronização destas três vagas no sistema mundial, de acordo com
a referida publicação, sentir-se-á de um modo particularmente violento, se bem
que com graus e velocidades diferenciados, em conformidade com a capacidade das
infra-estruturas de suporte.
CONTEXTOS DE CRISE DE PARADIGMA
A coexistência interactiva de todo o tipo de organizações no mercado global,
acessível a partir do ciberespaço, deslocou o plano da cooperação/competição no
terreno, região ou território, para o plano de uma racionalidade colectiva
emergente, com consequências intersubjectivas ainda não claramente
perceptíveis, ao nível deliberativo das expectativas e estratégias interactivas
locais.
O modelo de um mundo mecânico, linear e previsível foi substituído por modelos
orgânicos não-lineares com capacidade de previsão restrita, o que significa que
as organizações, em geral, e as empresas, em particular, têm de sobreviver em
contextos de imprevisibilidade complexa, nos quais têm de agir e reagir com
eficácia adaptativa.
A teia ecossistémica interactiva, constituída pelo cruzamento local/global
permanente, desloca a necessidade imperativa de respostas racionalmente ágeis,
por parte das organizações, no que diz respeito ao seu crescimento e
desenvolvimento.
A fraca percepção reflexiva deste tipo de realidade produz, inevitavelmente,
efeitos a níveis da produção do juízo deliberativo com consequências
económicas, políticas e sociais, desencadeadoras das situações e processos
fracturantes que estão na origem das chamadas crises de paradigma.
O consensual assentimento de que as organizações são sistemas adaptativos
complexos, legitima a afirmação de que também o mercado, no seu exercício
dinâmico concreto, aos níveis locais e global, é um sistema adaptativo
complexo, o que tem consequências ao nível da natureza das chamadas leis de
mercado, construídas no pressuposto que atribuía ao mercado uma natureza
fundamental mecânica, o que não é o caso. A natureza fundamental do mercado é
orgânica e é, precisamente, a partir desta evidência que é preciso pensar
naquilo que pode ser empiricamente identificado como princípios gerais
organizadores intrínsecos auto-sustentados, a partir dos quais seja possível
configurar algum tipo de regularidade compatível com a noção de lei.
Nesta acepção, as práticas de gestão, ligadas ao controlo mecanicista, que
revelaram alguma eficácia no período Industrial, de mudança menos acelerada,
são incompatíveis com a organicidade dinâmica acelerada que constitui as
actuais organizações, incluindo o mercado.
O processamento e trocas de informação, de matéria e de energia são bastante
mais complexos nos actuais contextos e cibercontextos, reconhecidamente
condicionados pela incontornável incerteza, intrínseca a qualquer sistema
dinâmico adaptativo, o que significa que o processamento cognitivo, ligado aos
processos homeostáticos das organizações, incluindo a organização mercado, é
bastante mais exigente a níveis da tomada de decisões, em que a informação
emerge tumultuosamente e em rede, sem que haja tempo para a preparação de
cenários de antecipação projectiva.
Em contextos de crise de paradigma, os modelos de equilíbrio perdem eficácia, o
que significa que as organizações têm de lidar com dinâmicas flutuantes
permanentes que alternam rapidamente entre o equilíbrio e o desequilíbrio, o
que significa, ainda, que qualquer produção de juízo deliberativo tem de
incluir o contributo activo dos mecanismos ecossistémicos perceptivos, em
interface com os processos sistémicos homeostáticos. A percepção tem de ser
reflexivamente muito mais intensa e rápida porque não há tempo para construir
cenários antecipadores, as respostas a situações que não se fazem anunciar têm
de ser dadas espontaneamente momento a momento. Para situações emergentes tem
de haver respostas emergentes eficazes.
Roger Lewin (2004) tem uma expressão interessante, aplicável aos novos
contextos sistémicos: «Fazer mundos novos, fazer de Deus». Esta frase refere-se
a uma ideia de jogo e construção de cenários em contextos evolutivos trabalhada
por John Holland, a quem o autor se refere amigavelmente como o «Sr.
Emergência». Holland define a mesma construção de cenários como a criação de
uma estrutura de interacções. Subjacente a esta ideia, está a convicção de que
os sistemas adaptativos complexos (SACs) mantêm uma coerência interna, apesar
da mudança, ou seja, organizam-se a partir de princípios gerais. O objectivo
proposto por Holland é o de se isolar esses princípios, localizando-os nos SACs
a partir de «pontos-chave» simétricos e a partir dos quais é possível a
construção de respostas adaptativas eficazes.
A base conceptual do modelo de Holland aproxima-se bastante quer da proposta
Popperiana de «teoria antecipadora», inspirada no conceito Kantiano de «a
priori», quer do conceito de «schemata» de Gell-Mann.
Pode considerar-se um exemplo simples de «schemata» aquele que resulta de uma
adaptação rápida, em que a adaptatibilidade, em cada período decisional, é
avaliada por um valor atribuído pela resposta imediata dos modelos internos
(mecanismo antecipador), formada a partir dos valores adaptativos.
O QUE É QUE O PARADIGMA NEOCLÁSSICO IGNOROU?
A actual crise financeira abriu um espaço sistémico de reflexão acerca da
organização económica e financeira, dominada pela, já efectiva, economia
financeira globalizada, tendo revelado fragilidades ao nível das redes de
partilha, produção e consumo de risco.
Embora, no passado, tenham existido outras crises financeiras, esta foi a
primeira crise a introduzir aquilo que pode ser designado por «crise
académica», em que é posto em causa, pelos acontecimentos e pela própria
comunidade de agentes financeiros, o paradigma neoclássico até há pouco tempo
dominante na economia financeira.
Da reflexão acerca da crise, no seio desta comunidade, assim como no seio da
própria ciência económica, resultou o reconhecimento da insuficiência dos
sistemas de avaliação e controlo de riscos, aliados à importância dos fenómenos
de complexidade em redes adaptativas complexas.
Destaca-se, a este propósito, uma síntese feita por John Whitfield, membro do
Instituto de Santa Fé, num artigo do SFI Bulletin (2008, pp. 33-37), na qual o
autor aborda a actual crise financeira e os resultados de um encontro promovido
pelo mesmo Instituto e pela SAC Capital Partners em Nova Iorque, em Outubro de
2007, acerca da modelação do risco nos mercados financeiros.
Para além da demonstrada importância dos modelos vindos das ciências da
complexidade como alternativas mais realistas e com maior eficácia na gestão e
controlo de riscos, em detrimento dos modelos financeiros tradicionais, vindos
do já falido paradigma neoclássico, o encontro acima referido, promovido pelo
Instituto de Santa Fé e pela SAC Capital Partners, relevou um ponto central que
escapou e escapa à teoria financeira tradicional, trata-se do problema de
amplificação do risco, resultante da diversificação financeira, com origem na
emergência, em redes complexas, de riscos dinâmicos interligados.
Esse mesmo encontro permitiu concluir que não se pode pensar em estabelecer
nenhum paralelismo comparativo entre carteiras de investimento e simples
cabazes de bens. De cada vez que os investidores constituem uma carteira, estão
a criar conexões entre os activos, independentemente das correlações
previamente existentes entre as rendibilidades passadas dos mesmos.
Os fundos de investimentos podem gerar, em momentos de crise, quedas
simultâneas nos preços de activos, devido ao facto de os mesmos activos
surgirem em simultâneo nos mesmos fundos. Um problema local pode, rapidamente,
propagar-se em rede a todo o mercado.
Segundo Whitfield, a estrutura de rede do mercado poderá ter amplificado os
efeitos da crise no mercado hipotecário, o autor destaca o caso do Global Alpha
Fund da Goldman Sachs, o qual foi fortemente atingido pela crise da subprime,
apesar de não ter investido na subprime.
O problema, revelado pela análise de rede, foi o de que os fundos que tinham
assumido posições no mercado da subprime, tinham, também, assumido posições em
outros activos, nos quais o Global Alpha Fund tinha, igualmente, assumido
posições. A queda destes outros fundos levou a uma queda do valor do fundo da
Goldman Sachs.
A criação de riscos, interligados por via da criação de conectividades na rede,
e a dinâmica de acontecimentos tipo avalanche, ou dos chamados efeitos dominó,
são identificados como ocorrendo em diferentes sistemas complexos, tendo sido
objecto de investigação e de modelação, no seio das ciências da complexidade,
por Kauffmann (1993) (as chamadas redes NK de Kauffman) e pelo ramo das
ciências da complexidade que investiga o fenómeno da criticalidade auto-
organizada (Bak, 1996).
A MODERN PORTFOLIO THEORY QUESTIONADA
A análise tradicional de rendibilidade/risco é insuficiente para a avaliação
destes riscos de rede. Um problema central colocado é o problema da definição
do agente, pois cada agente que detém uma posição diversificada associa a si
mesmo uma rede de activos, cujos valores são interligados pela transacção da
carteira como um todo.
Está, assim, na altura de rever a modern portfolio theory, construindo-se uma
nova teoria que faça uso das ferramentas mais eficazes vindas das ciências da
complexidade.
Está, também, na altura de ter presentes as palavras de Paul Tiffany, numa
conferência na Haas School of Business da Universidade da Califórnia, em 15 de
Agosto de 2008: «O que é que nós sabemos acerca da gestão moderna do séc. XXI?»
' «Não muito» ' «Porquê?».
O discurso é intencionalmente sinalizador, revelando alguma evidência de uma
generalizada crise perceptiva com consequências no processamento cognitivo
sobre a natureza e significado da gestão. O que nos remete para uma
problemática permanentemente destacada nas últimas décadas, a saber: a
transição de uma economia centrada na gestão de activos tangíveis (máquinas e
pessoas) para uma economia centrada na gestão de activos intangíveis (IP e
«trabalhadores do conhecimento»), na qual as redes e a criação de conhecimento
nas redes são ainda questões não resolvidas pelos teóricos da gestão.
A questão das redes conduz à questão do ciberespaço, bem como à própria
percepção cognitiva do ciberespaço, por parte de cada agente humano.
Durante algum tempo, a comunidade científica trabalhou a noção de rede a partir
de um pressuposto mecânico de propriedades gerais fixas determinantes. O
desenvolvimento tecnológico, acompanhado da emergência de redes ciberespaciais,
trouxeram uma nova percepção das redes, em que estas deixaram de ser
interpretadas e compreendidas como estruturas mecânicas, passando a ser
interpretadas e compreendidas como estruturas complexas dinâmicas adaptativas,
o que significa que, tal como quaisquer SACs, as redes mudam e evoluem, em
relação com o cruzamento das interacções locais/globais.
Nos actuais contextos de globalização, em que o exercício do conhecimento e a
sua própria produção se misturam ao nível geoestratégico global, não se coloca
apenas a necessidade de um exercício perceptivo acelerado por parte de cada
agente, mas também a necessidade de uma expansão da reflexividade, ligada ao
exercício da racionalidade nos processos acelerados de tomada de decisão. De
outro modo, a uma crise suceder-se-á outra e outra crise, cada vez mais
complexas, em que o colapso do sistema deixará de ser potencial para passar a
ser uma realidade concreta irreversível.
A REFLEXIVIDADE, OS MERCADOS FINANCEIROS E OS SACS
O exercício de reflexividade, ligado aos processos homeostáticos cognitivos de
cada agente é, neste momento de crise global, de importância operativa vital,
no sentido em que estão em causa valores de vida e de sobrevivência à escala
global.
Nos sistemas, a reflexividade é sinalizada como uma capacidade sistémica
disposicional constitutiva, relacionada com os mecanismos homeostáticos dos
respectivos sistemas.
O termo reflexividade tem origem no latim reflexu e significa «dobrado sobre si
mesmo». A reflexividade está ligada ao mecanismo consciente de projecção de
imagens, incorporado nas sínteses cognitivas de produção de juízo sistémico
reflexivo, dito também racional, sendo, precisamente, o exercício de
reflexividade que permite uma maior eficácia interpretativa nas trocas de
informação, indispensáveis à integridade adaptativa das redes sistémicas.
Quando um mercado financeiro é pensado e teorizado enquanto tal, este tem de
ser pensado a partir das redes sistémicas, as quais incluem investidores,
instituições financeiras, empresas, Estados, bem como uma diversidade de outros
agentes.
Pensar na instituição mercado financeiro, à luz da noção de SACs, implica
pensar na reflexividade, nos mecanismos homeostáticos das redes sistémicas e no
processamento de informação. Se o preço de mercado reflecte o valor
fundamental, então o processamento de informação em rede, por parte dos agentes
financeiros, também terá de ser capaz de, reflexivamente e a partir da própria
dinâmica de mercado, produzir uma síntese sistémica de equilíbrio que constitua
uma avaliação final e total do sistema, relativamente ao objecto de avaliação.
Com o desenvolvimento das ciências da complexidade e da modelação baseada em
agentes, tornou-se possível desenvolver modelos de mercados artificiais, em que
os agentes artificiais são programados para simularem os agentes financeiros
enquanto SACs que aprendem acerca do mercado e das estratégias de investimento.
Nestes modelos computacionais, podem simular-se mercados financeiros, em que
redes de agentes virtuais interagem entre si e aprendem, reflectindo acerca das
suas estratégias e decidindo acerca de onde, quando e como investir. A
simulação destes mundos virtuais pode ser expandida em complexidade para
incluir economias artificiais, empresas, Estado, etc., o que permite investigar
a relação entre os comportamentos dinâmicos de mercado e as regras dos agentes.
O modo como os agentes adaptativos reflectem acerca da informação determina os
padrões dinâmicos que emergem para estas economias simuladas. Assim, a
reflexividade e a emergência de mecanismos reticulares homeostáticos de mercado
ocorrem naturalmente nestes modelos, o que os torna operativamente mais
realistas e eficazes, no que diz respeito ao comportamento económico,
relacionado com a eficiência de mercado.
AS ORGANIZAÇÕES ÁGEIS E A PROCURA DE RESPOSTAS À CRISE ACTUAL
Nas primeiras décadas do Séc. XXI, mais de 80% dos humanos podem ter acesso às
redes online(Lévy, 2001), desenvolvendo, nessas redes, actividades relacionadas
com a investigação e aprendizagens, bem como com processos de produção e
comercialização e, ainda, com intercâmbios de informações e espaços de
sociabilidade que configuram uma espécie de «ciberinteligência» relacional
reflexiva global, electricamente contraída, localizada num «espaço
electricamente contraído», designação dada por Marshall McLuhan em 1964 para
ciberespaço, termo introduzido por William Gibson no seu conhecido romance
Neuromante e que rapidamente circulou com os significados de espaço de
informação partilhada, espaço virtual, mundos virtuais, campo electrónico,
esfera de informação e campo digital. E é, precisamente, com essa espécie de
ciberinteligência relacional, num «espaço electricamente contraído» ou
ciberespaço, que as organizações, em geral, têm de lidar e sobreviver.
Neste sentido e contexto, e como resposta à crise, é pertinente retomarmos a
abordagem do conceito de organização ágil criadora de conhecimento.
A noção de agilidade, aplicada às organizações criadoras de conhecimento,
pretende dotá-las de maior dinamismo e abertura aos contextos agressivamente
orientados para o conhecimento, o que tem como consequência uma permanente
atenção aos desempenhos dos agentes e da organização, bem como ao valor dos
produtos e dos serviços e, ainda, às aceleradas mudanças dos contextos de
oportunidades. A agilidade depende das pessoas, da relação e da cooperação
entre as pessoas, das suas competências, do seu conhecimento e do seu acesso à
informação.
Assim, o virtual deve ser integrado nas empresas ágeis como um recurso
produtivo. Deste modo, as noções de rede, de virtual e de contexto integram a
noção de agilidade, configurando-se como elementos estruturantes da própria
noção de agilidade, aplicada às organizações criadoras de conhecimento, cujos
principais atributos são a comunicação, a relação e a cooperação.
Deste modo, uma organização ágil criadora de conhecimento pode ser definida
como uma configuração orgânica e dinâmica de espaços de relações e cooperação,
bem como o nexus de uma rede de relações e cooperação, a rede ágil, da qual
emerge um espaço de relações e cooperação virtual.
Nestes espaços de relações e cooperação, são, interactivamente, cruzados e
entrecruzados múltiplos e diversos contextos partilhados, organizados a partir
de relações de empatia, confiança e cooperatividade, referidos a múltiplas e
diversas organizações.
A multiplicidade e diversidade de contextos inter-relacionais e inter-
cooperativos, envolvidos na criação de conhecimento, permitem o desenvolvimento
de uma cultura de rede disposicionalmente adaptativa e complexa, eficaz em
termos de vantagem competitiva, no que diz respeito à partilha, difusão e
utilização de conhecimento.
A natureza de uma organização ágil criadora de conhecimento é determinada pelas
acções e interacções, metabolicamente energéticas e extremamente complexas,
enraizadas na experiência, percepção, interpretação e compreensão quotidianas
locais/globais, ligadas aos mecanismos conscientes, nos quais o exercício de
reflexividade cognitiva, conectado com os processos homeostáticos cognitivos,
tem um valor de sobrevivência para práticas de adaptação e desenvolvimento,
consideradas vitais, pela sua eficácia, como respostas em tempos de crise.
Por sua vez, a natureza das instituições ágeis criadoras de conhecimento
permite, às mesmas, percepcionar, em «tempo agora» (Beamish, 2004), quer as
micro, quer as macro alterações, ocorridas e sinalizadas pelo mercado e, assim,
agir e reagir em conformidade.
Com efeito, pequenas alterações moleculares podem ser aceleradamente captadas e
interpretadas pelas redes ágeis, dotando-as de informação relevante, acerca das
relações que organizam o mercado, o que permite à organização ágil identificar
propensões e configurar respostas antecipadoras que envolvem estratégias e
eficácias deliberativas, à semelhança de qualquer organismo inteligente, com
comportamento ecossistémico, sujeito às leis da natureza, assentes em leis
físicas fundamentais da matéria e do universo, o que a compromete com uma
origem e finalidade internas para produzir ordem, podendo, assim, atribuir-se-
lhe um valor disposicional intrínseco para a produção de conhecimento.
A CRISE E O NECESSÁRIO REENVIO PARA QUESTÕES DE NATUREZA ÉTICA
Embora reconhecendo-se a importância da produção de conhecimento como resposta
à presente crise, o assentimento generalizado de que a mesma evidencia aspectos
de colapso ecossistémico coloca, de forma irrecusável, algumas questões de
natureza ética.
Comecemos pela incontornável questão da responsabilidade. Responsabilidade do
latim respondere é um nome para uma capacidade sistémica disposicional,
intrínseca a qualquer agente humano autónomo e que o torna apto a responder
pelas suas acções e respectivos efeitos, bem como a aceitar as respectivas
consequências pelo impacto que as mesmas possam ter em si mesmo e nos outros,
entendendo-se por outros, outros agentes e meio. Logo, mais do que uma figura
conceptual, a responsabilidade tem uma realidade concreta ao nível do exercício
de autonomia deliberativa de cada agente humano.
A questão da responsabilidade, conduzida até ao limite da mesma, coloca, num
plano de transcendência, uma outra questão, a saber: a responsabilidade pelo
exercício da própria responsabilidade. Neste sentido, coloca-se, ainda, uma
questão imperativa: se, na actual crise, tivesse havido um pleno exercício de
responsabilidade, por parte de cada agente, a mesma poderia ter sido evitada ou
poderia não ter atingido os contornos de colapso sistémico global que atingiu?
Colocada a questão num encadeamento de questões, uma outra questão emerge: qual
o valor da responsabilidade, em termos gerais, e o valor da responsabilidade de
cada agente, em termos particulares?
O que é essa coisa a que, nós humanos, chamamos valor? Estamos a falar de
«value in use e value in Exchange» (Adam Smith)? Estamos a falar do valor como
«virtude» (Sócrates/Platão)? Ou de valor como um «Bem Absoluto» (Platão)?
Talvez da natureza cósmica do valor como umbonum (Aristóteles) ou do pensamento
cristão, em concordância com Aristóteles, omne ens est bonum? Ou do valor como
uma subordinação do desejo ao desejável? Ou talvez , etc... etc... etc...
Em nome do imperativo de responsabilidade, como é que nós, agentes, poderíamos
ter evitado a crise? Em bom rigor, não se trata de saber se poderíamos ter
evitado a crise, mas de como poderíamos ter evitado a crise. Assume-se, deste
modo, que poderíamos. Se admitirmos que poderíamos, então também teremos de
admitir que temos poder, o poder de agir de modo a termos podido evitar a
crise. Mas o que é ter poder?
A noção de poder vem do latim potere e significa ter autoridade, direito e
energia para decidir acerca de algo ou alguma coisa, ou seja, ter poder
significa ter a liberdade (libertate) para decidir. Mas o que significa ter
liberdade? Significará uma sucessão de comportamentos? Ou significará poder
escolher, a partir de referências éticas inteligíveis que possam ser abordadas
por exercícios éticos de reflexividade?
Há um dizer do escolher e do agir comprometido com uma gramática da acção:
escolher com intenção e agir com intenção, o que significa que se pode escolher
e agir de acordo com uma proporção ou proporções, adequadas a objectivos, fins
ou finalidades.
No assentimento de que qualquer agente humano autónomo é capaz de exercícios de
reflexividade, então qualquer agente humano autónomo está comprometido com uma
noção de inteligibilidade e, ainda, com uma noção de razão (ratione) para agir,
a qual remete para uma causalidade originante, a ser interpretada, na sua
ligação ao sentido e significado da responsabilidade, ela mesma, enquanto
capacidade sistémica disposicional, incorporada em qualquer agente humano
autónomo e a partir da qual os respectivos agentes podem ser responsabilizados
como sujeitos capazes de vontade (voluntate), ou seja, capazes de agir a partir
da sua própria autodeterminação para a acção, segundo fins postos por si
mesmos.
Deste modo, e em concordância com Kant, já não se trata, de nós humanos,
agirmos como se pudéssemos universalizar cada uma das nossas acções, mas sim, e
em concordância com Hans Jonas, de agirmos de tal maneira que os efeitos das
nossas acções não destruam a possibilidade de vida futura.
CONTEXTOS SOCIAIS COMUNICACIONAIS ÉTICOS E COGNITIVOS E A SUA INTERFACE COM O
RISCO
Esta ideia de vida futura está subjacente a toda a acção humana, a qual ocorre
em contextos sociais comunicacionais éticos e cognitivos. Quando um processo
comunicacional se inicia, cada interveniente vai desenvolvendo um conjunto de
argumentos discursivos, suportados pelo meio ambiente físico, cultural, social,
económico, político e civilizacional em que cada um está inserido e
comprometido.
A comunicação humana não segue um esquema empirista simples de entrada-saída. O
cérebro humano é ressonantemente interactivo e projectivo e, assim, dependente
da utilização de conhecimento e experiência antecipadores, informacionalmente
contextualizados, bem como dos respectivos mecanismos intencionais, os quais
estão sempre contaminados por aquilo que cada agente considera ser o seu
interesse, ou os seus interesses particulares, e que, no caso dos agentes
humanos, aquilo que é visível para todos é que esse interesse ultrapassa o
interesse ligado aos problemas de adaptação, «bem-estar», crescimento e
desenvolvimento, para se fixar nos sentimentos e práticas desagregadoras de
ganância, a mesma ganância que tão activamente está por detrás desta crise, tal
como esteve por detrás de outras.
O problema é o de que os efeitos perversos directos da ganância já não se dão
apenas à escala humana local, mas, sim, à escala planetária, pondo em risco não
apenas a vida humana no planeta, mas todas as outras formas de vida e o próprio
planeta, tornando-se, assim, imperativo colocar a questão da responsabilidade
em conexão com o risco e a percepção do risco.
Numa avaliação de risco, na qual os agentes envolvidos têm interesse em apoiar
uma determinada tomada de decisão, existe a inevitável contaminação dessa
avaliação pela subavaliação dos cenários considerados como desfavoráveis à
mesma decisão. Isto inclui, não apenas enviesamentos nos pressupostos e no
processo de quantificação de risco, mas também enviesamentos nas interpretações
dos resultados.
A questão que é colocada acerca da avaliação humana do risco é a de que a mesma
avaliação é, em termos gerais, feita a partir da perspectiva de superestruturas
que transcendem os planos ontológicos dos sistemas e dos problemas, eles
mesmos. Chame-se a esses planos: «planos de transcendência», por exemplo.
Nos mesmos «planos de transcendência», temos aquilo que designamos por jogos
políticos, económicos, militares e científicos, que introduzem um enviesamento
ontológico naquilo que diz respeito à vida e morte dos sistemas. As avaliações
de risco não são feitas acerca daquilo que constitui uma ameaça ou uma
oportunidade para os sistemas, em si mesmos, mas, pelo contrário, aquilo que
está a ser feito são avaliações dos discursos e estratégias de poder
comprometidos com a economia, a política e a ciência.
E, para complicar, o risco tornou-se, nas economias de hoje, um produto que
visa a satisfação do prazer, o que levanta a questão: quais são os efeitos
fenotípicos, sintetizados e metabolizados por uma neurocognição do risco? Até
que ponto estarão a ser organismicamente bloqueados os mecanismos
homeostáticos, os quais incluem, por exemplo, sentimentos de fundo
sinalizadores? Quais são as avaliações de risco que os agentes humanos, na
condição de alienados e enquanto consumidores de produtos de risco, podem
produzir? De que modo não estarão a ser afectados pelos efeitos de uma cultura
e de uma economia produtora de risco, de uma economia que está a alimentar-se
do risco para o seu próprio desenvolvimento?
É um facto, cada vez mais evidente, que se tem vindo a acelerar o processo de
uma economia ligada à produção de risco, como, por exemplo, o risco tecnológico
e científico, assim como as dinâmicas de guerras e os pós-desastres naturais
(Klein, 2007), o que nos torna pessimistas e nos faz colocar a seguinte
questão: passarão as crises a fazer parte intensiva do pacote de produtos
económicos?
Tal como é reconhecido pelo mainstream internacional, é espantosa e perigosa a
capacidade que o sistema capitalista tem para se reinventar. Ironicamente, tudo
indica que poderá sobreviver aos seus criadores humanos e permanecer num mundo
robotizado. Esta natureza adaptativa dos sistemas é, também, evidenciada pela
capacidade que o sistema capitalista tem «de se transformar, em função dos
contextos históricos que se vão sucedendo, e ao mesmo tempo manter determinadas
configurações básicas que lhe conferem a identidade e a vitalidade próprias»
(Murteira, 2008, p. 160).
Peter Singer, num dos capítulos do seu livro Um Só Mundo, que tem por título
«Um mundo melhor», cita o filósofo chinês Mozi, o qual, dizendo-se «horrorizado
com a devastação provocada pela guerra no seu tempo», perguntou qual seria a
via para «o amor universal e o benefício mútuo»? E respondendo à sua própria
pergunta terá afirmado: «É considerar os países dos outros como o nosso próprio
país».
Esta é uma máxima que, tal como outras máximas, apela para valores éticos de
fraternidade, os quais, nunca como agora, se tornaram fundamentais, quer em
termos altruísticos, quer em termos práticos e pragmáticos. É um facto que
vivemos num mundo globalizado e que qualquer acção local tem repercussões
globais. Uma crise local tem efeitos globais, actuar ao nível dos efeitos é
meramente paliativo. É nas causas que devemos actuar, mas para isso teremos,
também nós, de nos reinventarmos, reinventarmos a nossa fraternidade e
responsabilidade, fazendo com que as nossas máximas não fiquem cristalizadas no
papel ou latentes nas intenções, sob pena de não sobreviver nenhum humano para
contar a história da Humanidade.
Os trabalhos da bióloga Lynn Margulis têm contribuído com informação vital
acerca dos comportamentos cooperativos. Sabe-se actualmente que os
comportamentos cooperativos têm uma base «genómica» e que foram seleccionados
pela sua eficácia, ao nível das estratégias cognitivas que visavam a
identificação de oportunidades, bem como a resolução de problemas que diziam
respeito aos grupos sociais.
A ideia darwinista de competição redutora tem-se revelado cada vez menos
eficaz, ao nível da criação das estruturas, e, até mesmo, ineficaz ao nível das
superestruturas, as quais, dado o nível de complexidade, estão extremamente
dependentes daquilo que se chama acordos, pactos ou alianças. Num mundo em
rede, as respostas têm de ser dadas pela rede, mas sem comportamentos de
cooperação não temos rede, e se não temos rede, não temos nada, simplesmente
não sobrevivemos, e claro que se não sobrevivermos, a crise fica resolvida,
porque a crise somos nós.
No seu livro Microcosmos, Lynn Margulis estabelece alguma relação entre os
humanos, a biosfera, o ego de Freud e o «ridículo papel de palhaço de circo
cujos gestos têm a intenção de persuadir a plateia de que todas as
transformações no palco ocorrem mediante ordens suas». Esta ilusão de domínio/
controlo assemelha-se à perigosa ilusão de domínio/controlo da natureza. A
natureza é uma rede autónoma, auto-referente e autopoiética que já existia
antes de nós e continuará a existir depois de nós, e sem nós, se não nos
conseguirmos libertar, a tempo, do nosso complexo de seres eleitos feitos à
semelhança de Deus, suportado pelo mecanismo psicodramático da trindade
edipiana.
NOTAS
1 GEAB n.°36 (Verão 2009, edição especial), http://www.leap20s20.eu/.