Uma nova ordem económica?
Uma nova ordem económica?
Mário Murteira
Em 1974, a Assembleia-Geral da ONU aprovou por larga maioria (com o voto contra
dos EUA) um documento intitulado «Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos
Estados» que consagrava formalmente a «Nova Ordem Económica Internacional»
(NOEI), um quadro de direitos e deveres favorável aos interesses do que, na
época, se designava por «Terceiro Mundo», ou seja, o mundo dos países
«subdesenvolvidos» ou, mais delicadamente, dos países «em desenvolvimento».
Procurava-se reduzir a «dependência» destes países em relação ao «Primeiro
Mundo», limitar o poder das empresas multinacionais, criar condições para
estratégias de desenvolvimento «auto-centradas» e isto com o apoio do chamado
«Sistema Socialista Mundial», ou seja, o conjunto dos países de planificação
centralizada segundo o modelo soviético.
A «Carta» reflecte assim determinada conjuntura económica e ideológica
internacional muito diversa da que conhecemos na primeira década do Séc. XXI.
Julgo importante assinalar neste confronto, não apenas a questão ideológica,
mas também a questão dos actores. Nos anos 1960 e 1970, aquilo que designo por
«conjuntura ideológica» estava estreitamente associada a um certo número de
actores, ou forças apostadas na transformação social: partidos considerados «de
esquerda» mais ou menos radical, socialistas e comunistas, sindicatos capazes
de mobilizar multidões de trabalhadores, partidos ou movimentos de libertação
nacional. Independentemente do juízo que possamos fazer, hoje, sobre a
fidelidade aos respectivos programas, ou sobre a própria consistência desses
programas, o ponto a assinalar é a capacidade de tais actores para
efectivamente mudar, transformar o contexto económico, político, social e
cultural envolvente. Eles transportavam consigo não só interpretações da
realidade, que exibiam como bandeiras de luta, mas também instrumentos
poderosos da sua transformação
Claro que os papéis desempenhados foram muito diversos, o que não é de
estranhar se pensarmos na heterogeneidade de situações que se verificavam nas
economias e sociedades que constituíam qualquer dos três «mundos» em questão.
E mais: com o correr do tempo, «actores» e «argumentos» mudaram
significativamente. Basta comparar, por exemplo, o que era o sindicalismo
norte-americano, inglês ou francês nas décadas de 1950 ou 1960, com a realidade
sindical nesses países nos finais do século passado; ou os partidos trabalhista
e socialista na Grã-Bretanha ou na França, nas mesmas datas. Ou ainda os
discursos ideológicos dos movimentos de libertação nacional na Guiné-Bissau
(PAIGC), Angola (MPLA) e Moçambique (Frelimo) nos anos 1970 e vinte ou trinta
anos mais tarde, já bem instalados no poder.
Mas o ponto que importa destacar é outro: não se trata de julgar ou avaliar
«actores» e «argumentos»; trata-se simplesmente de assinalar ou identificar
forças sociais e políticas activas, movendo-se em determinado e complexo quadro
ideológico. Em contraste com o tempo presente em que, à primeira vista, não se
vislumbram forças e ideologias convincentes em termos de capacidade de
transformação social. Abunda, sem dúvida, o discurso ideológico crítico, mas
escasseiam os instrumentos de acção correspondentes. É talvez significativo,
nesta perspectiva, comparar a representatividade, por um lado, e o efectivo
poder (formal ou informal), por outro, de instâncias como o Fórum Social
Mundial e o Fórum Económico Mundial, posicionados em frontal oposição nas suas
análises e propostas.
Com efeito, parece mais fácil identificar as forças e interesses apostados na
manutenção do statu quo, embora com as adaptações julgadas convenientes para a
sua própria sobrevivência.
Nesta matéria, aliás, é interessante considerar análises actuais sobre o futuro
da chamada corporate governance, expressão que se pode traduzir por governo ou
governação das sociedades. Dado o poderio que estas podem concentrar, muito
superior ao de muitos «governos» nacionais que povoam a ordem internacional
formal, discutir os meios e fins dessa corporate governance pode surgir, no
mundo de hoje, tão ou mais relevante do que a discussão da figura da
«democracia política» ao nível do Estado nacional.
É também necessário lembrar que a importância dos meios de comunicação social
no nosso quotidiano não equivale a transparência da realidade circundante. Essa
«transparência» é, em larga medida. ilusória e frequentemente mais
mistificadora do que informadora. Há uma ambiguidade essencial neste domínio: a
chamada «comunicação social» é, ou pode ser, portadora de maior visibilidade,
tanto como de maior opacidade ou, mesmo, deformação do realmente existente.
Questão assim a colocar: quem está verdadeiramente motivado e potenciado no
presente século para a construção de uma outra ordem económica, sem sofrer das
flagrantes desigualdades, fragilidades e incoerências da actual?
Podemos tentar a resposta às questões postas, olhando a organização social em
que vivemos «de baixo para cima» ou «de cima para baixo».
Na primeira perspectiva surgem-nos, em primeiro lugar, categorias (não
equivalentes, longe disso!) como «sociedade civil» e «economia informal». Esta
última, por exemplo em África, pode funcionar como último recurso de sociedades
em que o Estado é praticamente inexistente, pelo menos impotente. Neste caso,
há um contexto humano de «salve-se quem puder», e «como puder», que corresponde
a um estádio primitivo da organização social. Que até pode ser alimentado por
entidades da economia formal, mesmo ETN, que assim podem explorar mais
intensamente recursos naturais e humanos locais. Embora não disponha de dados
estatísticos satisfatórios para este efeito, creio que parte considerável da
população mundial, na América, na África e na Ásia, depende basicamente desta
economia informal para sobreviver. Numa economia mundial em que os 60% mais
pobres dispõem apenas de 6% do rendimento total, segundo estimativas da ONU,
adivinha-se a sua importância. As pessoas que vivem nestas condições não são
habitualmente referidas na comunicação social, a não ser em reportagens
ocasionais em que, por exemplo, se descreve a acção de alguma ONG, ou em
cenários mais trágicos, os sangrentos conflitos étnicos que persistem em
determinadas regiões do planeta.
Mas também se deve registar, a este propósito, a «economia informal» própria de
zonas marginais de grandes cidades, onde impera a violência e a lei não conta
no comportamento dos gangues rivais.
Podemos conceber, a este propósito, um cenário possível da economia mundial,
acentuando características e desigualdades actuais: um cenário em que a minoria
de ricos e muito ricos cria o seu próprio espaço, como um sistema de
condomínios fechados e protegidos da multidão pobre ou miserável que sobrevive
na sua vizinhança.
Claro que um tal cenário sinistro, mas possível, está no extremo oposto da nova
ordem económica que procuramos.
Numa visão diferente desta economia informal, e procurando encará-la
positivamente, podemos considerá-la como terreno privilegiado de inovação
social, espaço de afirmação da referida economia solidária. Sem esquecer que a
informalidade pode conter tradições e práticas de solidariedade que importa
apoiar, recuperar e trazer à luz do dia. Por exemplo, em algumas ilhas de Cabo
Verde há exemplos reconfortantes disso mesmo.
A «sociedade civil», por definição, corresponde ao espaço da organização social
distinto do Estado. Uma e outro podem coexistir e até apoiar-se mutuamente. A
presente crise apela para inovação social na sociedade civil, como também
sucede na economia informal, embora evidentemente por caminhos diferentes.
Continuando o nosso percurso «de baixo para cima», encontramos o local como
terreno de possível desenvolvimento endógeno, embora procurando, por diferentes
vias, alguma articulação positiva com o global. Essa articulação pode consumar-
se por diferentes métodos, sem sacrifício daquilo que exista de valioso na
especificidade local. Aspecto que é particularmente sensível em estratégias de
desenvolvimento turístico em locais mais valiosos pelas suas características
naturais ou património cultural e histórico.
No nível nacional, assistimos a uma recuperação do Estado num caminho de «boa
governação», que todavia e frequentemente, está mais esboçado ao nível das boas
intenções, do que de práticas relevantes. Mas generaliza-se e intensifica-se a
crítica dos governos corruptos e incompetentes, em que o poder não é serviço
dos outros, mas apenas proveito dalguns. E, por outro lado, clarificam-se e
aperfeiçoam-se instrumentos tradicionais de regulação da actividade económica.
Apregoa-se, e com sentido, a necessidade de substituir «demasiado» Estado por
«melhor» Estado.
É aparentemente no plano «mega-regional», ou seja, das regiões que, de uma
forma ou outra, integram diversos Estados nacionais, que surgem ultimamente
movimentos mais significativos de mudança no sentido de uma nova ordem
económica. Com todas as suas fragilidades e ambiguidades, a actual União
Europeia prossegue o seu lento, mas persistente caminho de construção de uma
identidade original e relevante no sistema da economia mundial.
Na América Latina, na Ásia e em África, com vicissitudes próprias, prosseguem
também esforços de integração formal e informal, que nos fornecem imagens de
redes internacionais mais ou menos claramente identificadas nos seus objectivos
e potentes nos seus meios.
Neste pano de fundo, a ONU carece de redefinição e nova vontade política.
Enquanto a ONU dos anos 70 do século passado, pretendia um papel positivo e
determinante na construção da «NOEI», hoje parece impotente, como um todo,
perante as grandes tendências e tensões do Séc. XXI.
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