Os significados de lealdade em Hirschman: o papel da identidade organizacional
Mais de quarenta anos após a publicação do influente livro de Hirschman (1970)
intitulado Exit, Voice, and Loyalty: Responses to Decline in Firms,
Organizations, and States, uma controvérsia central permanece em aberto,
designadamente o significado e o papel da lealdade face às duas respostas
ativas dos clientes e dos colaboradores, o abandono e a voz.
Apesar de o sentido dominante da noção de lealdade ser, na nossa perspetiva,
claro em Hirschman (1970), algumas das nuances introduzidas pelo próprio autor
deram lugar a duas interpretações distintas deste conceito.
A primeira acentua o carácter relacional da lealdade e encara-a como um
descritor de uma ligação dos indivíduos às organizações, cujo papel é o de
impedir o abandono e aumentar a voz, ou seja, intervém na relação entre as
características organizacionais adversas e as ações de abandono ou de voz. Esta
aceção será designada por lealdade como vinculação (attachment, na terminologia
do autor).
A segunda interpretação, a mais difundida na literatura mas não a dominante em
Hirschman (1970), consiste em enfatizar o lado comportamental da lealdade,
vendo-a como uma resposta possível a situações de declínio organizacional
caracterizada por uma passividade confiante, alternativa ao abandono, à voz ou
à negligência. Esta segunda aceção será por nós denominada lealdade como
resposta.
A questão que persiste é a de determinar se estes dois sentidos da lealdade são
distintos e, em caso afirmativo, que papel desempenham na relação entre os
eventos adversos e as respostas dos indivíduos.
Com base numa amostra de militares da Marinha de Guerra Portuguesa,
apresentamos evidência neste estudo de que lealdade como vinculação e como
resposta são constructos distintos, que a lealdade como vinculação medeia
totalmente a relação entre a identidade organizacional percebida e a voz e que
a identidade organizacional percebida prediz significativamente da lealdade
como vinculação, do abandono e da lealdade como resposta.
O modelo de Hirschman e o papel da lealdade
Na sua formulação original, Hirschman (1970) considerava o abandono e a voz
como elementos fundamentais nos processos de melhoria da performance ou da
redução da folga organizacional. Perante situações insatisfatórias ou adversas,
os eventos de voz ou de abandono, tanto da parte dos membros organizacionais
como dos clientes ou parceiros de negócio, podem ser interpretados pelos
gestores como sinais de que algo está a correr mal e, como tal, empreenderem
ações tendentes à correção ou melhoria da situação. Estas duas respostas ativas
têm um valor de aprendizagem, ao constituírem oportunidades para a gestão focar
a sua atenção em aspetos a melhorar.
A resposta de abandono é marcada pela lógica do mercado, sendo que, na ótica
dos clientes, implica a existência de produtos alternativos e, no caso dos
empregados, de alternativas à sua situação de trabalho. Já a resposta de voz é
tributária de uma lógica política cujo valor reside no facto de ser um processo
de recuperação perante a inevitável deterioração registada nas empresas,
serviços públicos e outras organizações e envolve uma estimativa da capacidade
de os clientes ou os membros exercerem influência sobre a organização. Abandono
e voz não são ações mutuamente exclusivas, podendo existir em conjunto, serem
ambas descartadas, ou surgirem na sequência uma da outra.
Para além do abandono e da voz, a lealdade desempenha um papel fundamental na
tese enunciada por Hirschman (1970). Este conceito descreve uma ligação
favorável dos clientes ou dos empregados face à organização cujo papel é o de
influenciar o abandono e a voz, como duas respostas ativas fundamentais, ou
seja, «esta vinculação especial a uma organização, conhecida por lealdade» (p.
77) tem como consequência reduzir a probabilidade de abandono e, pelo menos
enquanto este não acontece, aumentar a possibilidade de voz: «assim, em regra,
a lealdade mantém o abandono à distância e ativa a voz» (p. 78). Como é claro,
a lealdade descreve uma conexão entre o indivíduo e a organização e representa
um capital de confiança fundamental para aquela poder recuperar da expectável
deterioração, antes de os seus membros ou os seus clientes a abandonarem.
Apesar da nitidez desta interpretação do significado de lealdade, algumas das
matizes introduzidas pelo próprio Hirschman (1970) originaram leituras no
sentido de ver a lealdade como uma alternativa de resposta e não como
vinculação de clientes ou colaboradores à organização. Como observa o autor, a
lealdade não implica necessariamente voz, podendo os indivíduos manterem-se
leais face a situações adversas, desde que exista a expectativa de as mesmas
virem a ser resolvidas: «eles sofrem em silêncio, confiantes de que em breve
melhorarão» (Hirschman, 1970, p. 38). Esta ideia de adoção de uma postura
passiva perante condições organizacionais em declínio, caracterizada pela
confiança na resolução da situação, foi interpretada por alguns autores (e. g.
Farrel, 1983; Rusbult et al., 1988) não como um fator antecedente inibidor do
abandono e estimulante da voz, mas como uma alternativa de ação distinta,
passível de ser vista como passividade confiante, vindo a fazer parte da bem
conhecida tipologia EVLN (exit, voice, loyalty and neglect
) cujo carácter integrador justifica a sua utilização recorrente (e. g. Naus et
al.
, 2007; Si et al., 2008; Si e Li, 2012).
Não será de estranhar a lealdade ter revelado dificuldades conceptuais e
metodológicas, ao ser definida quer como uma conexão dos indivíduos face à
organização, quer como um tipo específico de resposta a situações adversas. No
entanto, como assinala Saunders (1992), ambas as partes envolvidas nesta
controvérsia citam Hirschman (1970) como a fonte principal da sua aceção.
Ao levar ainda mais longe a interpretação do sentido de lealdade, Graham e
Keeley (1992) adicionam uma nova nuance neste debate. Sugerem os autores a
existência de quatro respostas fundamentais às situações de declínio
organizacional dependentes da realização de duas decisões e não apenas de uma.
Quer dizer, a escolha a fazer não é entre abandono e voz, mas sim optar por
partir ou ficar e, em seguida, decidir-se entre expressar voz ou ficar em
silêncio. As respostas dos membros organizacionais a situações insatisfatórias
podem assim ser tipificadas a partir de duas dimensões estruturantes: voz
(esforço para mudar o status quo) versus
silêncio e abandono (esforço para sair da situação) versus ficar. O cruzamento
destas dimensões ortogonais dará lugar a dois tipos de lealdade: uma mais ativa
e reformista (na combinação de voz e ficar) e uma mais passiva (no cruzamento
de silêncio e ficar). As outras duas alternativas são o abandono vociferante
(cruzamento de voz e abandono) e o abandono silencioso (cruzamento de silêncio
e abandono).
Na interpretação de Graham e Kelly (1992), a aceção de lealdade em Hirschman
(1970) é de tipo reformista e definem esta variável como «uma vinculação
afetiva a uma organização que leva o participante insatisfeito a declinar
alternativas de saída existentes e a permanecer na organização e trabalhar para
a mudança» (p. 196). Deste modo, o exercício da voz será gerado a partir da
lealdade como vinculação, o que suporta o exame desta potencial relação. Ou
seja, se a voz emerge na sequência da lealdade como vinculação, esta última
variável mediará a relação ente os eventos adversos e a voz. Por outro lado,
será de esperar que iniba o abandono.
Apesar de não ser a linha de pensamento dominante, a ideia de que a noção de
lealdade representa uma ligação do indivíduo à organização, e não uma
alternativa de respostas, reúne já alguma evidência empírica. Por exemplo,
Boroff e Lewin (1997) mostram como a lealdade tem uma relação positiva com o
exercício da voz e negativa com a intenção de abandono de uma empresa, sendo
que os empregados leais sofrem em silêncio. Olson-Buchana e Boswell (2002)
evidenciam como os membros mais leais preferem métodos menos formais para
expressarem o seu descontentamento e como o uso deste tipo de métodos reduz a
intenção de saída. Mais recentemente, Burris et al.
(2007) mostram como a intenção de saída se encontra relacionada com a voz e
medeia a relação entre a perceção da liderança e a voz, enquanto a vinculação
não prediz diretamente a voz nem medeia as relações entre a liderança e a voz.
A ausência de um quadro explicativo integrado leva estes estudos a não
observarem adequadamente a natureza da relação entre os atributos
organizacionais potencialmente adversos e a forma de estar dos seus membros.
Adicionalmente, ao assumir a existência de duas aceções de lealdade, seria de
esperar o exame das relações entre ambos os conceitos, o que permitiria ganhar
entendimento acrescido sobre a dinâmica das relações entre as variáveis do
modelo original de Hirschman (1970).
Características organizacionais geradoras de lealdade e papel mediador da
lealdade como vinculação
Uma contribuição relevante para integrar as características organizacionais no
quadro do exame das relações entre a lealdade como vinculação e as respostas
dos indivíduos surge do próprio Hirschman (1974; 1978), ao preconizar a
existência de instituições que desejam promover a lealdade sem com isto,
necessariamente, pretenderem retardar o abandono e incrementar a voz. Dado ser
provável o feedback
obtido pela gestão através do abandono e da voz ter efeitos a longo prazo, a
gestão poderá pretender reunir condições para agir, a curto prazo, de acordo
com as suas ambições, o que faz das deserções e das queixas dos membros
entraves a este desiderato.
A existência de uma ligação intensa entre os membros e a organização assume
especial interesse para a gestão, ao contribuir para que esta possa atuar num
contexto de menor constrangimento (Kolarska e Aldrich, 1980) e favorecer a ação
imediata ou a implementação de decisões menos populares. Este argumento é
expandido por Graham e Keeley (1992) ao sugerirem que as organizações cujas
culturas valorizam a participação e que são governadas de forma descentralizada
tenderão a dar lugar a lealdade reformista. Por oposição, culturas que
privilegiam a obediência e formas de governação centralizadas darão lugar a
lealdade passiva.
Não obstante a ausência de evidência empírica destas proposições, ao apontar
para as características organizacionais influenciadoras da emergência da
lealdade, a contribuição de Graham e Keeley (1992) é especialmente relevante.
Permanece, contudo, por identificar, que características organizacionais
deverão merecer atenção enquanto fatores explicativos da vinculação. Uma pista
possível é avançada por Hirschman (1970), ao sugerir a possibilidade de a
lealdade ser estimulada através da criação de dificuldades à entrada e à saída,
o que remete a discussão para a importância do rigor da seleção e a severidade
dos processos de socialização, mas também para a relevância da mobilidade
individual.
Por outro lado, de acordo com Kolarska e Aldrich (1980) estas formas intensas
de lealdade poderão ser obtidas através da promoção de um comprometimento com
um «valor superior, representando os valores originais de uma organização» (p.
51), mesmo se a lealdade face a este propósito supraordenado não for tão
relevante quanto a procura dos gestores de gerar uma adesão inquestionável ao
seu modo de governação. Se atendermos ao possível efeito deste objetivo
supraordenado na promoção da vinculação, em conjunto com as características das
culturas e sistemas de governação que enfatizam a hierarquia e a obediência,
estaremos em condições de desenhar o esboço de um quadro de referência mais
integrado para examinar o papel da lealdade como vinculação, tendo por
referência a perceção das características organizacionais.
Em nosso entender, a teoria da identidade e da identificação organizacional
adequa-se ao desenvolvimento de um quadro de referência que contemple as
características organizacionais, a relação estabelecida entre os indivíduos e a
organização e as suas orientações comportamentais (Dutton et al., 1994;
Dukerich et al.
, 2002; Haslam et al.
, 2003). O argumento central desta corrente pode ser enunciado do seguinte
modo: na medida em que um grupo possibilite aos seus membros manterem a
continuidade do seu eu, distinguirem-se dos outros e aumentarem a sua
autoestima, reunirá as condições básicas para que os seus membros se
identifiquem mais com ele e, consequentemente, procurarem mais contacto,
cooperarem mais com este grupo e competirem mais com membros de outros grupos.
Uma boa parte do interesse em estudar a identificação dos indivíduos decorre da
natureza dos seus resultados, na quase totalidade com elevado significado
individual e coletivo (Riketta, 2005). De acordo com a revisão levada a cabo
por Ashforth et al. (2008), as consequências da identificação aumentada mais
referenciadas incluem comportamentos de cooperação, esforço e tomada de decisão
em favor dos grupos de pertença, motivação intrínseca e performance acrescidas,
partilha de informação e ação coordenada mais evidente, sustentando a
teorização precedente. Naturalmente, ações como abandono, voz ou lealdade como
resposta enquadram-se neste tipo de resultados.
A sistematização da teoria da identidade aplicada ao contexto organizacional
formulada por Dutton et al.
(1994) inspirou um número assinalável de estudos empíricos (e. g. Fuller et
al., 2006; Herrbach et al., 2004; Bartels et al., 2007). Sumarizando o
essencial desta visão, diremos que a identificação dos indivíduos está
positivamente relacionada com a atratividade da identidade da organização a que
pertencem e que a identificação ampliada acarreta comportamentos pró-
organização. Esta sequência explicativa parece-nos ser adequada para examinar o
papel da lealdade como vinculação na sua relação com a identidade
organizacional.
Adicionalmente, a pertinência da abordagem baseada na teoria da identificação
encontra eco no trabalho original de Hirschman (1970) que, para além de definir
a lealdade como uma conexão do indivíduo à organização, alude nesta ligação ao
sentido de pertença e à relevância de se considerar a avaliação de aspetos mais
globais na perceção dos grupos de pertença. Como assinala o próprio autor:
«este paradigma da lealdade o nosso país
, certo ou errado, não fará sentido se for expectável que o nosso paíscontinue
eternamente a fazer tudo mal» (p. 78, itálico adicionado).
O conceito de identidade organizacional é complexo e existe acentuada
variabilidade sobre o modo como deverá ser estudado (Gioia et al., 2013;
Foreman, et al., 2012). No presente estudo, uma vez que o conceito será
operacionalizado ao nível individual, adotamos a expressão identidade
organizacional percebida, em conformidade com o esforço de clarificação
conceptual levado a cabo por Brown et al.
(2006). Por outro lado, inspirámo-nos na clássica teoria da gestalt, em
especial a lei da boa forma (Prägnanz Law; ver Wagmens et al., 2012a, 2012b,
para uma revisão exaustiva de um século da abordagem gestáltica à perceção),
pois sugere a tendência humana para perceber objetos como conjunto estruturados
em vez da soma das suas partes constituintes. Para determinar o conteúdo da
identidade, utilizámos a noção de ideologia central, tal como formulada por
Collins e Porras (1994), composta pela existência de um propósito e de um
número restrito de valores, elementos capazes de mobilizar e nortear o
essencial da ação organizacional.
Assim, sugerimos que a identidade organizacional percebida é um constructo de
ordem elevada (Harrison et al.
, 2006), composto por três constructos de primeiro nível: 1 – uma missão clara
e partilhada pelos seus membros; 2 – a ausência de sinais contraditórios
emitidos pela organização quando comunica o seu propósito; 3 – um conjunto de
valores salientes.
As forças armadas são entidades adequadas para estudar a abordagem aqui
sugerida, dado reunirem alguns atributos relevantes. Por um lado, podem ser
consideradas contextos em que a promoção da lealdade é um elemento central à
entrada, a socialização é difícil e a saída também o poderá ser, existe uma
cultura centralizada que privilegia a obediência e desempenham um papel na
sociedade cujo propósito é claro para todos os seus membros. Por outro,
consideramos a possibilidade de, sendo militares, as organizações procurarem
preparar os seus membros para ações imediatas, para as quais a lealdade e a
obediência são essenciais, o que não é, necessariamente, incompatível com a
lealdade dos membros face aos atributos mais gerais do propósito
organizacional. Neste contexto, a proeminência e partilha do propósito
organizacional, a coerência entre os diferentes atributos da instituição e a
saliência dos seus valores centrais poderão constituir condições geradoras de
lealdade como vinculação acrescida.
Em suma, em organizações militares, sugerimos que a lealdade como vinculação
está relacionada com a perceção da identidade organizacional. Por outro lado,
será de esperar que a lealdade como vinculação esteja também relacionada com as
respostas dos membros organizacionais, mediando a relação entre estas respostas
e a identidade organizacional percebida, argumento consistente com a proposta
original de Hirschman (1970), uma vez que a voz se forma como consequência da
lealdade como vinculação. Alargando o sentido desta proposição, diremos que é
expectável que a lealdade como vinculação medeie também a relação entre a
identidade organizacional percebida, quer com a voz, quer com a lealdade como
resposta. Dado a promoção da vinculação ser um elemento integrante da
identidade destas organizações, as respostas dos membros organizacionais
poderão estar diretamente relacionadas com os atributos da identidade
organizacional, sem efeito mediador da vinculação. A Figura_1 representa o
modelo que sugerimos.
Deste modo, formulamos as seguintes hipóteses:
H1: a identidade percebida está positivamente relacionada com a lealdade como
vinculação.
H2: a identidade percebida está relacionada: a) negativamente com o abandono;
b) positivamente com a voz; c) positivamente com a lealdade como resposta.
H3: a lealdade como vinculação está relacionada: a) negativamente com o
abandono; b) positivamente com a voz; c) positivamente com a lealdade como
resposta.
H4: a lealdade como vinculação medeia a relação entre a identidade
organizacional percebida e a) o abandono; b) a voz; c) a lealdade como
resposta.
Método
Amostra e procedimento
Testámos as nossas hipóteses numa amostra de militares da Marinha de Guerra.
Dirigimos o convite à participação voluntária de 650 militares dos quadros
permanentes e do regime de contrato, em serviço efetivo em 2010, distribuídos
proporcionalmente pelas três categorias fundamentais das forças armadas
(oficiais, sargentos e praças). O quarto autor coordenou este procedimento.
Foram obtidos 443 questionários válidos (taxa de resposta 68,2%), dos quais
21,9% eram oficiais, 24,4% eram sargentos e 53,7% eram praças. Deste mesmo
conjunto, 83,1% pertenciam ao quadro permanente e 16,9% tinham um contrato a
termo certo. A idade média era de 35,41 anos (DP=10,07) e a antiguidade média
de 16,03 anos (DP=9,88). Do total, 89,2% pertenciam ao género masculino.
Medidas
A medida de abandono é composta por quatro itens, três ligeiramente adaptados
de Rusbult et al. (1988) e um criado por Nunes et al. (1992) («há dias em que
as coisas correm tão mal que só me apetece sair da Marinha e ir trabalhar para
outro sítio»). Para medir a voz usaram-se igualmente três itens ligeiramente
adaptados da escala de Rusbult et al. (
1988) e um gerado por Nunes et al.
(1992) («uma boa maneira de agir na Marinha é ser ativo e apresentar soluções
para os problemas que vão surgindo»). A lealdade como resposta foi medida
através da adaptação dos três itens de Farrel (1983), tendo sido adicionado um
item de Nunes et al. (1992) («pode confiar-se nas chefias para resolverem os
problemas que surgem»).
Com base numa análise fatorial exploratória ao conjunto de doze itens, após
eliminar quatro itens por irrelevância ou por ambiguidade, retiveram-se nove,
três dos quais refletindo cada um dos conceitos. A fiabilidade é aceitável,
pois obtiveram-se valores de a=0,90 para o abandono, a=0,75 para a voz e a=0,72
para a lealdade como resposta.
Para medir a lealdade como vinculação, utilizámos a escala de identificação
desenvolvida por Mael e Ashforth (1992), dado esta medir exatamente a conexão
entre os indivíduos e as organizações a que pertencem. Após eliminar um dos
itens, retiveram-se cinco, tendo-se obtido um valor de fiabilidade aceitável
(a=0,83). Uma vez que esta medida estava a ser utilizada para operacionalizar a
lealdade como vinculação, torna-se pertinente discriminá-la da lealdade como
resposta. Para este efeito, levámos a cabo uma análise fatorial confirmatória.
Num primeiro momento, considerámos a possibilidade de existirem dois conceitos
distintos, a lealdade como vinculação e a lealdade como resposta, refletidos
nos respetivos itens. Os indicadores de ajustamento são aceitáveis (c2/GL=1,87;
CFI=0,98; TLI=0,98; SRMR=0,04). Num segundo momento, examinámos a possibilidade
de todos os itens refletirem um conceito único, o que mostrou não ter apoio nos
dados (c2/GL=8,79; CFI=0,86; TLI=0,80; SRMR=0,08).
Medimos a força da identidade e a incongruência da identidade através de quatro
e três itens, respetivamente, das medidas desenvolvidas por Kreiner e Ashforth
(2004). Segundo os autores, a força da identidade organizacional traduz a
perceção de clareza e partilha da missão organizacional e a incongruência da
identidade representa a perceção da presença de sinais contraditórios emitidos
pela organização sobre o seu propósito. A consistência interna das escalas é
boa, com os valores de a=0,84 para a força da identidade e de a=0,87 e para a
incongruência da identidade.
Os valores organizacionais foram medidos através da escala de Symlog (Bales e
Cohen, 1979), adaptada para a realidade portuguesa em contexto militar naval
por Jesuíno (1987), a qual permite localizar qualquer entidade num espaço
tridimensional bipolar: U-D (ativo, dominante versus passivo, submisso); P-N,
amigável, positivo versus não amigável, negativo; F-B, aceitação da autoridade
estabelecida versus
oposição à autoridade estabelecida.
O exame da possibilidade de a força e a incongruência da identidade e de os
valores organizacionais serem o reflexo de uma variável latente de nível
superior, a identidade organizacional percebida, mostra ter apoio nos dados
(c2/GL=2,59; CFI=0.98; TLI=0,97; SRMR =0,05). A evidência empírica não sustenta
a hipótese de existir uma variável latente refletida diretamente pelos
indicadores destes três conceitos constituintes da identidade (c2/GL=12,24;
CFI=0,81; TLI=0,75; SRMR=0,08).
Resultados
As médias, desvios-padrão e as correlações entre as variáveis em estudo são
apresentadas na Tabela. As relações entre as variáveis em estudo não
ultrapassam 0.60, o que sugere um nível de multicolinearidade aceitável
(Nunnally, 1978).
De forma consistente com a hipótese 1, verificamos que a lealdade como
vinculação se relaciona no sentido esperado com os constructos de primeira
ordem integrantes da identidade organizacional percebida, pois existe uma
correlação positiva, se bem que fraca, com os valores e de maneira mais intensa
com a força da identidade (r=0,53) e negativa com a incongruência (r=-0,44). As
relações entre o abandono, a voz e a lealdade como resposta e os constructos da
identidade percebida vão ao encontro do preconizado na hipótese 2. O abandono
correlaciona-se negativamente com a força da identidade (r=-0,43) e
positivamente com a incongruência da identidade (r=-0,54). As correlações com a
voz são bastantes mais fracas sugerindo um efeito indireto.
No respeitante à hipótese 3, a qual prediz a existência de uma relação negativa
entre a lealdade como vinculação e o abandono e positiva entre aquela variável
e a voz e a lealdade como resposta, as correlações proporcionam também apoio
inicial. Assim, a lealdade como vinculação correlaciona negativamente com o
abandono (r=-0,39) e positivamente com a voz (r=0,42) e com a lealdade como
resposta (r=0,41).
Testámos os efeitos de mediação inerentes à hipótese 4 através do cálculo de
equações estruturais, tal como sugerido por MacKinnon et al. (2007) e Cheung e
Lau (2008), determinando os intervalos de confiança dos parâmetros com base em
procedimentos de reamostragem múltipla (1000 amostras bootstrap). Por razões de
parcimónia, apresentam-se, nas Figuras_2_a_4, apenas os valores referentes às
relações entre as variáveis latentes. Os resultados obtidos para o abandono
(ver Figura_2) mostram que o modelo descreve apropriadamente os dados (c2/
GL=2,19; CFI=0,96; TLI=0,95; SRMR=0,05). Mais especificamente, existe uma
relação significativa positiva entre a identidade organizacional percebida e a
lealdade como vinculação (ß=0,84, p<0,01), e negativa com o abandono (ß=-0,63,
p<0,01), associações que suportam as hipóteses 1 e 2a, respetivamente. Contudo,
a relação entre a lealdade como vinculação e o abandono não é significativa,
não suportando a hipótese 3a. O exame do efeito indireto da identidade sobre o
abandono não é significativo, uma vez que o intervalo de confiança contém 0,
indicando a ausência de efeito de mediação da vinculação. Deste modo, a
hipótese 4a não encontra base empírica.
No respeitante ao teste do efeito de mediação da vinculação sobre a relação
entre a identidade organizacional percebida e a voz (ver Figura_3), verificamos
que o modelo apresenta valores de ajustamento aceitáveis (c2/GL=2,40; CFI=0,95;
TLI=0,94; SRMR=0,06). Mais especificamente, não se obteve uma relação
significativa entre a identidade organizacional e a voz (ß=-.07, p<.01), não
suportando a hipótese 2b. Por sua vez, existe uma relação significativa entre a
lealdade como vinculação e a voz (ß=.77, p<.01), em linha com a hipótese 3b. O
teste do efeito indireto da identidade sobre a voz é significativo, pois o
intervalo de confiança não inclui o valor 0, o que confirma o efeito de
mediação da vinculação, total no caso vertente. Assim, os dados apoiam a
hipótese 4b.
Os resultados obtidos para a lealdade como resposta revestem-se de especial
relevo, atendendo à afinidade de significado desta variável com a lealdade como
vinculação (ver Figura_4). Assim, o modelo descreve os dados de maneira
ajustada (c2/GL=1,81; CFI=097; TLI=0,96; SMRM=0,04). Para além da relação
significativa entre a identidade organizacional percebida e a lealdade como
vinculação (ß=.68, p<.01), em favor da hipótese 1, verifica-se que a identidade
organizacional percebida se relaciona positivamente com a lealdade como
resposta (ß=.87, p<.01), suportando a favor da hipótese 2c. Ao invés do
previsto na hipótese 3c, a lealdade como vinculação não se relaciona com a
lealdade como resposta, sendo o efeito indireto da identidade organizacional
percebida sobre a lealdade como resposta não significativo, pois inclui o valor
0, o que, ao atestar a inexistência de efeito de mediação da vinculação, não
sustenta a hipótese 4c.
Discussão
Os resultados obtidos vêm trazer um novo olhar sobre a controvérsia quanto ao
papel da lealdade face ao abandono e à voz, ao serem parcialmente consistentes
com a proposição original de Hirschman (1970), segundo a qual a lealdade como
vinculação tem como função promover a voz enquanto retarda o abandono. De
facto, a lealdade como vinculação medeia totalmente a relação entre a
identidade organizacional percebida e a voz, mas não apresenta uma relação
significativa consistente com o abandono, resultado que vai ainda ao encontro
da interpretação de Graham e Keeley (1992), segundo a qual a voz é erigida com
base na lealdade. A lealdade como vinculação não se relaciona
significativamente com a lealdade como resposta, variável afetada fortemente,
de maneira direta, pela perceção da identidade organizacional.
O padrão de resultados obtido difere diametralmente dos registados por
investigadores cuja interpretação da noção de lealdade é idêntica à adotada por
nós. Recorde-se que Burris et al. (2008), conceptualizando a lealdade como
vinculação, não detetaram qualquer efeito, direto ou indireto, desta variável
sobre a voz, em contracorrente com o argumento inicial de Hirschman (1974).
Provavelmente o contexto utilizado para a recolha de dados (restaurantes) e a
variável antecedente utilizada pelos autores (trocas líderes-membros e
supervisão abusiva), por contraste com a abordagem gestáltica à identidade
organizacional por nós usada, justificará a ausência desta diferença no sentido
da evidência empírica.
Num sentido distinto, este estudo representa uma contribuição relevante no
quadro da corrente teórica que preconiza a existência de duas aceções na noção
de lealdade (Graham e Keeley, 1992; Burris et al.
, 2008), pois não foram testadas as eventuais relações entre aquelas duas
noções. Neste trabalho, verificamos que medindo a lealdade como vinculação com
a escala de identificação de Mael e Asforth (1992) e a lealdade como resposta
com a abordagem próxima de Farrel (1983), estamos perante dois conceitos
distintos, não relacionados, mas que ambos são influenciados pela mesma
variável, a perceção da identidade organizacional. Voltando à controvérsia
sobre o significado e papel da lealdade, este estudo mostra a existência de
dois sentidos distintos para este conceito, que tanto um como outro são
influenciados pela perceção da identidade organizacional e que a lealdade como
vinculação apenas medeia a relação entre esta variável e a voz.
O conjunto de resultados mostra ser possível, pelo menos na entidade estudada,
estimular o abandono e a lealdade como resposta sem a necessidade de
incrementar a lealdade como vinculação, o que remete para o reconhecimento da
relevância da identidade organizacional, noção aqui inspirada na saliência e
coerência do propósito e dos valores, na orientação dos comportamentos dos seus
membros (Kolarska e Aldrich, 1980). Esta importância da identidade cria
condições nas quais os líderes poderão obter dos membros organizacionais ações
imediatas ou a aceitação de medidas impopulares sem, necessariamente, passarem
pela expressão da voz. Recorde-se que a voz é a única resposta em que a
lealdade como vinculação intervém, mas a identidade tem também sobre esta
variável um efeito, indireto é certo, mas significativo.
Os nossos resultados indiciam que em organizações nas quais a identidade é um
elemento verdadeiramente central, o conjunto formado pelas suas características
percebidas, segundo a nossa operacionalização, a clareza e partilha da missão
organizacional, a ausência de sinais contraditórios emitidos pela organização
sobre o seu propósito e a saliência dos seus valores, são suficientes para se
obter menos propensão para o abandono e mais respostas de lealdade. Mas para
poderem gerar voz nestes contextos, estas características da identidade
organizacional podem não ser suficientes, dado esta resposta ser ativada pela
existência de vinculação dos indivíduos face à organização.
Em nosso entender, os resultados alcançados neste estudo são condizentes com a
tipologia desenvolvida por Graham e Keeley (1992), atrás descrita e cujos eixos
organizadores das respostas dos membros organizacionais se estruturam de acordo
com a oposição de abandonar a ficar e de voz a silêncio, em vez da estrutura
mais convencional que opõe os polos ativo a passivo e construtivo a destrutivo
(Farrel, 1983). Na nossa terminologia, haverá uma oposição entre abandono e
lealdade como resposta, que designaremos por eixo da retenção, e uma outra
oposição, desta vez entre voz e negligência, eixo por nós denominado positivo
versus negativo (Griffin et al., 2007).
Segundo os nossos resultados, na determinação do eixo da retenção, a perceção
da identidade organizacional é fundamental, ou seja, os indivíduos que
consideram a organização mais coerente, com um propósito mais claro e com
valores mais salientes, tendem a não abandonar a organização e a mostrar-se
mais leais, mesmo perante a existência de adversidades. Mas a identidade
organizacional coerente e saliente não é suficiente para os membros
empreenderem comportamentos positivos, ou seja, expressarem voz com valor de
recuperação organizacional. A identidade organizacional apenas é capaz de
influenciar este tipo de ações se, entretanto, for capaz de estimular a
vinculação dos indivíduos, a ponto de estes se definirem a si mesmo como
membros desta organização. E é isto mesmo que estará em jogo numa organização
militar, como a envolvida neste estudo. Ainda que não fosse o propósito central
deste trabalho, este estudo avança ainda uma operacionalização própria da
identidade organizacional percebida, dotada de fundamentação e distinta de
outros esforços de medida já realizados (van Rekom e van Riel, 2000).
No plano prático, ao sustentar a distinção entre o eixo da retenção e o eixo
dos comportamentos positivos, este estudo vem mostrar que a comunicação
interna, a liderança e as práticas de gestão de recursos humanos (RH)
desempenham um papel fundamental, não apenas na gestão da identidade (Dhalla,
2007), de maneira a reduzir o abandono e a aumentar a respostas de lealdade,
mas também através da ativação da lealdade como vinculação, fundamental para a
geração de comportamentos de voz, cujo valor como fonte de aprendizagem
organizacional é inquestionável.
Esta pesquisa contém inevitáveis limitações. Para além do problema da variância
atribuível ao método comum, uma visão baseada na identidade não confronta
diretamente o poder explicativo desta abordagem, face a outros preditores mais
convencionais, tais como a satisfação, o comprometimento, ou a perceção das
consequências de cada opção de ação. Estudos subsequentes poderiam continuar na
linha da proposta de Harrison et al.
(2006) e criar constructos de nível superior, o que levaria, por exemplo, a
conceptualizar e medir a vinculação não apenas através da escala de
identificação por nós utilizada, mas a ser vista como um constructo de ordem
elevada, refletido por constructos de primeira ordem, como a identificação
profissional, o comprometimento ou a satisfação.
O contexto, no qual obtivemos evidência desta abordagem identitária à
explicação das opções de ação individuais, é caracterizado por uma forte
inclusão dos indivíduos, marcado por processos de socialização expressamente
configurados para marcar esta profunda integração indivíduo-organização.
Contextos menos institucionalizados poderão fazer prevalecer outro padrão de
resultados, sem esquecer que muitas organizações procuram projetar-se no
futuro, orientando as suas ações de acordo com a sua ideologia central (Collins
e Porras, 1994) ou o seu propósito (Bartlet e Goshall, 1994). O teste desta
abordagem em organizações deste tipo mas não militares, poderia gerar evidência
relevante sobre a sua robustez.
Importa ainda notar que a organização estudada é composta por três categorias
profissionais claramente marcadas, oficiais, sargentos e praças, com estatutos
interno e externo diferenciados, sujeitas a práticas de gestão de RH distintas,
com relações funcionais de subordinação hierárquica e com probabilidade
reduzida de mobilidade entre grupos. Estudos posteriores poderão examinar
diferenças prováveis no padrão geral de relações, obtido no seio de cada um dos
grupos fundamentais integrantes das forças armadas.
Em síntese, este estudo contribui para a literatura, chamando a atenção para o
papel das características da identidade organizacional na determinação da ação
dos colaboradores e evidencia o papel da lealdade como vinculação na explicação
destas mesmas respostas, designadamente na emergência da voz, cujo valor na
promoção da performance organizacional é amplamente reconhecido. Os resultados
proporcionam informação relevante para organizações em que o propósito e os
valores são elementos que orientam de facto a sua ação. Finalmente, através
deste estudo, prestamos tributo ao trabalho publicado por Hirschman (1970),
cujo valor está bem patente na sua capacidade de continuar a alimentar a
discussão académica.