A mudança estrutural do Público e do Privado
Um debate secular
Talvez não seja de todo despropositado iniciar esta reflexão partindo do
pressuposto de que, na contemporaneidade, o debate sobre o público e o privado
readquiriu uma certa densidade epistemológica, política, jurídica e social.
Epistemológica porque enfrentamos a necessidade de melhor compreender as noções
de público e de privado na actualidade tendo em conta o conteúdo conferido a
cada conceito ao longo dos tempos; política e jurídica porque não é possível
estudar a vida privada sem ter em conta a margem de autonomia que lhe é deixada
pelo poder político e pela doutrina jurídica; social porque as variações do
binómio público/privado só podem ser empreendidas avaliando os comportamentos
dos homens, as regras que estes impõem a si próprios, ou que lhes são impostas
pelos hábitos das comunidades onde vivem, bem como as práticas quotidianas que,
naturalmente, variam segundo a pessoa, os lugares e os tempos. É certo que
traçar as fronteiras entre o público e o privado tem sido uma preocupação desde
a antiguidade clássica, facto que revela um horizonte de discussão bastante
amplo em termos históricos. Porém, o facto de a relação público/privado
consistir num debate secular não significa que se tenha chegado a definições
consensuais acerca daquilo que está contido em cada uma das esferas, até
porque, como já referimos, os conceitos apresentam uma variabilidade explicada
por fenómenos políticos, culturais e até jurídicos. O binómio público/privado
acabou por se converter numa grande dicotomia, com várias categorias de
sentido, que tem despertado o interesse das disciplinas jurídicas, históricas e
políticas, mas também das Ciências Sociais, uma vez que as noções de público e
privado têm funcionado, ao longo dos tempos, como componentes estruturantes do
mundo simbólico. Genericamente, podemos falar de uma grande dicotomia quando
nos encontramos perante a possibilidade de dividir um universo em duas esferas
conjuntamente exaustivas e reciprocamente exclusivas. Conjuntamente
exaustivas no sentido de que todos os entes pertencentes a uma determinada
esfera nela tenham lugar; reciprocamente exclusivas na medida em que um ente
compreendido na primeira não pode ser, simultaneamente, compreendido na
segunda. De outro modo, um dos lugares-comuns do debate sobre o público e o
privado consiste em afirmar que cada esfera se define em contraste com a outra,
surgindo o privado muitas vezes definido como não-público, e que aumentando a
esfera do público diminui a do privado e aumentando a do privado diminui a do
público (Bobbio, 2009: 13-14).
Do ponto de vista genealógico, talvez tenha sido a civilização helénica aquela
que melhor demarcou o público, enquanto esfera da política por excelência e
governo da cidade, do privado, do domínio da casa e dos processos biológicos da
vida e da morte próprios do reino da necessidade. No Espaço Público Clássico, o
privado é um lugar oposto e que existe separadamente face ao público, sendo
este o domínio por excelência da liberdade e da organização política. Na Esfera
Pública Ateniense, o Senhor eleva-se à condição de cidadão, de zoon politikon,
saindo do reino pré-político da necessidade, da dominação e dos processos
biológicos. Com efeito, privadas eram as coisas que não diziam respeito à
comunidade e que, por isso mesmo, não deveriam ser partilhadas, desveladas,
acessíveis a olhares alheios. O privado encerra uma dimensão de domesticidade,
mas também da reserva e ocultamento próprias da esfera da casa (oikia),
enquanto o público denota o comum, mas também a visibilidade e a aparência do
homem enquanto animal político no espaço público da agora (Cf. Carvalheiro,
Prior, Morais, 2013).
Esta concepção helenística de público e privado foi herdada pela civilização
romana, mas apesar da distinção entre público e privado continuar a servir de
quadro à organização política do Espaço Público do fórum, os conceitos sofreram
o enfoque do Direito romano consagrando-se a distinção entre publicus - quod ad
statum rei romanae spectat -, coincidindo o público com o domínio do Estado, e
privatus ' quod ad singulorum utilitatem -, apontando o privado para aquilo que
se refere ao indivíduo singular. Durante a Idade Média esta oposição permitiu
regular a ordem feudal, mas o conceito de público revestiu-se de uma nova
configuração. Efectivamente, os textos medievais associam o conceito de público
aos espaços que escapam à apropriação exclusiva ou privada, passando este a
compreender os caminhos, as ruas, as praças, os rios e alguns equipamentos e
infra-estruturas. É, precisamente, no contexto da ordem medieval que surge a
ideia de comunidade e de espaços públicos comuns que podem ser livremente
utilizados por essa mesma comunidade (Cf. Rodrigues, s/d). Como se sabe, o
binómio público/privado constitui-se como um fenómeno de fronteiras difusas e
ambíguas, fronteiras que, de resto, têm sido sucessivamente alteradas por uma
variabilidade histórica que importa analisar. Durante o período do Absolutismo
Régio foi, precisamente, a distinção público ' não público que fundamentou e
legitimou a doutrina política da razão de Estado. No contexto político do
desenvolvimento do Estado moderno, a prática racional de governação contempla o
recurso aos arcana imperii, aos segredos de Estado, ao carácter oculto de
máximas de governação que não devem ser tornadas públicas por dizerem respeito
à conservação do Estado, aos jus defensionis e à salus rei publicae (Meinecke,
1983, Senellart, 1995, Zarka, 1994). Historicamente não se deve, portanto,
confundir a distinção público/privado, no sentido da grande dicotomia que
temos vindo a analisar, com a distinção público/secreto, poder visível/poder
invisível. Do ponto de vista conceptual, o carácter público do poder, no qual
por público se entende aquilo que acontece à vista do Público, algo que é,
portanto, manifesto, aberto, visível, por oposição ao secreto, é um problema
diferente daquele que se refere à esfera de competência do poder político
distinto do poder dos privados. Com efeito, o poder político é o poder público
no sentido da grande dicotomia mesmo quando não é público, não age em público,
subtrai-se do publicum e não é controlado por este. Foi Immanuel Kant quem
expôs com clareza o problema do carácter público do poder, contrariando o
princípio da publicidade à teoria dos arcana imperii dominante na época do
poder absoluto. Ao arcanum do poder autocrático, a filosofia do Iluminismo
responde com a exigência da publicidade enquanto princípio apodíctico e fórmula
transcendental do direito público. Kant sustenta que a única forma de garantir
à actividade política uma justificação ética é a condenação do segredo nos
actos do governo sendo injustas todas as acções que se referem ao direito de
outros homens cujas máximas não se harmonizem com a publicidade (Kant, 2004:
165).
Deste modo, e como com acerto constata Niklas Luhmann na obra onde versa sobre
A Improbabilidade da Comunicação, só no século XVIII se reuniram as duas
distinções, a de público/privado e a de público/secreto, sendo que só na parte
final deste século surgiu o conceito moderno de opinião pública como soberano
secreto e autoridade invisível da sociedade política (Luhmann, 1992: 65-66).
Trata-se de um publicum constituído por pessoas privadas que procuram obrigar o
poder público (estatal) a legitimar-se perante o tribunal da opinião pública.
Na esfera pública burguesa o público converteu-se numa instância de decisão que
procura defender os interesses privados dos cidadãos face à autoridade do
Estado. A esfera pública que, outrora, tinha sido considerada uma esfera do
poder público, separa-se deste e converte-se num novo fórum onde as pessoas
privadas, reunidas em qualidade de público, levam a cabo um processo de auto-
ilustração, de exercício da racionalidade e de gouvernement by discussion.
Este conceito de esfera pública, tal como emergiu no espírito da Ilustração do
século XVIII, alude à ideia de um espaço de acção onde os membros de uma
comunidade fazem uso público da razão, convertendo o conflito em debate e
problematizando os assuntos de interesse comum. A Esfera Pública burguesa,
enquanto espaço de sociabilidade constituído por pessoas privadas que reclamam
uma esfera regulada à margem da autoridade pública do Estado, viu nascer a
instância do Público sujeito, uma entidade crítica que só através do uso
público da razão consegue publicidade (Öffentlichkeit). Mas a nova esfera
pública não diferenciou, apenas, o Estado da sociedade. A esfera privada também
sofreu transformações, nomeadamente aquelas que resultam da diferenciação entre
economia (mercado) e família enquanto esfera íntima e, portanto, enquanto
lugar mais privado de todos (Habermas, 2012). É neste processo de
desenvolvimento da modernidade que vemos surgir um novo quadro de privatização
da vida. No século XVIII surge uma alteração no estilo arquitectónico do lar
burguês que reserva cada vez mais importância à esfera íntima da família
nuclear, isto é, à subjectividade e intimidade próprias dos seus membros. As
casas construídas de raiz oferecem mais espaço às divisões destinadas à
salvaguarda da intimidade na vida doméstica. Desenvolve-se, assim, o gosto pelo
espaço privado edificando-se o salão como linha divisória entre a esfera
privada e a esfera pública. As pessoas privadas saem da intimidade dos quartos
para se projectarem no espaço institucional do salão que, por sua vez,
representa o lugar de emancipação económico-política. O publicumconstituído por
pessoas privadas que procuram o esclarecimento mediante o raciocínio
publicamente partilhado provém da subjectividade do espaço do lar. As
alterações arquitectónicas nas casas construídas de raiz são o reflexo da nova
privatização da vida. A divisão comum para o homem, a mulher, os filhos e a
criadagem tornou-se cada vez mais pequena surgindo, em contrapartida, o quarto
específico de cada membro da família burguesa. Efectivamente, foram os
burgueses dos séculos XVIII e XIX que defenderam, com toda a força, o espaço
privado inscrito no interior da casa, reduto de subjectividade e introspecção
onde os indivíduos se vêem a si próprios como seres independentes, esfera de
humanidade do relacionamento íntimo de seres humanos.
A irrupção do Privado
Derivado do latim privatus, que significa despojar ou tirar, pode dizer-se
que o termo privado está vinculado ao direito de os indivíduos guardarem para
si próprios o controlo de determinadas informações, isto é, a possibilidade de
se manterem protegidos e à parte de qualquer conhecimento público dos seus
actos. A esfera privada compreende aqueles comportamentos, acontecimentos e
condutas que os indivíduos desejam que não se tornem do domínio público e que,
portanto, não estão à vista da colectividade em geral nem de um círculo
indeterminado de pessoas. A esfera privada refere-se, com efeito, ao indivíduo
escudado na intimidade ou no recato, um espaço de convívio com a própria
individualidade sem a perturbação da publicidade e da intromissão alheia. De
facto, o espaço privado é uma área particular reservada ao refúgio e ao
recolhimento, uma zona delimitada de imunidade e negligência onde cada
indivíduo pode repousar as armas com as quais é conveniente estar provido
quando se apresenta na esfera pública. Do ponto de vista histórico, Phillippe
Ariès e Georges Duby foram os precursores que abriram as primeiras brechas na
exploração de um espaço tão vasto. Segundo Duby, no privado encontra-se
guardado o que se possui de mais precioso, que só a nós pertence, que não diz
respeito a mais ninguém, que é proibido divulgar, mostrar, porque é muito
diferente das aparências que a honra exige salvar em público (Ariès e Duby,
1989: 10).
Para os gregos a esfera privada (to idion) manifestava a qualidade daquilo que,
por não dizer respeito à comunidade, não deveria ser partilhado. É por isso que
a sua original acepção é a de privação, privação do contacto com os outros e
do relacionamento do indivíduo com os seus semelhantes. Como constata Hannah
Arendt, para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima
de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser
privado da realidade que advém do facto de ser visto e ouvido por outros,
privado de uma relação objectiva com eles, decorrente do facto de se ligar e
separar deles através de um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade
de realizar algo mais permanente que a própria vida (Arendt, 2001: 74). Com
efeito, nas circunstâncias da antiga cidade-estado, a distinção entre uma
esfera da vida pública e uma esfera da vida privada corresponde à existência
das esferas da polis e da família como entidades inerentes ao mundo comum e à
manutenção da vida, respectivamente. Segundo o pensamento dos antigos, os
assuntos relacionados com a sobrevivência do indivíduo e da sua família não
eram assuntos políticos, mas domésticos, privados, inerentes à organização
familiar, uma organização completamente diferente da polis.
No interior da esfera privada, o labor é a actividade que assegura a
sobrevivência do indivíduo, uma actividade que tem que ver com as necessidades
vitais de preservação da espécie humana e que remete para os processos
biológicos e para os imperativos de sobrevivência do animal laborans. Na esfera
da família, os homens eram impelidos a viver em comunhão devido às necessidades
e carências inerentes à própria vida. A sobrevivência da espécie requeria a
companhia de outros. Por conseguinte, o labor do homem na obtenção de alimentos
para o sustento da família, e o labor da mulher no parto na sobrevivência da
espécie, eram funções naturais do lar que decorriam da necessidade e da
premência da vida (Idem: 45). O labor é, assim, uma actividade própria de um
espaço privado cujo centro é constituído pela casa (oikia) e pela família.
Designa uma das três actividades fundamentais da condição humana enraizadas na
vita activa. As outras duas são o trabalho (work) e a acção. Segundo Arendt, o
trabalho é a actividade correspondente ao artificialismo e à intervenção da
espécie humana na natureza. O trabalho produz um mundo artificial de coisas
(Idem: 19) e a sua condição é a da mundanidade. Distintamente do animal
laboransque se insere no ciclo vital da espécie humana, da animalidade e
necessidade de sobrevivência, o homo faberactua sobre a materialidade das
coisas para produzir um mundo artificial. É, portanto, uma actividade
especificamente humana na medida em que se refere a uma dimensão fabricadora de
mundanidade onde o homem actua directamente sobre a natureza, condicionando as
coisas naturais e criando as condições físicas para que o homem possa viver e
estar entre os homens (inter homines esse). Enquanto o labor pertence ao
domínio da necessidade e à esfera privada, o trabalho é inerente à criação de
um mundo social e gregário. Ele fornece os elementos físicos e materiais para a
condição humana da pluralidade, isto é, para a terceira actividade humana
fundamental, o envolvimento do homem na política. A acção é, assim, uma
condição humana eminentemente pública que remete para a alteridade, para a
pluralidade e para a construção de um modo de vida político na polis. A acção é
a única actividade que se exerce directamente entre os homens sendo a
pluralidade não apenas a conditio sine qua non, mas também a condition per quam
de toda a vida política (Idem: 10). A raison d'êtreda acção resulta da
comparticipação de palavras e actos (Idem: 248) no espaço público através da
publicidade discursiva. É por isso que a polis é a organização da comunidade
resultante do agir e do falar de pessoas em comunhão que assumem uma aparência
explícita. O espaço público clássico é uma esfera de epiphaneia, um espaço onde
os indivíduos aparecem uns perante os outros, palco de visibilidade, de
figuração e aparição, por oposição ao anonimato, ao ocultamento e à ausência de
aparição do indivíduo perante os seus pares que caracteriza o carácter
privativo da esfera privada. Na antiga cidade-estado, a esfera privada era um
lugar de invisibilidade e de não aparição, uma esfera onde o indivíduo se
encontrava privado de uma relação objectiva com os outros que não passasse pela
mera sobrevivência da espécie. O homem privado não se dá a conhecer, não se
apresenta perante os seus pares, não se torna visível, não exibe a sua
aparência no espaço público: o que quer que ele faça permanece sem importância
ou consequência para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido
de interesse para os outros (Idem: 74). Com efeito, na civilização helénica a
esfera pública e a esfera privada constituem-se como esferas antitéticas e
apartadas que existem separadamente. O público como governo da cidade e domínio
de liberdade onde o indivíduo exerce a sua condição de cidadão, e o privado
definido como domínio da casa onde o indivíduo se rege pelas leis inerentes ao
reino da necessidade, à dominação sobre as mulheres, as crianças e os escravos,
e aos processos biológicos da vida e da morte.
Como vemos, os gregos entendiam as esferas pública e privada como entidades
autónomas e definidas em completa oposição, sacrificando o privado em benefício
do público. A esfera privada assumia-se negativamente como a esfera do
ocultamento onde os indivíduos viviam uma existência incerta e obscura, em
contraste com o mundo comum da esfera pública caracterizado pela reunião dos
indivíduos na companhia uns dos outros. Efectivamente, foram os romanos, pelo
contrário, que compreenderam que as esferas pública e privada só poderiam
subsistir sob a forma de coexistência (Arendt, 2001: 74). A casa dos romanos,
desde sempre designada pelos termos gregos, oikos ou grupo humano residente, e
oikia ou edifício que o abriga, surge como charneira dos dois domínios, espaço
não inteiramente privado que, em certos casos, se insere no domínio público.
Nas aldeias, as chamadas assembleias dos chefes de casa assumiam as
responsabilidades judiciais e fiscais da comunidade rural. Por outro lado, o
núcleo do oikos aristocrático, apesar de ser constituído por parentes, engloba,
também, familiares (oikeioi), servidores (okêtoi), e outros homens
(anthrôpoi) e amigos (philoi) que agiam na cena política do palácio. Segundo
Ariès e Duby, um tal oikos é um espaço ambivalente na medida em que, colocado
na antípoda do palácio, coração político do Império, tanto serve de base ao
empreendimento público como ao recolhimento. Esta ambivalência estende-se às
residências provinciais das grandes famílias, que a todo o momento podem
adquirir um significado político (Ariès, Duby, 1989: 547).
Os romanos colocavam o aparecimento da casa não apenas no quadro das
necessidades individuais, mas num quadro inserido no contexto societal. A casa
romana era caracterizada por graus diferenciados de opacidade, assumindo-se
como local de actividades que nos dias de hoje parecem ser de âmbito público. O
senhor da casa recebia, frequentemente, visitas do vasto círculo dos seus
clientes, facto que levou o arquitecto romano Vitrúvio a utilizar a expressão
locais públicos para designar as partes das residências abertas às pessoas
oriundas do exterior. Tais espaços não se constituíam como domínios
essencialmente privados ou essencialmente públicos, mas antes como o reflexo de
um tipo de sociedade que manifestava uma articulação entre o privado e o
público. Da mesma forma que a vida no seio de uma casa conhece toda uma gama
de modalidades, do isolamento individual à recepção de um grande número de
pessoas com as quais o proprietário pode não manter qualquer tipo de ralação
íntima, assim os espaços da residência são caracterizados por um grau de
opacidade muito variável relativamente ao mundo exterior (Idem: 339). As casas
dos notáveis do Império, por exemplo, acolhiam várias circunstâncias de vida
privada, compreendendo espaços de retiro individual e partes residenciais
destinadas à família no sentido estrito do termo. Por outro lado, quer no tempo
da grandeza de Roma, quer no tempo do seu declínio, os romanos distinguiam
muito mal funções públicas e dignidade privada, finanças públicas e bolsa
pessoal, sendo possível identificar numerosas redes de clientelismo político
onde as funções públicas eram tratadas como dignidades privadas (Cf. Ariès,
Duby, 1989: 103-105).
Como vemos, a natureza do espaço privado é característica de cada sociedade e
das relações que nela se estabelecem. Assim, o estudo sobre a dicotomia
público/privado possibilita a compreensão das transformações diacrónicas,
espaciais e sociais, embora seja ilusório tentar traçar uma história contínua
do privado e de um binómio de carácter dúbio e controverso. Conforme sublinha
Mattoso, apesar da dificuldade que existe na definição e interpretação da linha
que separa os dois domínios, os papéis dos homens e das mulheres, dos casados e
dos solteiros, dos velhos e dos novos, dos jovens e das crianças, bem como os
seus valores e os seus objectivos, alteram-se com o tempo e são distintos
conforme as regiões consideradas (Cf. Mattoso, 2011: 13). Se, por um lado,
estudar a vida privada implica averiguar a autonomia que lhe é deixada pelo
Estado, pelo poder e pela lei enquanto autoridades que regem a vida pública,
por outro lado, o estudo da vida privada não pode ignorar as convenções e as
regras tácitas e manifestas que os indivíduos e os seus círculos de
relacionamento adoptam. Porém, definir a linha que separa o público do privado
é, muitas vezes, uma tarefa bastante difícil.
Não obstante o carácter mutuamente exclusivo das esferas, o sentido das mesmas
acções pode ser extremamente ambíguo, conforme os actores envolvidos, o quadro
em que se praticam ou as sociedades e grupos que as adoptam (Mattoso, idem:
14). Deste modo, os contornos da privacidade e da publicidade manifestam-se na
vida dos indivíduos segundo as regras que estes impõem a si próprios e de
acordo com as convenções da sociedade onde estão inseridos, convenções e
hábitos que, consciente ou inconscientemente, os indivíduos aceitam ou
transgridem. Todavia, não devemos esquecer que modalidades que
contemporaneamente se apresentam como privadas poderiam não o ser nas épocas
anteriores. Segundo os historiadores, o uso do conceito de vida privada
aplicado às sociedades prévias ao desenvolvimento do Estado Moderno deve ser
relativizado e acompanhado de precauções, até porque as informações acerca do
comportamento privado dos indivíduos são escassas até ao século XII e difíceis
de discernir nos séculos subsequentes. Apesar de na Idade Média se terem dado
passos significativos na afirmação da esfera pessoal dos indivíduos, é difícil
considerar que o conceito de vida privada, tal como hoje o entendemos, tenha
existido naquele período histórico. Uma vez que a escrita medieval foi, durante
muito tempo, monopólio da Igreja, as fontes disponíveis apelam constantemente a
um ideal de ordem pública de acordo com o modelo que a Cristandade supõe. Neste
sentido, aquilo que se passava na vida doméstica deveria ser secreto,
pertencendo ao chefe de família a obrigação de zelar pelo cumprimento das
normas no espaço privado (Cf. Mattoso, idem: 18-19). Os pecados cometidos na
vida privada não deveriam ser públicos no sentido de evitar a sua propagação,
mantendo-se a actividade do confessor como algo pertencente à área do privado.
De entre tudo aquilo que a família burguesa tinha de privado, o que segundo os
historiadores era bastante pouco, o assentamento assume peculiar destaque. O
assentamento consistia no local onde a família rural assentara a sua
habitação, as terras de cultivo e outros espaços pertencentes à exploração
agrícola. A habitação ou cozinha, como muitas vezes era denominada, era um
edifício unicelular, bastante pequeno e com uma só abertura para o exterior. A
casa era escura, pequena e sem espaço para o conforto. Junto da habitação
estavam os edifícios que serviam de abrigo aos animais (pocilgas, currais...),
e outras dependências como os lagares, a adega e os celeiros ou palheiros (Cf.
Mattoso, 2011: 39-41).
Já no que se refere ao conceito de público, os textos medievais associam-no
directamente ao espaço público urbano materializado nos caminhos, ruas, praças
e alguns equipamentos ou infra-estruturas que estão ao dispor da comunidade e
que por ela podem ser utilizados. Usualmente, a denominação de público
reservava-se às vias centrais e de maior importância, sendo normal encontrar
alguns espaços públicos privatizados nominalmente. De referir que na época a
atribuição do nome de um indivíduo a uma rua não correspondia, como acontece
actualmente, a um reconhecimento público ou a uma consagração comunitária de um
determinado indivíduo, sendo o nome e o domínio critérios de identificação de
áreas privatizadas (Cf, Idem: 26-27). A oposição público / privado no espaço
urbano medieval também se encontrava patente no domínio dos indivíduos sobre
bens patrimoniais. O sistema jurídico e as autoridades públicas garantiam o
respeito pela propriedade familiar inscrita no espaço público urbano. Do ponto
de vista jurídico, a delimitação entre o público e o privado era nítida e a
intrusão alheia no espaço doméstico chegava a configurar a prática de crime.
Por outro lado, privadas eram, também, as áreas apartadas ou isoladas da
comunidade. Por decisão das autoridades públicas, em redor das áreas urbanas
encontravam-se pequenos enclaves que, para protecção da comunidade, alojavam
comunidades religiosas minoritárias, como mouros ou judeus. As mulheres que se
dedicavam à prostituição, denominadas de mulheres públicas ou mundanais,
que faziam pelos homens ou galegas, como eram denominadas em Alcácer do
Sal, deveriam habitar em lugar próprio e apartado onde os homens as procurem e
não em vizinhança com mulheres de bom porte (Idem: 31). A divisão público /
privado em termos de sociabilidade, de vivência e de tendência para preservar a
vida íntima é, no entanto, mais difícil de discernir no quadro da Idade Média.
A preocupação individual com a reserva e preservação da intimidade era algo
pontual, até porque a vivência de práticas íntimas não se restringia, em
exclusivo, aos espaços habitacionais. As privadas comunitárias, os banhos e as
estalagens, correspondiam a edificações mandadas erigir pelos poderes públicos
que albergavam práticas íntimas.
Os banhos e as instalações balneares eram, normalmente, propriedades régias
exploradas por rendeiros, ao passo que as estalagens, exploradas por homens ou
mulheres que dão camas, funcionavam como locais de hospedagem para
forasteiros. Privados eram, também, actos, crimes ou pecados cometidos que não
deveriam de ser publicitados para não contaminar a ordem pública. O privado
desvelava-se no domínio público sob a fórmula incontornável do rumor e do
escândalo.
Efectivamente, público e privado constituem-se como domínios porosos e
instáveis que sofreram profundas variações ao longo dos tempos. No decurso dos
séculos XVIII e XIX, a vida privada desenvolveu-se como um fenómeno
essencialmente burguês onde se assiste a uma forte investida do indivíduo. O
Estado liberal assumiu uma matriz individualista que se pautou pela exploração
do Eu e pelo reforço da identidade pessoal e de certos cuidados com a
aparência. Consequentemente, o conceito de espaço privado renovou-se e passou a
ser balizado por novos marcos jurídico-políticos. O círculo familiar surgiu
como esfera de intimidade pessoal num contexto onde certos comportamentos
privados se democratizaram. Neste ponto, saliente-se a difusão do movimento
jornalístico, acompanhado pela prática cada vez mais divulgada da leitura
solitária do jornal, a expansão da fotografia e a democratização do retrato
pessoal. De outro modo, a casa assumiu-se como domínio privado por excelência,
como uma espécie de refúgio onde o indivíduo experimenta o sentimento de
independência face à vida pública. Sob o impulso da burguesia, a vida privada
foi, no decurso do século XVIII, incorporada definitivamente na ideologia
política e societal.
A democratização da intimidade
Uma asserção decorrente do percurso histórico-teórico empreendido até aqui
passa pela constatação de que nos últimos séculos as concepções de público e
privado (re)configuram-se por via da própria dinâmica das estruturas sociais.
Aquilo que se convencionou ao longo dos séculos como público ou como privado
emerge com uma forte componente histórica, social e política. Neste xadrez
sociopolítico, o actor social foi sempre uma espécie de variável menor. Com
esta asserção salienta-se o papel fortemente condicionador das diferentes
estruturas sociais, como são os casos da religião, da família e até o papel das
elites (em cada contexto histórico particular), que limitaram e conduziram o
percurso e as escolhas dos indivíduos, competindo aos actores concretizarem, na
durée quotidiana, a forte coerção e controlo social que Émile Durkheim (1977)
denominou por solidariedade mecânica.
Contudo, é com o advento da Modernidade que autores como Habermas (2012)
assinalam uma profunda reconfiguração social, política e económica. Uma tal
mudança com implicações tão transversais levou a um substancial reequilíbrio
social, mormente com o fim daquilo que é designado na historiografia como
Antigo Regime, abrindo espaço à estruturação das sociedades através das classes
sociais. O supra mencionado autor alemão sintetiza este processo da seguinte
forma:
A esfera pública burguesa desenvolve-se no campo de tensão entre o
Estado e a sociedade, mas de tal forma que ela própria continua a
fazer parte do âmbito privado. A separação fundamental entre essas
duas esferas, que ela tem por base, começa por significar o
desentrosamento dos momentos de reprodução social e de poder político
mantidos juntos nas formas de dominação da Alta Idade Média
(Habermas, 2012: 257 itálico dos autores).
Com esta perspectiva, Habermas tem a intenção de sublinhar o facto de ser no
seio de um contexto fortemente pautado pela ordem económica, nomeadamente com a
ascensão de uma nova classe, que estas transformações ocorrem. Esta nova classe
brotava a partir da dinamização do comércio e assumiu uma posição intermédia
entre o chamado povo ou classe popular e a velha aristocracia com todos os
seus privilégios, conjuntamente com algum do clero. Ora, esta nova classe tinha
o ensejo de se tornar um actor activo no xadrez político das sociedades
modernas, o que implicou uma redefinição da fronteira entre Estado e Sociedade.
Com efeito, o que emana deste processo historicamente demarcado é
fundamentalmente o facto de haver uma crescente dissociação de uma parte da
actividade social do próprio domínio do Estado, que granjeava uma componente
considerável da vida social e pessoal quotidiana. Como é referido por Habermas
(2012: 257 e seguintes), o privado surge como um espaço dissociado da
influência do Estado. Compete aos actores e sobretudo ao seio familiar a
cristalização de práticas quotidianas que anteriormente eram eminentemente de
carácter público. O privado configura-se, assim, como o negativo numa película
de filme, no fundo é o outro lado do espaço público.
Retomando a discussão acerca da emergência e separação entre público e privado,
resultado do percurso até aqui empreendido, o privado e as actividades nele
desenvolvidas circunscreviam-se, no decurso do século XVIII, fundamentalmente
ao quarto. O quarto de dormir era concebido como o derradeiro domínio privado,
já que todos os outros espaços, incluindo os do domicílio, eram tidos como de
vivência pública. Este é, paralelamente, um período histórico onde, apesar das
fortes mutações políticas e económicas, estas não se repercutiram no incremento
do papel da mulher e de outros grupos sociais minoritários no debate público. A
dicotomia público / privado passava, também, pela diferença de género, sendo a
esfera pública o espaço privilegiado do homem e o privado ou o doméstico o
espaço de acção da mulher. O discurso oitocentista insiste nas qualidades e
aptidões do homem e da mulher como base das duas esferas: aos homens, o cérebro
e a capacidade de decisão; às mulheres, o coração, a emoção e os sentimentos.
Efectivamente, o estudo do público e do privado, sobretudo do segundo, deve-se
à democratização da intimidade, processo desencadeado nas sociedades da
modernidade tardia, pelo menos na perspectiva de Anthony Giddens (1995). O
argumento que Giddens concebe como pano de fundo para a sua exposição,
centra-se no facto de embora a esfera privada surgir de mão dada com o
advento da burguesia enquanto classe social no final do Antigo Regime, é nas
sociedades contemporâneas que se verifica uma verdadeira democratização da
intimidade. Não será por acaso que só é possível reequacionar o papel da
intimidade associando a esta a própria vivência e consolidação do regime
democrático. Contudo, antes de continuarmos a discussão importa esclarecer que
a intimidade deve ser entendida como um conjunto ( ) de direitos e obrigações,
prerrogativas e responsabilidades que norteiam modelos de actividade e prática
quotidiana (1995: 131). Por outro lado, a umbicalidade entre democracia e
intimidade fica patente se considerados alguns dos seguintes aspectos: em
primeiro lugar, a criação de circunstâncias em que as pessoas possam
desenvolver as suas potencialidades e exprimir as suas diferentes qualidades;
em segundo, a protecção do uso arbitrário da autoridade política havendo lugar
à negociação; em terceiro lugar, a aceitação dos juízos de valor dos outros e,
por fim, a liberdade económica e de acção (1995).
A prossecução em maior ou menor escala destes aspectos apenas ficou minimamente
garantida, pelo menos no contexto das sociedades ocidentais, em meados do
século XX, sobretudo após o termo da II Guerra Mundial. Contudo, no
Mediterrâneo e em particular em Portugal, o processo histórico-político assume
contornos idiossincráticos. O processo de democratização da sociedade
portuguesa encetado a 25 de Abril 1974 tem progressivamente levado à definição
jurídica de certas liberdades, como a possibilidade do divórcio mediante
iniciativa unilateral de uma das partes, ou, mais recentemente, a
despenalização da interrupção voluntária da gravidez (referendo de 2007), ou o
casamento entre pessoas do mesmo sexo por iniciativa legislativa/parlamentar em
2010. Estes são casos que ilustram a estreita relação entre a democraticidade
de uma sociedade e a consolidação e profusão daquilo que geralmente se
convencionou como intimidade. Com efeito, estamos no patamar de discussão do
poder condicionador das grandes estruturas sociais, relativamente à acção
social de cada actor.
É, precisamente, no plano da subjectividade individual que encontramos uma
profunda disrupção das sociedades da modernidade tardia relativamente às suas
predecessoras. Nesta linha, são diversos os elementos que nos fornecem pistas
da crescente relevância da capacidade de escolha por parte dos indivíduos,
resultando em planos biográficos de carácter mais aberto e de negociação
permanente. Podemos encontrar nas últimas décadas de empreendimento das
ciências sociais um conjunto de autores como Beck (2000; 2006), Giddens e Lash
(2000), Bourdieu (1989; 2010) e Bauman (2007) onde se nota uma clara tendência
de realizar uma síntese entre poder condicionador das estruturas sociais e a
capacidade de agir dos actores. Também no plano do estudo das atitudes, como em
Inglehart (2005), é identificado o crescente carácter individual e expressivo
em termos geracionais, com a já famosa transição dos valores materialistas para
pós-materialistas.
Transversalmente, todos estes autores sublinham a preponderância epistemológica
e teórica das competências cognitivas e sociais dos indivíduos na negociação
quotidiana. Os actores num contexto estruturalmente mais democrático podem
accionar um conjunto diversificado de competências e mecanismos conquistando,
ainda que em permanente tensão com a normatividade social vigente, um espaço de
autonomia que de acordo com Anthony Giddens pode ser definido como ( ) a
capacidade individual para a auto-reflexão e para a autodeterminação:
deliberar, julgar, escolher e agir de acordo com possíveis rumos de acção
(1995: 128 aspas do original).
Esta crescente autonomização está associada a um processo histórico que passa
pela individualização (Beck: 210-211). Segundo Beck, este processo assenta em
três grandes domínios: perda da estabilidade, perda da segurança tradicional e
um novo tipo de coesão social. A individualização, enquanto modelo de
socialização de actores, resulta sobretudo numa maior liberdade de acção, mas
paralelamente de menor segurança societal. No seu empreendimento teórico,
Ulrich Beck (2003) reconhece uma espécie de descontinuidade entre aquilo que
convencionalmente se designa como modernidade e modernidade reflexiva, mormente
no que concerne aos modos e estilos de vida. Para o autor alemão, estas
alterações ficam-se a dever, em parte, a transformações no campo dos principais
eixos identitários, como a classe social, o género ou até a etnia, entre outros
elementos. Deste modo, antagonicamente ao que se perspectivava um pouco por
toda a classe científica, a emergência da modernidade reflexiva não trouxe
consigo uma uniformização cultural. Pelo contrário, de certa forma podemos até
falar de uma destandardização das biografias individuais.
Nesta linha de raciocínio, torna-se clara a tendência para a crescente
multiplicação e diversificação das opções biográficas dos indivíduos, aquilo
que se pode definir como uma espécie de bricolage-identitária. O que leva Beck
(2003) a falar de uma crescente cultura do eu patente no cada vez maior número
de indivíduos a viver sozinhos, tal como o aumento de número de divórcios e,
também, o fomento de estilos de vida estéticos ou ainda a consciência e prática
de uma maior liberdade e, consequentemente, de uma maior auto-organização
orientada para acção.
Dito isto, a esfera íntima surge na contemporaneidade como um importante
domínio de análise de diversos autores. Neste rol, Anthony Giddens (1994 e
1995) localiza naquilo a que resolve definir como relação pura uma marca da
democratização da intimidade, nomeadamente no seio familiar e dos afectos. Há,
assim, lugar à reconfiguração das estruturas sociais que servem de mapeadores
na gestão que os actores fazem das suas relações pessoais e íntimas e à
multiplicação e diversificação de modelos biográficos, sendo que nem todos os
modelos podem ser sinónimo de mais bem-estar podendo resultar, e em última
análise, em difíceis escolhas. Um caso paradigmático é o da família enquanto
instituição social. Diríamos que actualmente há a possibilidade de a mulher ter
uma carreira profissional, que lhe permite aceder a uma autonomia financeira, a
qual foi restringida em gerações anteriores. Contudo, esta opção implica muitas
vezes o sacrifício da maternidade, em casos extremos. Nestas circunstâncias, e
de acordo com Bauman (2007: 205), podemos considerar a individualização como um
processo ambivalente, ou por outras palavras, se por um lado abre novas
possibilidades de escolha, por via da descontextualização das relações sociais,
por outro lado, levanta novos dilemas traduzíveis em constrangimentos,
sobretudo na esfera da intimidade.
Zygmunt Bauman na sua abordagem às mutações ocorridas nas esferas pública e
privada, coloca na equação analítica que ensaia o caso dos media e o papel que
estes têm tido nas últimas décadas na erosão entre estes dois domínios. Para
Bauman (2002: 75), os chat-shows, onde podemos incluir o Facebook, têm um
grande potencial de divulgação e publicitação de considerações e expressões
íntimas. Ainda assim, a questão que se impõe é saber quais as motivações para
essa exposição. O supramencionado autor começa por aduzir que nas sociedades
contemporâneas há uma incessante necessidade de aprovação e diversão
relativamente ao meio envolvente. No fundo, assiste-se à exposição orgulhosa do
individual, do emocional e do secreto enquanto categorias que permaneciam, até
aqui, na esfera íntima.
No plano ético e relacional, este fenómeno apresenta implicações relevantes
como, por exemplo, um progressivo mitigar de constrangimentos relacionados com
a vergonha e a humilhação, sentimentos que até aqui tinha no domínio da
intimidade o seu derradeiro reduto. Existe, com efeito, uma constante procura
de uma espécie de redenção social. É nesta linha de raciocínio que Bauman
(2002: 75) opta por designar como o consolo pela absolvição, um consolo que
passa, fundamentalmente, pela exposição de sentimentos e afectos que outrora
pertenciam exclusivamente à intimidade, à privacidade. Com efeito, podemos
apontar duas importantes características da esfera íntima nas sociedades
contemporâneas: a expressionista e a impressionista. Aliás, com isto, não
estamos a negar a possibilidade de estas fazerem parte da vivência intima. O
que queremos enfatizar é o facto de estas saírem reforçadas e exacerbadas,
sobretudo como resultado do processo de individualização, isto é, são eixos que
norteiam a gestão e exposição dos afectos. Ora, atentando à componente
expressiva da intimidade nas sociedades contemporâneas, antagonicamente ao que
se passava até aqui, a manifestação de afectos faz-se privilegiadamente por via
dos media, mormente media sociais como o Facebook (Carvalheiro, Prior, Morais,
2013: 109-113). Esta plataforma digital, com a sua arquitetura de divulgação
(Marichal, 2012), transmite aos seus utilizadores uma sensação de segurança
associada à liberdade de acção e de poder de decisão individual no que se
refere aos elementos de exposição. Por outro lado, na linha do que temos vindo
a afirmar, estão reunidas as condições estruturais para que os actores ajam de
forma livre, ainda que reflexivamente ponderando as suas vantagens e
desvantagens, resultado naquilo a que Beck (2003: 339-355) designou por
instituições zombies.
Deste modo, o actor fica mais liberto para agir de forma a mitigar os efeitos
constrangedores da normatividade vigente, até porque essa mesma normatividade o
remete para o campo da decisão individual e reflexiva. Este processo é
aplicável a práticas de exposição e representação, sobretudo quando estas estão
à distância da observação e da visibilidade inerentes ao espaço digital e, em
particular, às redes sociais que enfatizam a opticização das particularidades e
das experiências subjectivas dos indivíduos. A propósito, Daniel Innerarity
tece a seguinte constatação:
Numa sociedade articulada em redor dos meios de comunicação, a
distinção fundamental é entre a atenção e a ignorância; tudo se
decide na capacidade de perceber e ser percebido. Não há nada pior
que passar despercebido, ser invisível. A própria existência parece
incerta enquanto não é confirmada pelo olhar de outros (2009: 134).
No fundo, trata-se da exaltação da singularidade individual, uma exaltação que
concebe cada vez mais relevo aos aspectos privados da existência e à enunciação
da visibilidade identitária e de afectos e vivências pessoais. Como tivemos
oportunidade de constatar, a preocupação que os indivíduos sentem em se
exteriorizar é uma influência da civilização helenística, mas parece evidente
que este sentimento regressou mediante novas formas de exteriorização que, no
entanto, mais não fazem do que acentuar a tendência secular da sociedade como
esfera de aparição, como espaço de ser e de aparecer para os outros. O
incremento das tecnologias de informação, especificamente das redes sociais
digitais, intensificou a categoria da aparência presente nas interacções
quotidianas onde os indivíduos representam o seu self. Porém, e tal como
sublinhou Joshua Meyrowitz (1986), a natureza dos mediaelectrónicos torna
bastante difícil separar a esfera das experiências públicas da esfera das
experiência privadas, anulando-se, consequentemente, a distinção goffmaniana
entre bastidores e palco e entre público e privado.