Além-túmulo no Facebook: Vida após a Morte e Luto na Era Digital
Introdução
Este artigo está organizado em três partes. Na primeira, é feita uma
introdução da pesquisa sobre as manifestações de morte e luto na esfera pública
digital. Poderemos encontrar últimas mensagens de pessoas falecidas, conteúdos
de teor informativo relacionados com os serviços fúnebres, pedidos de
familiares à imortalização dos seus entes queridos e produção artística
simbólica em honra dos mortos.
Numa segunda parte, é analisado o memorial não só como manifestação de pesar,
mas também como tecnologia de vigilância lateral, utilizada para fins
institucionais de "memorialização" dos perfis do Facebook. Nesta
parte, poderemos verificar, duma forma descritiva, o processo de memorialização
do Facebook e comparar também o memorial digital com o memorial tradicional
(offline), finalizando com dois estudos sobre a evolução da morte no Facebook.
Relativamente à terceira parte, é analisado o memorial e a construção da
memória colectiva na esfera pública, através da participação social no ritual
de lembrar os mortos. Nesta parte, poderemos verificar vários tipos de
memorial, as novas possibilidades participativas que distinguem os memoriais
institucionais dos memoriais digitais e como estas diferenças se manifestam nas
relações de poder existentes entre os seus actores.
Na quarta e última parte, analisamos como os media sociais contribuem para a
persistência da identidade e imortalidade dos indivíduos na memória colectiva
da esfera pública e na tecnologia de armazenamento que possibilita o conceito
de intemporalidade, seguida da conclusão.
Além-túmulo no Facebook: Vida após a Morte e Luto na Era Digital
"Between subdued temporalities and evolutionary nature the network
society rises on the edge of forever" - Castells, 2010
Um grande número de pessoas já não vive sem o Facebook, mas o que é que
acontece à sua página no Facebook, quando a pessoa já não vive de facto? Esta é
uma pergunta que, por certo, poucos dos cerca de mil milhões1 dos seus
utilizadores se perguntaram até hoje. Cheryl e a sua parceira, Kelli Dunham,
são um dos muitos casais que foram separados pela morte (de Cheryl), levando
Kelli a interagir com o perfil da sua companheira, no Facebook, como modo de
atenuar a dor sentida naquele momento de tragédia (Buck, 2013). Karin Prangley,
uma advogada de 33 anos, de Chicago, passou por outra situação provocada pela
morte. Quando tentou adivinhar a password e aceder ao computador profissional
do recém falecido sogro, de modo a tentar salvar o negócio de família, chegou à
conclusão que, por diversos impedimentos legais na obtenção da senha de acesso
e burocracias demoradas nos tribunais, teria de encerrar a empresa (Brill,
2012). Bruce Feiler, jornalista do New York Times, escreveu um artigo online,
Mourning in a Digital Age, sobre uma questão com a qual se deparou, depois de
seis meses de consecutivos falecimentos de familiares de amigos seus. Feiler,
não sabia como lidar com as situações que se lhe depararam a cada morte,
especialmente nos casos em que o falecimento ocorrera numa cidade distante, o
falecido era muito jovem ou o velório não estava associado a qualquer tipo de
instituição religiosa. Feiler perguntou-se, no artigo, como deveria efectuar o
luto em situações deste tipo (Feiler, 2012).
Em 16 de Julho de 2012, Anthony Dowdell, proprietário e director criativo de
uma empresa de design, cometeu suicídio depois de guiar o seu carro até ao
parque de estacionamento do Clube Sam, em Linden, New Jersey, onde foi
encontrado pela polícia. Um suicídio como muitos outros, sem motivo aparente,
mas que não passou despercebido devido ao seu anúncio público, no dia seguinte,
na página do Facebook do próprio, onde se podia ler:
"I am a friend of Anthony's. I wish I could call you all to inform you
personally and this is probably a crappy way to find this out but our dear
friend Anthony aka Ant aka Dare Dellcan has passed away. It is confirmed. I
live around the corner and I have spoken with authorities this evening. I am
only sharing this because if I was Anthony's friend, I would want to know too.
And I know that Anthony had friends all over the place" (Kaleem, 2012).
No entanto, um dos casos mais mediatizados foi o falecimento de Jessica Ghawi,
morta a tiro durante o conhecido tiroteio do Cinema Century em Aurora,
Colorado, durante a exibição do filme Batman, The Dark Knight Rises, na qual
morreram doze pessoas, no dia 20 de Julho de 2012 (Brown, 2012). Apenas um mês
antes, Ghawi escapou de outro tiroteio em Toronto, no Centro Comercial Eaton,
quando se encontrava de visita àquela cidade e escreveu o seguinte no seu blog:
"I can't get this odd feeling out of my chest. This empty, almost
sickening feeling won't go away. I noticed this feeling when I was in the
Eaton Center in Toronto just seconds before someone opened fire in the food
court. An odd feeling which led me to go outside and unknowingly out of
harm's way. It's hard for me to wrap my mind around how a weird
feeling saved me from being in the middle of a deadly shooting. What started
off as a trip to the mall to get sushi and shop, ended up as a day that has
forever changed my life" (Ghawi, 2012).
Ghawi era fã do Twitter e, apenas trinta minutos antes da sua morte, enviou o
seu último twitt2 (imagem_1) em resposta a um amigo, referindo que o filme só
iria começar dentro de vinte minutos. Os seus pensamentos e todas as suas
experiências de vida, desde o momento em que se tornou uma netizen3, ficaram
capturadas digitalmente. Os textos ainda permanecem no seu blog, os twitts
continuam disponíveis para serem lidos, as fotografias permanecem online para
serem vistas e a família e amigos continuam a efectuar o luto e a promover a
sua memória através de diversas páginas no Facebook, incluindo uma fundação4
para ajudar talentos desportivos a seguir a carreira do jornalismo.
Logo no dia seguinte, a sua mãe pediu aos amigos que continuassem a enviar
twitts e a partilhar histórias do passado de Ghawi (imagem_2), usando para o
efeito a hashtag5 "RIPJessica", de modo a facilitar a
categorização do tema no Twitter. Desde o dia 21 de Julho de 2012, até
recentemente, podemos encontrar twitts dos amigos de Ghawi, bastando para isso
pesquisar pela referida hashtag. À data em que este artigo foi escrito, foi
possível encontrar diversos twitts em que amigos ainda se lembram de Ghawi e
choram o seu desaparecimento. Alguns chegam a deixar mensagens nas quais se
dirigem directamente à pessoa que faleceu, dizendo-lhe que sentem a sua falta e
referindo que irão visitá-la à sua campa (imagem_3, na página seguinte). Mas
estas mensagens não se resumem ao Twitter. Os amigos de Ghawi criaram uma
página no Facebook para honrar a sua memória e continuam, ainda, a expressar a
sua dor e a enviar mensagens directas à sua amiga através de outras redes
sociais. Outras formas de homenagear a pessoa desaparecida é a criação
artística simbólica. Algumas destas criações foram também encontradas na página
"Remember Jessica Redfield (Ghawi)"6 (imagem_4, na página
seguinte).
Nos dias de hoje, no Facebook, não é difícil encontrar anúncios públicos de
morte entre familiares, amigos, conhecidos ou, até mesmo, desconhecidos. A sua
frequência é tão grande que é possível ler um desses anúncios, publicado apenas
cinco minutos antes, enquanto escrevemos este artigo (imagem_5, página
seguinte). São muitas as estruturas sociais afectadas por este fenómeno. Grupos
como a família, os amigos, os colegas da escola os colegas do local de trabalho
ou a esfera digital dos contactos do Facebook, mesmo quando não se conhecem
pessoalmente, todos, mais tarde ou mais cedo, passam pelo luto, mas todos
tiveram um factor em comum: a forma de lidar com a morte na Era dos Media
Sociais.
A sociedade em rede está a mudar a forma como efectuamos práticas de sempre. A
apropriação das tecnologias digitais mudou o panorama da comunicação para um
paradigma de comunicação em rede, como argumenta Castells (2010, p.xxvi) ou,
como argumenta Cardoso, de comunicação mediada por rede (2008, p.589) ou ainda,
como argumenta Jenkins, de convergência cultural em constante processo (2006,
pp.13-16). A apropriação da tecnologia pela sociedade não mudou apenas a forma
como comunicamos, mas também o nosso comportamento, enquanto grupos e enquanto
indivíduos. A transposição dos actos do mundo físico para o mundo digital é uma
consequência directa do facilitismo e imediatismo da Era da Informação. No
entanto, como refere Castells, apesar de ser necessário haver um cuidado
especial no relacionamento entre o determinismo tecnológico e as consequências
das novas formas e processos sociais, é possível, através de observações
empíricas, avaliar os resultados de tais processos e das novas formas de
comportamento social no mundo digital (2010, p.71).
O Memorial, a "Digital Enclosure" e a Evolução da Morte no Facebook
Só recentemente o tema da morte começou a despertar o interesse dos sociólogos.
Tendo alguma lógica por detrás deste aparente desinteresse dos estudos sociais,
a morte marca o fim da participação do indivíduo na sociedade e, portanto, saía
fora do âmbito das preocupações da sociologia (Giddens, 2009, p.320).
Porém, o tema da morte, no contexto dos media sociais, é, hoje, um tópico
generalizado e começou a ser objecto de análise por diversos académicos. É
também óbvio que 2013 não foi o primeiro, nem será o último ano em que morreram
pessoas com perfis no Facebook. Os falecimentos acontecem todos os dias e, se
pensarmos na evolução exponencial do volume de registos no Facebook, as
primeiras mortes deverão ter acontecido pouco tempo depois da sua abertura ao
público, no ano de 2004.
No entanto, quando terá surgido a consciência para o tratamento das mortes
físicas de identidades digitais? No Facebook, foi em 2006, depois da morte de
um dos seus colaboradores num acidente de viação. Naquela época, o Facebook
tinha apenas quarenta colaboradores e o acidente provocou um choque,
previsível, na equipa e, mais particularmente, no seu melhor amigo e colega de
trabalho, Max Kelly (Kelly, 2009). Como refere Kelly, as perguntas surgiram
rapidamente, numa reunião da equipa: "O que faremos com o seu perfil do
Facebook?" e "Como lidar com a interacção com alguém que já não
pode entrar no Facebook?". O posicionamento individual e social perante a
morte de alguém é, na maioria das vezes, um acto complexo que se relaciona com
memória e respeito pela dignidade do outro. Sobre a morte e a dignidade,
Nuland7 escreveu:
"The belief in the probability of death with dignity is our, and society's
attempt to deal with the reality of what is all too frequently a series of
destructive events that involve by their very nature the disintegration of the
dying person's humanity. I have not often seen much dignity in the process by
which we die. The quest to achieve true dignity fails when our bodies fail...
The greatest dignity to be found in death is the dignity of the life that
preceded it" (Nuland, 1994, p.242 citado em Castells, 2010, p.481).
Que melhor forma de eternizar a vida e a dignidade dos mortos, na memória dos
vivos, senão deixar o registo digital da sua vida passada disponível para
todos? Surgiu, assim, na reunião, a ideia baseada na premissa de que, quando
alguém próximo morre, a sua memória não desaparece imediatamente das mentes das
suas relações próximas, nem das redes sociais (online e offline) nas quais a
pessoa estava inserida. Aparece, então, em 2006, a ideia de
"memorializar" os perfis de pessoas mortas, moldando assim um
ritual offline numa representação digital do mesmo. Um caso claro em que o
determinismo do luto, enquanto processo social, formatou a tecnologia, de modo
a que esta proporcione uma nova forma de lembrar e expressar a dor da perda na
Era Digital. No fundo, uma nova representação ou processo digital da morte, do
luto e dos rituais associados. Sejamos claros, no contexto tecnológico, o
processo da memorialização não é mais do que "congelar" o perfil
digital de alguém, cortando certas funcionalidades e limitando o espectro de
actuação da esfera pública e privada sobre o mesmo. No contexto sociológico,
contudo, tem implicações mais extensas. Envolve a memória colectiva, a
persistência da identidade e a vigilância sobre os mortos.
Então, como se materializou o processo de "memorialização" no
Facebook? Existem alguns aspectos que devem ser referidos. O processo global da
memorialização é constituído por alguns sub-processos que se relacionam e
complementam entre si e passam pela participação popular na esfera digital e
pela vigilância digital sobre esta participação. Existe um relacionamento de
troca entre o que é oferecido pela tecnologia para preencher a necessidade
social de informar e efectuar luto e o que a tecnologia adquire, em forma de
conhecimento, exercendo a relação entre poder e conhecimento que Foucault
explica da seguinte forma:
"We should admit rather that power produces knowledge (and not simply by
encouraging it because it serves power or by applying it because it is useful);
that power and knowledge directly imply one another; that there is no power
relation without the correlative constitution of a field of knowledge, nor any
knowledge that does not presuppose and constitute at the same time power
relations" (Foucault, 1979, p.27).
Para um melhor entendimento sobre a relação de poder existente entre o Facebook
e os seus utilizadores, no contexto da memorialização, é importante explicar a
relação de conhecimento que a precede. O Facebook instituiu o processo de
"memorialização" em 2006, como já foi referido, mas, dado o volume
de utilizadores registados e o padrão do seu crescimento, seria impossível aos
seus colaboradores verificar, um por um, quem já morreu e quem ainda está vivo.
Tendo em conta esta dificuldade, a criação de um tipo de evento (conteúdo) que
denuncia a morte de um indivíduo (imagem_6) oferece ao Facebook o conhecimento
necessário para memorializar o seu perfil (caso este indivíduo fosse também um
utilizador registado), quando utilizado por milhões em todo o mundo. Existe,
assim, uma relação de poder entre o agente Facebook e os sujeitos utilizadores
deste media social, materializada na transmissão de conhecimento dos sujeitos
para o agente, na forma de identificação dos mortos.
Esta relação entre o Facebook e os seus utilizadores, denunciando a morte de
outros utilizadores e produzindo conhecimento utilizável pelo agente na tomada
de decisões, consiste numa forma específica de vigilância, conceptualizada por
Andrejevic como "digital enclosure" ou "lateral/peer-to-peer
surveillance" (2004a; 2004b, p.25; 2006, pp.299-302), como o próprio
refere:
"One of the attributes of what I've been calling the "digital
enclosure" is that it facilitates not only commercial and state
monitoring, but also what might be described as lateral or peer-to-peer
surveillance. In a culture of constant connectivity and online self- disclosure
we can not only keep tabs on our friends and family members via cell phones, e-
mail, and IM, but we can check up on new acquaintances or old friends by going
online. To "Google" has become not only a verb, but a transitive
one whose objects are often friends, acquaintances, significant others,
colleagues, and whoever happens to cross the mind of curious Web-surfers.
Within the digital enclosure the movements and activities of individuals
equipped with interactive devices become increasingly transparent - and
this makes monitoring technologies easier to obtain and use. The result is
increasing public access to the means of surveillance - not just by
corporations and the state, but by individuals" (Andrejevic, 2006,
pp.299-300).
Aos utilizadores é dada a possibilidade de criar estes eventos e moderar o
acesso de quem pode, ou não, ver o seu conteúdo. Como pretendido pelo Facebook,
o evento representa o tipo de obituário existente nos media tradicionais,
oferecendo, na esfera pública digital, um novo espaço de informação e criação
de memória colectiva. Como podemos ver pelas imagens_7 e 8, a representação
digital do obituário é idêntica ao seu congénere dos media offline. A imagem_7
é o obituário do Facebook e a imagem_8 é o obituário de um jornal impresso.
Este processo conduz, então, à "memorialização" do perfil da pessoa
falecida. Esta página "memorialista" consiste, sobretudo, na
continuidade da mesma página que já existia, enquanto perfil, mas com menos
funcionalidades e tentando sempre respeitar a privacidade do falecido. Ninguém
pode fazer login na conta do perfil, novos amigos não são permitidos (apenas os
amigos existentes na data da memorialização continuam na lista de amigos), o
perfil não aparece nas sugestões de amizade, não aparece nos aniversários que
se aproximam e não aparece nas buscas efectuadas pelo seu nome, entre outras
funcionalidades que são cortadas. No entanto, os amigos já existentes na lista
de amizades podem continuar a enviar publicações para o mural e podem comentar
as publicações já existentes, como refere o responsável de segurança do
Facebook, Max Kelly:
"When an account is memorialized, we also set privacy so that only
confirmed friends can see the profile or locate it in search. We try to protect
the deceased's privacy by removing sensitive information such as contact
information and status updates. Memorializing an account also prevents anyone
from logging into it in the future, while still enabling friends and family to
leave posts on the profile Wall in remembrance" (Kelly, 2009).
Qual é a frequência de mortes no Facebook e o que pode representar este número
no futuro? Em Março de 2010, dois empresários proprietários da empresa
Entrustet (mais tarde adquirida pela empresa SecureSafe), Nathan Lustig e Jesse
Davis, publicaram um estudo8 no qual referiam a estimativa de mortes que iriam
acontecer entre utilizadores do Facebook. Para o ano de 2012, a estimativa
apresentava 2,89 milhões de mortos a nível global, 580 mil dos quais, apenas
entre cidadãos norte-americanos. Lustig e Davis referem que o nível de
crescimento exponencial da base de utilizadores do Facebook fará com que esta
estimativa cresça também exponencialmente (Lustig, 2012).
Em Novembro de 2010, outro estudo, elaborado por Jonathan Good, foi publicado
no seu blog (imagem_9). Segundo este, também baseado nos cálculos do CDC9 e
dados do Facebook, mas agora agregados aos cálculos da CIA10, prevêem que, em
2015, existirão cerca de 50 milhões de perfis de pessoas mortas no Facebook
(Good, 2010).
Assumindo que estes números estão correctos ou, no mínimo, muito próximos da
verdade, o Facebook tornar-se-á, muito brevemente, no maior cemitério digital
da história da humanidade, sendo, então, o maior contribuinte para a formação
da memória colectiva.
Paralelamente a este facto, a preocupação recente com estas revelações e o
valor intrínseco das propriedades digitais que os mortos deixam para trás, têm
estado na origem do surgimento de diversas empresas. Estas novas empresas,
mediante contratos assinados, ficam responsáveis pelos activos digitais dos
mortos, desde o dia do óbito, tratando desses activos de acordo com a sua
vontade, conforme ficou legalmente registado pela vontade expressa dos seus
proprietários. Uma dessas empresas é a SecureSafe11, actual proprietária da
anterior empresa de Lustig e Davis, a Entrustet.
O Memorial e a Formação da Memória Colectiva
O memorial assume, na sociedade contemporânea, diversas formas e diversas
representações simbólicas e, como alguns académicos sustentam, desempenha um
papel importante na construção de memória colectiva (Doss, 2002; Ulmer, 2005).
A forma mais popular e mais dispersa é o monumento. São muitos os monumentos
(onde se incluem estátuas, bustos, réplicas de objectos, construções
arquitectónicas e construções artísticas simbólicas) construídos em memória de
algo ou alguém, servindo o propósito institucional, em muitos casos proveniente
de um passado distante, da formação de memória colectiva (Gillis, 1994). A par
dos monumentos existem outros meios de construção de memória colectiva como os
selos postais, as moedas comemorativas, as moedas e notas do sistema monetário,
as figuras religiosas e os memoriais colocados em cemitérios ou na beira da
estrada, estes últimos marcando e "memorializando" o local de um
acontecimento trágico relacionado com a morte (imagem_10, página seguinte).
No entanto, a grande maioria dos memoriais existentes, até à massificação dos
media sociais (a sociedade da comunicação mediada por rede, de Cardoso) e
aparecimento do memorial digital, era o memorial em forma de objecto
institucional. Desde a estátua do Marquês de Pombal, à construção
arquitectónica existente na baixa de Lisboa e a permanência das ruínas da
Igreja do Carmo, entre outros exemplos, contribuindo para a memória colectiva
da tragédia do grande Terramoto de 1755 e consequente reconstrução da baixa
lisboeta até ao mausoléu de Lenin (em Russo: мавзолей Ленина), na Praça
Vermelha em Moscovo (junto aos muros do Kremlin), contribuindo para a memória
colectiva da grande Revolução de Outubro, a qual levou ao extermínio dos
membros da família real Romanov (em russo: царская семья Романовых),
transformou a Rússia czarista na União Soviética e conduziu o país a uma
transição da monarquia para o comunismo
Todos estes monumentos são, de facto, uma demonstração do poder institucional
na formação da memória colectiva dos sujeitos: a sociedade civil em geral,
levando, por vezes, a formas de resistência a esse poder (as manifestações
contra a estátua do soldado do exército vermelho em Tallinn, capital da
Estónia) ou aceitação e legitimação desse poder (como no caso do monumento aos
combatentes da Guerra do Ultramar, em Lisboa, Portugal).
O ritual de deixar objectos nos memoriais também representa uma prática já
antiga. Em muitos locais de memória aos mortos, velas, fotografias, flores e
outros objectos são deixados de forma simbólica. Esta prática é recorrente em
cemitérios e monumentos em honra de acontecimentos ou pessoas que viveram
grandes tragédias. É comum ver flores junto a diversos monumentos aos soldados
que morreram na guerra ou, mesmo, junto a um memorial à beira da estrada. Esta
forma de participação popular tem vindo a ser transposta para os media sociais
duma forma cada vez mais activa, aproveitando a proximidade e facilitismo que
estes oferecem aos seus utilizadores. Como já verificámos, na parte inicial
deste artigo, os sites de redes sociais representam, cada vez mais, as
experiências da vida offline, facilitando, também, a transposição dos rituais
associados à morte para o mundo digital. Estes rituais passam pelos diversos
tipos de transmissão de informação associada ao evento morte (imagens_2, 5 e
7), pelos "objectos digitais" que são deixados junto ao memorial
(imagem_4) e pela mensagem de saudade ou conversa com a identidade digital do
indivíduo já desaparecido (imagem_3).
Porém, é importante referir que a participação popular nas redes sociais tem
vindo a aumentar a criação não institucional de memoriais, levando a uma
democratização do processo de criação e gestão da memória colectiva. O objecto
do memorial define que tipo de tragédia ou sentimento de perda será recolhido
pela memória colectiva e, a produção popular deste tipo de "monumento
digital", "empodera" os seus criadores duma forma que seria
impossível antes da existência de redes sociais. Este era um papel reservado às
instituições poderosas, como o Estado, a Igreja ou as corporações ricas em
recursos financeiros.
Devido à constante participação popular nestes conteúdos digitais em memória
dos mortos, é possível argumentar que o processo da memória colectiva é um
processo em constante mutação e evolução, tornando a memória colectiva uma
entidade viva e, também, em constante mutação e evolução (este é o motivo pelo
qual a palavra "gestão" aparece a negrito no parágrafo anterior).
Todo o processo que não se limita a ser criado, sendo, portanto, estático, mas
existindo em constante evolução no tempo, está sujeito a um processo contínuo
de gestão por parte do seu autor e participantes nas mais diversas formas. Como
definida por Halbwachs, memória colectiva é uma:
"current of continuous thought whose continuity is not at all artificial,
for it retains from the past only what still lives or is capable of living in
the consciousness of groups keeping the memory alive" (Halbwachs citado
em Bodnar, 1994, p.11).
A constante participação evolutiva e alteração do memorial muda, também, a
formatação da memória colectiva, moldando a sua forma e conteúdo. A memória
colectiva transforma-se em algo mais do que a simples soma das suas partes e,
ao mesmo tempo, numa ligação social em torno do mesmo objecto. Uma
interpretação do presente com base no passado, como sustenta McLuhan:
"We look at the present through a rear-view mirror. We march backwards
into the future" (McLuhan, 2005, p.73).
Estamos, então, perante uma convergência de "cultura
participatória" de Jenkins que "empodera" e dinamiza a
transformação contínua de conteúdos através da re-interpretação e remix,
democratizando a produção:
"Fans reject the idea of a definitive version produced, authorized, and
regulated by some media conglomerate. Instead, fans envision a world where all
of us can participate in the creation and circulation of central cultural
myths" (Jenkins, 2006, p.256).
Produção essa que cria, segundo Carpentier, uma dimensão política em torno dos
conteúdos, dinamizando, também, as relações de poder, como o próprio afirma:
"I would still like to emphasize that every social process (including
cultural participation or participation in the cultural sphere) has a political
dimension as it - albeit in varying degrees - is invested with
power and conflict" (Jenkins e Carpentier, 2013, p.5).
Benkler suporta a mesma ideia de empowerment, conceptualizando esta
participação como "commons-based peer production", já que se insere
numa lógica de troca de informação através de um sistema descentralizado,
aberto à esfera pública e totalmente não regulado (2006).
É, portanto, uma construção individual, cronologicamente constante, que
constitui a produção cultural de cada personalidade, contribuindo para uma
cultura social global, viva, em constante mutação e reveladora de sentido, como
o próprio argumenta:
"(...) the networked information environment offers us a more attractive
cultural production system in two distinct ways: (1) it makes culture more
transparent, and (2) it makes culture more malleable. Together, these mean that
we are seeing the emergence of a new folk culture - a practice that has
been largely suppressed in the industrial era of cultural production -
where many more of us participate actively in making cultural moves and finding
meaning in the world around us" (Benkler, 2006, p.15).
Benkler refere, ainda, que as redes online, sendo livremente participativas e
permitindo uma nova relação do indivíduo com a esfera pública, democratizam e
mudam o papel desempenhado, até aqui, pelos consumidores que, de passivos,
passaram a actores e produtores activos (Benkler, 2006, p.272).
Very truly I tell you, the one who believes (Facebook) has eternal life12
A frase "À memória eterna de..." ganhou um novo sentido desde a
massificação do uso dos media sociais. A existência do indivíduo, após a sua
morte, resumia-se aos objectos pessoais que restavam da sua passagem e na
memória individual e colectiva dos laços sociais criados durante a sua vida.
Hoje, uma parte de "nós" persiste, mesmo depois da nossa morte
física: a identidade digital. De acordo com Sundén, a construção da identidade
digital é o acto de "type oneself into being" (Sundén, 2003, p.3).
A tecnologia, composta pelas bases de dados que armazenam as nossas
fotografias, textos, informação pessoal, lista de amigos, publicações e
comentários e os servidores de páginas web, que partilham toda esta informação
através da Internet, na esfera pública, funciona vinte e quatro horas por dia.
O modo como a nossa identidade digital é construída, depende inteiramente do
indivíduo, mas, o modo como esta identidade digital está sempre activa e
disponível para todos, mesmo depois do indivíduo ter desligado o computador,
depende inteiramente da tecnologia. Existe, portanto, uma clara relação entre a
nossa identidade digital (construída pelo próprio), passando a ser parte
integrante da nossa identidade, enquanto ser humano e ser social e, portanto,
uma representação binária do seu autor e a falta de relação ou clivagem entre o
indivíduo e a sua disponibilidade digital, persistindo esta na ausência do seu
"proprietário". Assim, não se trata apenas de uma diferença de
disponibilidade, enquanto, por exemplo, dormimos, mas, como Varis e Spotti
argumentam, a identidade digital ganha vida própria depois da morte do seu
proprietário (ou seja, depois do corte definitivo entre o "eu" e a
sua representação digital):
"To take Facebook as an example of how our practices and understandings
of death and subjectivity will have to change, we see that when someone with a
Facebook profile dies, his or her virtual existence starts to live a life of
its own. (...) As before, this person will live on in and through the objects
that she or he has left behind, and in the memories of others. If he or she
happened to have a Facebook profile, he or she will "live on" on
Facebook, and here the issue becomes that of subjectivity and agency"
(Varis e Spotti, 2011, pp.4,8).
A ideia é simples e complexa ao mesmo tempo. A identidade digital e o seu
"eu" são um, mas, na perspectiva temporal, esta é autónoma,
acabando por substituir o "eu", quando este morre, na memória
colectiva da esfera pública.
Consideremos, de uma perspectiva totalmente livre de subjectividade13, que o
perfil do Facebook (a identidade digital) é um livro autobiográfico que conta
com a participação de todos os indivíduos na lista de amigos desta identidade
digital (através de comentários e publicações). O "eu" biológico é
o editor principal (contribuindo com "aquilo que eu digo sobre
mim") e os indivíduos na lista de amigos são os co-editores (contribuindo
com "aquilo que os outros dizem sobre mim"). Depois da morte do
"eu" biológico, esta identidade digital persiste online, vinte e
quatro horas por dia, formatando a memória colectiva, mas, ao mesmo tempo,
sendo formatada por esta, porque a participação no perfil não é interrompida.
Cada nova contribuição (publicação, comentário, fotografia, etc.) adicionada a
este perfil, formatará a memória colectiva da esfera que a ele acede, tornando-
se em entidades vivas e cronologicamente persistentes na consciência.
Dick Hardt, no seu estilo humorístico, mas brilhante, sustenta este conceito,
definindo identidade como "what I say about me and what others say about
me (what others say is more trusted!)" (Dayren, 2007). Deste modo, Hardt
aponta para uma dicotomia sobre a questão da propriedade da identidade. É algo
que nos pertence, mas que é concedido e legitimado por outros.
No entanto, a questão fica ainda mais complexa, quando existe um mediador
tecnológico. Assim, a tecnologia armazena e transmite a nossa identidade,
representando-nos e legitimando-nos, ao mesmo tempo, duma forma ininterrupta.
Por outro lado, o armazenamento da informação que consiste na identidade
digital, em bases de dados intemporais, é o que confere a persistência
tecnológica ao "eu" binário.
É, neste sentido, que a identidade digital se transforma no "eu"
persistente, vivendo na memória colectiva que alimenta e pela qual é
alimentada, e nas bases de dados que a tornam tão intemporal quanto elas
próprias.
Segundo Brubaker, Hayes e Dourish, a questão da natureza social da morte,
quando estudada do ponto de vista dos media sociais, apresenta-se-nos de três
formas diferentes e coloca o Facebook num novo patamar de dualidade mediática.
Por um lado, existe a perspectiva temporal, permitindo um novo conceito de
expansão cronológica das relações interpessoais. Por outro lado, temos a
perspectiva espacial, possibilitando a expansão geográfica e global da rede
social e, por último, temos a perspectiva social em si, capacitando a expansão
dos vários e diferentes contextos nos quais os indivíduos podem interagir e
comunicar. Nesta conjuntura, o Facebook assume então um duplo papel. Em
primeiro lugar, assume o papel de repositório de informação digital e, em
segundo lugar, assume o papel de mediador de uma comunicação assíncrona
(Brubaker, Hayes e Dourish, 2013, p.162) e atemporal em representação legítima
do "eu" biológico.
Como referimos no início deste artigo, Giddens sustenta que os estudos da morte
nunca foram de grande interesse para os sociólogos (e, consequentemente, para
as ciências sociais), porque a morte interrompe definitivamente a participação
do indivíduo na sociedade (Giddens, 2009, p.320), no entanto, o que Giddens não
visionou, ao afirmar esta causa como a génese da falta de interesse nos estudos
da morte, foi o facto da persistência da identidade e a vida na memória
colectiva e na tecnologia que legitima a continuidade do "eu"
permitirem, também, uma continuidade da interacção da sociedade com o indivíduo
que morreu.
Conclusão
A esfera pública online permite que múltiplas identidades sejam usadas pelo
mesmo indivíduo, tornando-se, assim, num alguém diferente, num anónimo ou
assumir uma identidade completamente diferente daquela que o seu
"eu" representa. No entanto, os media sociais limitam, cada vez
mais, as possibilidades de anonimato ou representação alternativa da identidade
própria, caracterizando-se como um local onde a identidade digital é uma
extensão da identidade própria e não uma alternativa à mesma, contribuindo para
uma memória colectiva póstuma mais precisa.
Deste modo, a representação da vida individual e social é transposta para o
espaço digital, onde permanece duma forma atemporal e vitalícia (tão vitalícia
quanto as próprias bases de dados que a suportam).
Hoje, vemos cada vez mais itens da vida quotidiana acontecerem no mundo digital
dos media sociais, levando-nos a acreditar que estamos a usar as novas
tecnologias para praticar acções e rituais que já existiam no passado. No
entanto, as novas tecnologias permitem algumas novidades na forma como essas
acções e rituais são praticados.
Alguns desses rituais que, cada vez mais, são transpostos para o mundo digital,
são rituais que envolvem a morte do indivíduo e a transformam em tragédia
pública. A troca de informações, o luto e as manifestações de saudade são
apenas alguns exemplos dos actos que entraram na esfera pública e que
permitiram uma nova forma, mais democrática e mais participativa, de construção
da memória colectiva. Estas novas formas de praticar velhos rituais
"empoderaram" a sociedade, mudando o seu estatuto de meros
consumidores de informação para participantes activos no processo de construção
da memória colectiva e persistência da identidade. Stokes argumenta:
"Remembrance is largely a duty of preservation, a duty to, in
Blustein's phrase, 'rescue from insignificance' a person
whose particularity and unique value threatens to disappear from the world
following their biological demise. Persisting electronic presence seems to be a
powerful tool for effecting such a rescue" (Stokes, 2012, p.16).
Assim, as novas tecnologias estão a possibilitar a transposição dos actos e
rituais antigos para o mundo digital, mas, ao mesmo tempo, estão a introduzir
novas formas e possibilidades de participação no contexto que envolve a morte.
Novas formas de vigilância lateral, como Andrejevic designa "digital
enclosure", permitem ao Facebook adquirir o conhecimento necessário para
exercer o seu poder institucional e promover a memorialização dos perfis de
pessoas já desaparecidas. Segundo McLuhan, estamos a viver o presente mediados
por uma interpretação do passado que reside na memória colectiva formada nos
novos media. Por outro lado, Jenkins argumenta que vivemos uma convergência de
participação cultural que, através da re-interpretação e do remix, democratiza
a produção e "empodera" os seus participantes, visão complementada
pela dimensão política que, Carpentier argumenta, envolve todos os processos
sociais, incluindo aqueles de participação, devido ao seu carácter dinamizador
de relações de poder. Todos estes processos sociais encaixam, então, na visão
"commons-based peer production" de Benkler, visto que consistem na
troca de informação num sistema descentralizado e não regulamentado.
O Facebook está a contribuir para a natureza imortal da identidade e para a
vivificação da memória colectiva, tornando-a numa entidade viva que evolui
constantemente no tempo, formatando a memória colectiva da esfera pública e
sendo formatada por esta, numa dinâmica recíproca de participação popular e
interacção da sociedade com os mortos.
Até onde vai chegar este armazenamento de informação e transformar o Facebook
no maior cemitério digital que a história alguma vez testemunhou? Ainda não é
possível saber, mas, poderá levantar questões e problemáticas relacionadas com
a área filosófica da ética. A julgar pela natureza definitiva da morte, o
número de perfis "memorializados" poderá, no futuro, ultrapassar o
número de perfis dos vivos, levando à imortalidade digital. Este poderá ser um
indicador que confirma o que Castells afirmou: "the network society rises
on the edge of forever" (2010).